A moda e o terroir

Piera Martellozzo resgata tradições friulanas e vênetas com uma roupagem moderna e inovadora

por Arnaldo Grizzo E Eduardo Milan

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O italiano é um povo da moda. Grandes estilistas e designers pipocam por lá, criando marcas famosas, que viram desejo de consumo de pessoas mundo afora devido ao seu artesanato (ou seria arte mesmo?) impecável, já que eles são especialistas no quesito "hand made".

Piera Martellozzo é uma mulher "da moda" no melhor sentido que os italianos conseguem produzir. Além do porte sempre altivo pessoalmente, suas produções no mundo do vinho visam criar algo novo com base em uma matéria-prima tradicionalíssima e de grande qualidade.

Ela nasceu no Vêneto, terra dos "bollicini" Prosecco, um vinho que virou "moda" no mundo e, em alguns casos, acarretou uma fama negativa. Piera, assim, é uma das que trabalha para resgatar o nome Prosecco, identificando-o com a região de onde provém, mostrando que ele é único. Além disso, em uma propriedade que adquiriu no Friuli - terra que ultimamente vinha se associando enormemente à produção de vinhos de castas internacionais -, ela foi atrás de antigas tradições, fazendo vinhos com uvas autóctones até então esquecidas pelos produtores locais, como Refosco dal Peduncolo Rosso, Ribolla Gialla, Raboso, Incrocio Manzoni etc. E mesmo nas cepas francesas, sua busca é para encontrar as pequenas diferenças que o terroir dessa parte singular da Itália é capaz de proporcionar.

Para Piera, apesar de o vinho hoje estar integrado no universo da moda, ele também é uma coisa bastante simples. Como ela mesma explica, "em dialeto vêneto, para dizer: 'Dê-me um copo de vinho', diz-se: 'Dame un'ombra' (algo como: 'Dê-me uma sombra')". A história por trás disso é que antes "o vinho era considerado um alimento quase indispensável para viver, então os camponeses, quando andavam pelo campo, colocavam um frasco de vinho na sombra de uma planta para permanecer fresco". Ou seja, dê-me uma "sombra".

Sua família era de vitivinicultores, mas quando você começou?
Minha empresa nasceu em 1899, com meu tataravô, no Vêneto. Em 1992, meu pai me chamou uma noite e disse: "Piera, amanhã a empresa é sua". Tive que reorganizar minha vida. Naquela noite, chorei muitíssimo, pois, primeiramente, não sabia nada de vinho. Sabia o que era tinto e branco, quando a luz estava acesa. Pensar em organizar tudo era terrível. Reorganizar a minha vida era terrível. Chorava também porque era a caçula da família, tinha pensado em tudo, mas não que a empresa ficasse em minhas mãos. Achava que iria para as minhas irmãs [ela tem duas irmãs gêmeas, mais velhas, que hoje trabalham como professoras especializadas em crianças com necessidades especiais].

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"O mundo do vinho faz parte dessa moda. Basta dar uma vestimenta justa para entender que tudo deve ser bonito. O meu consumidor deve gostar não só do produto dentro da garrafa, mas também da imagem. Ele tem que ter prazer de apresentar a garrafa na mesa"

Você não havia estudado enologia? O que estava fazendo?
Sempre amei fazer arquitetura. Meu projeto de pequena era estudar geometria e saber desenhar, para fazer arquitetura. Depois, ir para arqueologia. Mas fiz contabilidade, completamente diferente. Comecei a universidade, mas logo houve essa passagem com meu pai. Então, não fiz o que queria. Mas o mundo do vinho é totalmente fascinante. Quando se começa, não quer ficar fora, pois há sempre a curiosidade de saber mais, de conhecer algo, discutir com um produtor. E o mundo do vinho é criativo, como pode ser a arquitetura. E, como na arqueologia, pode-se descobrir coisas, redescobrir uma vinha que estava esquecida.

Por que seu pai resolveu lhe passar a empresa tão subitamente?
Quando meu pai me passou a vinícola, ele fez com o objetivo de gozar um pouco da vida. Queria muito viajar pelo mundo. Depois de um ano, contudo, ficou doente, de uma doença raríssima. Viveu até 2008 e faleceu com um sofrimento atroz. No último ano se comunicava somente com os olhos com minha mãe. Apesar disso, estava perfeitamente são mentalmente. Sabia tudo o que acontecia. Mas o ruim disso é que a experiência com a vinícola ao lado dele foi apenas por um ano. Acho que não teria cometido tantos erros se tivesse a oportunidade de ter ouvido mais dos seus conselhos. Então, foi uma mudança geracional muito veloz.

O que mudou na empresa com a sua entrada?
Comecei a gerir em 1992 e a primeira coisa que fiz foi mudar toda a política, para entender qual era o destino da vinícola. Reprogramei tudo o que era desenvolvimento. Começamos a trabalhar com vinhas que estavam esquecidas no Vêneto. Pouco se falava de Incrocio Manzoni, que era autóctone, assim como Refosco dal Peduncolo Rosso. Passo a passo comecei a trabalhar com agricultura biológica. Fomos uma das primeiras vinícolas a trabalhar assim no mundo. Trabalhar assim significa uma filosofia vinícola muito atenta ao ecossistema.

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E como surgiu o projeto no Friuli?
Ao final de 2001 fui chamada em uma vinícola no Friuli para gerir, organizar. Cheguei no Friuli e decidi comprar a vinícola. Comprei e me transferi para lá, em Grave, que é uma área um pouco particular. Friuli é conhecida pela zona de Collio. Mas 65% das DOCs são feitas na zona de Grave. Estamos ao pé de uma montanha que tem mais de 2 mil metros e pertíssimo do mar, em um anfiteatro morênico, onde os sedimentos se partem, as rochas são quebradas, os sedimentos vêm com a água dos riachos e assim tornam o solo branco, com pedras brancas, que são redondas. Elas são sempre consideradas a pobreza do terreno, mas, em vez disso, é uma riqueza, pois no inverno acumula o calor durante o dia e emana à noite. No verão, elas refletem o sol e não ensopam o chão, pois ali chove todo dia. Elas filtram toda a parte mineral da água que fica naquele pedaço de terra. Assim, todos os nossos vinhos têm um sabor mineral característico, mesmo o Prosecco. Estamos em uma área que sempre produziu Prosecco, Ribolla Gialla, Pinot Grigio, Refosco, Raboso, uma vinha autóctone do Friuli, que nessa zona é carregado de perfume, um buquê intensíssimo. Sendo vizinhos do mar, temos influência da salinidade, com a brisa marinha. Mas, com 15 minutos de estrada, estamos na montanha. Em 15 minutos, estamos no mar. Nessa parte da Itália que vai de Veneza a Trieste, no nordeste.

Muitos dos vitivinicultores brasileiros são de origem vêneta e o Prosecco sempre teve destaque no mercado nacional. Recentemente, porém, uma nova legislação proíbe o uso do nome Prosecco fora da região produtora. Qual a diferença do Prosecco de lá para o de outros países?
Fui ao sul do Brasil visitar as vinícolas e a maior parte dos produtores tem origem vêneta, especialmente de Pádua, Trento e Treviso. Eles trouxeram o modo de vinificar italiano. Mas o Prosecco é completamente diferente do brasileiro. Mesmo tendo a uva em comum, o terroir e o microclima são completamente diferentes. Na Itália, o nome Prosecco se deu a um lugar específico no Friuli, que recebeu a DOC. São vinhos que têm o mesmo nome, mas são completamente diferentes. Pois, no Vêneto, ele tem grau alcoólico baixo na origem (nasce com 8%, 8,5%), muito perfumado, com toques de maçã-verde, flores brancas, cítricos, têm uma acidez bastante importante. Com a segunda fermentação, ganha um aroma tipo de levedura de cerveja, crosta de pão e pode ir em torno de 11%, 11,5%. É um vinho que se diz fácil, mas não porque seja fácil de fazer, sim porque se toma uma segunda taça com certa facilidade. Um Prosecco não é um espumante, ponto. Nos Estados Unidos, transmitiu-se a cultura de que Prosecco é um método de elaboração. Não. É um vinho que nasce de uma uva que se chama Glera.

O Friuli vem sendo reconhecido com uma das regiões italianas em que as castas internacionais vêm se dando melhor, mas você, além delas, tem investido em castas autóctones que poucos ouviram falar no mundo.
No Vêneto e no Friuli se produzem todas as uvas internacionais: Chardonnay, Cabernet, Pinot, mas sempre houve a tendência de cultivar vinhas autóctones, como Friulano, Refosco, Ribolla Gialla, rosé com base de Raboso. Sempre procuramos "contar" o terroir e esses vinhos são os que identificam o terroir, e são bons.

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Fábio Muniz/Estúdio Lucena

"Quando se degusta um vinho, devese primeiro conhecer o terroir e depois degustar. Com base nisso, sei o que devo procurar no vinho"

Vocês estudam muito o terreno?
A primeira coisa que fiz quando cheguei no Friuli foi estudar o terreno, para entender o microclima, tipo de solo, que coisa produzir e onde. Nossa área vai de 0 a 350 metros. Óbvio que a 350 metros a temperatura é diferente de 0. Para dar um exemplo, estabelecemos que naquele nível se produz vinhos aromáticos tipo Traminer, Sauvignon, Malvasia. O importante para nós não era apenas ter a propriedade das vinhas, mas o conhecimento do terreno.

Uma das uvas pouco convencionais que você usa é a Müller Thurgau?
É uma vinha aromática que fazemos na parte norte da área de Grave, que é diferente do alemão e do sul do Tirol, pois temos um microclima diferente. A peculiaridade da Itália é a diversidade e se pode degustar produtos de zonas diversas. A Itália não é grande, mas tem essa característica. Meu Chardonnay, feito em Grave, é diferente do feito a 100 km de distância, em Collio. E 100 km não é nada. Não digo que é melhor, mas é diferente. Quando se degusta um vinho, deve-se primeiro conhecer o terroir e depois degustar. Com base nisso, sei o que devo procurar no vinho.

"Refosco é um vinho como o Pinot Nero, amado e odiado ao mesmo tempo"

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Fábio Muniz/Estúdio Lucena
"[O Prosecco] É um vinho que se diz fácil, mas não porque seja fácil de fazer, sim porque se toma uma segunda taça com certa facilidade. Um Prosecco não é um espumante, ponto. Nos Estados Unidos, transmitiu-se a cultura de que Prosecco é um método de elaboração. Não. É um vinho que nasce de uma uva que se chama Glera"

O que acha do Refosco?
Refosco é um vinho como o Pinot Nero, amado e odiado ao mesmo tempo. Pois se você o bebe logo que sai, ele é um pouco desarmônico. Você o sentirá tânico na boca, é quase um vinho de macho. Em vez disso, se trabalhado de outra maneira, torna-se um vinho aveludado, suave na boca, com um toque feminino. É um vinho típico, especialmente do Friuli-Venezia Giulia. Era considerado sempre - como o Merlot - um vinho base. Agora, pouco a pouco os produtores estão acreditando nesse vinho, melhorando a qualidade. Na zona de Grave, produz-se muito, pois não é difícil de cultivar. Tem aroma de amora, frutos vermelhos, que com o tempo evoluem para compota, marmelada, ideal para carne vermelha. Com sete ou oito anos, ele fica muito bom, pois tem uma bela tanicidade. A cor não é tão intensa, mas sem ser claro. Há alguns anos, comecei a fazer uma adega privada com as safras dos Refosco. Abri recentemente um de sete anos e meio e estava muito bom.

Você possui linhas de vinho com viés fashion. Acha que o vinho está vinculado com a moda?
Hoje o mundo do vinho é fascinante e fala de moda, por isso criamos uma linha de garrafas coloridas. Trabalhamos ela junto com desfiles de Roberto Cavalli, entre outros. O mundo do vinho faz parte dessa moda. Basta dar uma vestimenta justa para entender que tudo deve ser bonito. O meu consumidor deve gostar não só do produto dentro da garrafa, mas também da imagem. Ele tem que ter prazer de apresentar a garrafa na mesa.

VINHO AVALIADO

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