O poder da madeira

Gripe enogastronômica começou na Espanha

País está no centro desta revolução cultural mundial e sua culinária serve de palco para avaliar como os efeitos do carvalho no vinho se relacionam com a comida

por Carlos Cordeiro - Cwp

As escolas de gastronomia se multiplicam mundo afora, os livros tornam-se best-sellers quase instantaneamente, a tecnologia enogastronômica dá saltos quase impossíveis de serem acompanhados, os grandes chefs são celebridades internacionais e os vinhos alcançam preços estratosféricos. Tudo isso (ou quase) começou na Espanha, que está no epicentro da efervescência enogastronômica mundial.

Esta "gripe enogastronômica" que contagia o mundo nos dias atuais teve sua origem no que chamamos de "Revolução Espanhola". Depois de 40 anos sob rígido controle do estado, com supressão de liberdades, o criativo povo espanhol estava explodindo de ideias, e a entrada do país na Comunidade Econômica Europeia (em meados da década de 1980), que proporcionou os recursos financeiros necessários - além da reconquista da liberdade -, foi a centelha para a "Revolução Espanhola".

Enquanto na gastronomia chefs como Juan Mari Arzak e Pedro Subijana lançavam as bases e a fundamentação do movimento "La Nueva Cocina Española", - que mais tarde seria encabeçado por Ferran Adriá; na enologia, as técnicas de vinificação e cultivo começaram a ser atualizadas.

Foram introduzidas novas cepas, e as locais foram aperfeiçoadas; as técnicas de irrigação e mecanização se modernizaram, possibilitando a inclusão, em termos qualitativos, de novas áreas de produção. Regiões como Rioja e Ribeira del Duero, até então hegemônicas, tiveram de alargar os passos rumo à modernidade de forma a acompanhar zonas emergentes como o Priorat e Toro, por exemplo.

O segredo espanhol

Juntamente com a avalanche gastronômica, os vinhos espanhóis caíram nas graças dos consumidores mundiais. O segredo do sucesso da Espanha foi o não rompimento com as tradições locais, harmonizando o rústico e o sofisticado, o técnico e o caseiro e, principalmente, o novo e o tradicional. Em termos enológicos, esta associação entre o novo e o tradicional é clara na combinação entre as novas técnicas de plantio, cultivo, colheita, manuseio e vinificação e a utilização intensiva do carvalho na maturação dos vinhos.

A cultura do carvalho é tão arraigada que em algumas regiões há regras definidas e denominações específicas para os vinhos em função do período que permanecem em maturação na barrica e na garrafa (Crianza, Reserva e Gran Reserva).

Por séculos, a madeira é utilizada como material de armazenamento e transporte de vinhos, mas sua utilização como recipiente para maturação é bem mais recente.

O efeito do carvalho no vinho e na gastronomia

A madeira pronunciada do Milmanda exigiu pratos complexos, como o bacalhau trufado (foto) e a composição de vieiras e gaspacho

A utilização de barricas de carvalho no processo de envelhecimento cria condições favoráveis para que os componentes do vinho se desenvolvam e para que a madeira transmita características gustativas específicas ao vinho. Além disso, as barricas são importantes aliadas dos vinhateiros nos processos de clarificação e estabilização do vinho.

A suavização dos taninos através de um lento processo de oxidação e o aumento da complexidade do vinho pela adição de características relacionadas à madeira também são subprodutos esperados do processo de envelhecimento em barrica.

No campo da harmonização, a utilização maior ou menor da madeira no processo evolutivo do vinho deve sempre ser levada em conta, visto que os efeitos sobre os aromas e sabores do vinho podem ser relevantes.

Se fôssemos entrar nos detalhes químicos, teríamos de descrever os efeitos da lactona, da vanilina, do terpeno, da lignina e dos fenóis, mas, para o nosso propósito, basta termos em mente que a utilização do carvalho no envelhecimento do vinho agrega sabores de baunilha, coco, especiarias, defumados, cravo, caramelo, entre outros.

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Vinhos

Para trazermos à prática os efeitos do carvalho sobre os vinhos e sua decorrência no processo de harmonização, selecionamos seis vinhos, três brancos e três tintos, com diferentes períodos de estágio em madeira. Os selecionados foram:

Val de Sil 2008 - produzido 100% com a uva Godello, o Val de Sil não passa por madeira. O resultado é um vinho refrescante, com destaque para frutas maduras como melão, pera e maçã. Apresenta mineralidade intensa e uma textura cremosa incomum para vinhos sem passagem por barricas, mas sem prejuízo da acidez firme. O final é longo, fresco e extremamente agradável.

Quinta Apolonia de Belondrare y Lurton Verdejo 2007 - a cepa, aqui, é a Verdejo, e a pouco usual passagem desta variedade por carvalho, por cerca de nove meses, adicionou às frutas frescas, como melão e maçã, certo tostado, quase defumado, que, todavia, não parece desarmônico. Ao contrário, integrou-se ao vinho adicionando uma textura cremosa.

Milmanda 2007 - os 12 meses passados no carvalho francês não abafaram os aromas cítricos e florais do vinho, mas a agregação do carvalho é evidente no amanteigado e tostado. Um vinho elegante, complexo, profundo e, principalmente, muito bem equilibrado.

Pasanau Finca La Planeta 2005 - um blend de Cabernet Sauvignon (80%) e Garnacha (20%) envelhecido por um ano em carvalho francês. As frutas negras ainda são o carro chefe do vinho, principalmente cassis e ameixas. A madeira não passa despercebida, mas fica em segundo plano.

Convento San Francisco 2005 - este Convento San Francisco 2005 estagiou por 15 meses em barricas de carvalho, parte francês e parte americano. Isso fica bastante evidente já no nariz, em que os aromas de couro, grafite e tabaco se destacam. Na boca, aparecem algumas frutas negras como a amora. A estrutura é muito equilibrada neste vinho encorpado, profundo e complexo.

Viña Pedrosa La Navilla 2004 (Perez Páscuas) - 20 meses de envelhecimento no carvalho francês amansaram os taninos deste Tempranillo de altitude. A madeira é evidente, mas sem desequilíbrios. As frutas negras estão preservadas e somam-se ao tabaco e ao tostado adicionado pelo carvalho. Um vinho suave, quase sedoso.

Tapas

Para acompanhar os vinhos e possibilitar uma ampla gama de experiências gustativas, optamos pela utilização de tapas. Elas são mais do que uma tradição gastronômica, compõem a cultura social e de convívio da Espanha. A tradição de "ir a tapeo", ou percorrer os diversos bares de tapas de uma região, revigora-se a cada dia.

Como parte integrante e fundamental da cultura gastronômica espanhola, as tapas também foram incluídas no processo de modernização. Às fatias de presunto serrano ou azeitonas colocadas em pequenos pratos para "tapar" os copos de Xerez no calor da Andaluzia evitando as moscas, foi acrescida toda sorte de ingredientes e preparações. As tapas, hoje, podem ser encontradas em diversas formas, como: a la plancha (grelhados), estofados (assados ou cozidos), fritos, ensaladas, sopas, pintxos (espetados), montaditos (pequenos sanduíches), bocadillos (sobre fatias de pão), entre outras.

INTENSIDADE DOS SABORES DA MADEIRA

A intensidade da transferência de sabores ao vinho está relacionada a uma série de fatores, dentre os quais:

o tipo de madeira - apesar de o carvalho ser a madeira amplamente dominante, existem diversos tipos de carvalho subdivididos entre os grupos americano, francês e leste europeu, cada qual associado a um perfil gustativo diferenciado;

a técnica de confecção da barrica - neste item são vários os fatores a influenciar a característica de transmissão de sabores: a forma como as pranchas de madeira são cortadas, o método de secagem das pranchas e o grau de aquecimento e torra das barricas;

o tamanho do recipiente - evidentemente, quanto maior a superfície de contato entre vinho e madeira, maior o impacto na transmissão de sabores;

a idade do recipiente - quanto mais novos os recipientes, maior a intensidade aromática. A capacidade de transmissão declina com o tempo e a quantidade de uso dos recipientes;

o tempo de permanência no recipiente - a influência da madeira no caráter do vinho também está direta e positivamente relacionada ao tempo em que o vinho permanece no recipiente.



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E está enganado quem pensa que as tapas são necessariamente pratos simples, mal acabados e mal apresent ados. Uma tapa moderna pode ser tão elaborada e de sabores tão complexos como qualquer prato de alta gastronomia. A nova cara das tapas pode ser encontrada do País Basco à Andaluzia, da Galícia à Catalunha.

As tapas utilizadas foram:

Camarões a La Plancha com chips de alho e limão em conserva;
Vieiras em gaspacho de lichia e Pedro Ximenez;
Polvo Múrcia (cozido em cerveja e acompanhado de batatas com açafrão);
Mariscos com serrano e pinoles;
Bacalhau trufado e ovas (sopa); Brandade de chorizo (bocadillo);
Coxinha de codorna em cozido de lentilha, porcini e moranga;
Cones de presunto serrano, ovos de codorna e pão;
Spicy Meatballs de cordeiro com hortelã e molho de Xerez e amêndoas;
Paleta de cordeiro e Fideo.

RESULTADO DAS HARMONIZAÇÕES

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Madeira x comida

O Quinta Apolonia combinou notas frutadas e presença de carvalho, que adicionou complexidade ao vinho sem prejudicar a refrescância e foi a chave para o sucesso com mariscos e polvo

Conforme a expectativa, os vinhos tintos não foram bem com os pratos à base de frutos do mar. Nem mesmo quando se emparelharam com o bacalhau os tintos criaram harmonizações adequadas, isso em função da presença das ovas, que trouxeram o prato para dentro do mar.

Os brancos, por sua vez, conseguiram alguns sucessos entre os pratos mais encorpados, com destaque para o Milmanda e a codorna. Mas foi com cada um em seu terreno que as coisas funcionaram e fizeram valer a questão regional.

Os vinhos brancos sem passagem por carvalho tendem a manter o nível de acidez mais elevado e, consequentemente, possuem um caráter mais refrescante. Em função disso, pratos mais ácidos e leves são a pedida. No caso do Val de Sil, estas características estão bem marcadas e foram fundamentais para fazer a ligação com a conserva de limão dos camarões e com o gaspacho de lichia das vieiras. Além disso, sua mineralidade permitiu sucesso com os demais pratos à base de frutos do mar.

O Apolonia situou-se entre os dois outros brancos, combinando notas frutadas e a presença do carvalho. O carvalho aqui adicionou complexidade ao vinho sem prejudicar a refrescância e foi a chave para o sucesso. Agradou com "gregos e troianos", ou mariscos e polvos. Com os mariscos, o pinoli e o presunto serrano são pontes para o carvalho, pelo lado do defumado, assim, o prato, de certa forma, mimetizou as nuances do vinho.

O frescor dos mariscos encarava a acidez, enquanto o pinoli e o serrano faziam frente ao carvalho. O polvo, diferentemente, alcançou o carvalho pelo lado da cremosidade - própria e da batata.

A complexidade do Milmanda exigiu pratos do mesmo porte. As vieras formaram par perfeito. Se por um lado a acidez pronunciada do gaspacho clamava por vinhos ácidos, por outro as amêndoas e o Pedro Ximenez iam em sentido oposto; e a madeira pronunciada do Milmanda atendeu ao chamado.

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Entre os tintos, mais uma vez o centro do espectro obteve os melhores resultados. O Pasanau fez belas combinações, mas não chegou a ser brilhante. O fato de ter estagiado por menos tempo na madeira deu ao vinho um ótimo equilíbrio entre fruta e madeira, porém, por se tratar de um Cabernet Sauvignon apresentou corpo demais para os pratos mais leves como a codorna, a brandade e os cones de serrano; e não esteve complexo o suficiente para encantar com os pratos de cordeiro.

Na outra ponta, o Viña Pedrosa exigiu corpo e complexidade para brilhar, o que aconteceu com as meatballs de cordeiro em molho de amêndoas e Xerez. Mais uma vez as amêndoas torradas fizeram a ponte para o carvalho, enquanto a intensidade do Xerez equilibrava os corpos. Os tostados de tal forma se harmonizaram que as meatballs pareceram ter sido cozidas na mesma barrica.

Os vinhos com maior presença de carvalho sempre necessitarão de receitas complexas, não bastando pratos encorpados. A diversidade de camadas que o vinho costuma ter se apresenta gradualmente e um prato unidimensional ficará pobre diante de tanta opulência.

O Convento San Francisco, por sua vez, conseguiu alcançar três níveis gustativos, destacando: as frutas quando harmonizado com os pratos menos encorpados como a codorna, por exemplo; os tostados e defumados quando provado com os cones de serrano; e o couro e o tabaco quando testado com o cordeiro.

Os dois últimos aspectos, decorrentes diretos da longa maturação, só podem ser considerados satisfatórios quando o vinho permite uma combinação como a primeira. Isso porque revela um vinho equilibrado no qual, mesmo após longo período de envelhecimento, o carvalho não é o único ator no palco. Um camaleão de sucesso.

Confira as avaliações completas na seção Cave (a partir da página 83)

MAIS:A Madeira e o Vinho - Entenda a influência da madeira na produção de vinhos

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