Grande Dame de Bordeaux

Sylvie Cases, primeira presidente mulher da Union de Grands Crus de Bordeaux, atua com equilíbrio entre finesse e estrutura, assim como o ícone do Pichon-Longueville Comtesse de Lalande

por Christian Burgos

Por: Clara Asarian

O ano nem bem começou e já podemos afirmar que um dos três mais importantes eventos de vinho do ano aconteceu com a passagem da Union des Grands Crus de Bordeaux pelo Brasil. Essa foi a primeira vez que a famosa associação escolheu o Brasil para apresentar uma safra - a histórica 2009. Durante sua passagem tivemos a oportunidade de compartilhar momentos com os produtores e de entrevistar com exclusividade a presidente da associação, Sylvie Cazes, do clã proprietário do Château Lynch-Bages e irmã mais nova de renomado Jean-Michel Cazes.

Essa mulher, que começou sua carreira dando aulas de inglês e instalando um centro de ensino de vinhos na propriedade da família, é uma combinação rara de caráter. Sylvie, mãe de três filhos adultos, é muito elegante (com um sorriso que deixa o interlocutor rapidamente à vontade) e, ao mesmo tempo, é dona de um senso de missão e grande força de trabalho. Pudemos presenciar sua atuação, chegando cedo para averiguar a organização de cada evento e ficando sem parar para almoço a fim de dar atenção e servir pessoalmente àqueles que querem degustar e saber mais dos vinhos do mítico Châteaux Pichon- -Longueville Comtesse de Lalande (muitas vezes chamado Pichon-Lalande).

Além de dirigir o Pichon-Lalande, considerado um dos super "Second Cru" da classificação de 1855, Sylvie é presidente (a primeira mulher) da Union des Grand Crus e faz parte do conselho da cidade de Bordeaux.

Como foi o início de sua carreira em Lynch-Bages?
Estava em duas vertentes: primeiro, na parte de comunicação - que incluía eventos, relações com a imprensa, viagens ao redor do mundo para a companhia - e, por outro lado, desenvolvia atividades relacionadas à educação, como escolas de vinho e atividades de recepção, como sala de visitas, agência de viagens, esse tipo de coisa.

Qual seu trabalho desde que assumiu o Pichon-Lalande?
Comecei há cerca de um ano e atuo como diretora geral das três propriedades. Quando cheguei, Gildas d'Ollone estava lá e conversamos com Frédéric Rouzaud, CEO do Grupo Roederer. Percebemos ter o mesmo pensamento, de que é muito importante ter uma visão patrimonial de uma vinícola, centrada no cuidado com os solos, vinhedos, propriedade, adega etc... E ele fazia isso desde 2007, trabalhando nos vinhedos, reorganizando-os, estudando o solo e o subsolo, e também incluindo procedimentos ambientais. Mas os estudos não haviam sido completados e alguns não tinham sido implementados a fundo. As reestruturações eram feitas aos pouquinhos, então havia bastante a ser feito. Outra coisa interessante que fizemos foi a reorganização do trabalho. Em Bordeaux, ainda é muito comum que os trabalhadores sejam pagos pela quantidade de serviço que fazem (recebem mais quando trabalham em mais videiras), então eles acabam trabalhando bastante, mas fazendo tudo muito rápido. Então, paramos de pagá-los "por videira", por produtividade, e os treinamos para que aprendessem como deveriam tratar cada videira: corretamente, com cuidado, atenção e calma. Queremos que as pessoas trabalhem bem, que tomem conta de seus corpos assim como tomam conta da vinha.


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"As pessoas falam de um estilo feminino do Pichon, mas, para mim, trata-se da estrutura poderosa do estilo Pauillac combinada com a finesse de Saint-Julien"

Fotos: Divulgação

As pessoas que vimos trabalhando na colheita no ano passado eram de meiaidade ou mais velhas. Isso é normal em Bordeaux?
Sim, porque é muito difícil encontrar pessoas mais jovens para fazer esse trabalho. Elas preferem fazer outro tipo de serviço, gostam de estar na cidade. E esse é um dos motivos pelos quais realmente temos que trabalhar na reeducação das pessoas, para dar-lhes o máximo de conforto possível e induzir os mais jovens a virem trabalhar conosco. Já no lado da vinícola, nossas instalações mereciam renovações que agora também estamos fazendo na sala dos tanques e outra sala de barricas.

Por: Clara Asarian

"Temos uma pirâmide de produção de vinhos e precisamos nos desfazer da base, seja arrancando alguns vinhedos, seja não dando AOC para alguns deles"


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Qual o ponto de aumentar a sala de barricas se a produção está limitada pelos vinhedos atuais?
Queremos ter maior flexibilidade na hora de produzir o vinho, na fermentação e tudo mais. Trabalharemos com tanques menores e mais precisão em cada parcela de vinhedo, assim não precisaremos misturar as uvas de cada parcela. Então, ao invés de 30 tanques, vamos ter mais de 100, de diferentes tamanhos, sendo alguns para novas metodologias de produção.

Atualmente, quantos hectares vocês têm? Como eles são divididos?
Em produção, 89. Temos: 35% de Merlot, 45% de Cabernet Sauvignon e os demais se dividem em Cabernet Franc e Petit Verdot.

Na reestruturação dos vinhedos, vocês mudarão algo? As safras recentes de seus vinhos têm mais Cabernet Sauvignon do que o percentual nos vinhedos...
Posso dizer que não pretendemos aumentar a Petit Verdot. De fato, nosso principal vinho tem mais Cabernet Sauvignon do que sua participação proporcional na área de plantação, até porque temos um segundo vinho e fazemos uma ótima seleção. Como você sabe, Philippe Moreau é o responsável técnico da vinícola agora. Na safra de 2011 estamos fazendo uma forte seleção de uvas entre o Grand Vin e o segundo vinho. Acredito que nesta safra teremos um incremento significativo do segundo vinho.

De alguma forma o segundo vinho assegura a qualidade do Grand Vin, não?
Sim. Dependendo da safra, você pode fazer uma seleção menor ou maior, e ter a flexibilidade para alcançar o objetivo de qualidade que se quer atingir.

Bordeaux está enfrentando um momento de transição, com uma nova visão estratégica de produção. Como enxerga isso?
No momento, concordo com a visão do CIVB (Conselho Interprofissional do Vinho de Bordeaux). Temos uma pirâmide de produção de vinhos e precisamos nos desfazer da base, seja arrancando alguns vinhedos, seja não dando AOC para alguns deles, reestruturando os tipos de produção; e também ajudando-os a se reestruturar, assim como suas propriedades. Talvez produzindo mais vinhos rosés, que estão na moda atualmente. Para o resto da pirâmide, precisamos ajudar os que estão num nível logo acima a reestruturar suas propriedades, unir-se para ter acesso à melhor infraestrutura e também ajudar nas exportações. 90% do mercado para esses vinhos estava na França e agora precisamos ajudá- -los a encontrar novos mercados. Para o topo da pirâmide, é preciso continuar produzindo vinhos melhores a cada ano, o que acho que seja a preocupação da maioria dos produtores Grand Cru. Estamos nos esforçando continuamente para avançar em pesquisa, trabalhando principalmente no conhecimento dos vinhedos e das videiras, que é onde estamos tendo mais avanços nos últimos 15 anos.

Fotos: Divulgação

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Há pessoas que pensam que a maioria dos avanços tecnológicos recentes na produção de vinho vem da compreensão dos processos químicos e você diz que, na verdade, eles vieram na agronomia.
Sim, penso que sim. Temos que olhar para os dois, mas, em Bordeaux, nosso desafio real é otimizar a riqueza dos solos e adaptar o clima e a maturação das uvas.

Quando você diz adaptação ao clima, refere-se ao fato de que a Cabernet Sauvignon está tendo mais participação nos seus vinhos?
Para Pichon, sim, com certeza. Estamos aumentando a participação da Cabernet com o cuidado de manter o estilo de nosso vinho. Essa é uma das nossas apostas, aumentar, aos poucos, a Cabernet, para que o estilo do vinho seja mantido - visto que ele é um dos melhores representantes do sul de Pauillac, bem perto de Saint- -Julien - mantendo a riqueza, força e estrutura que encontramos nessa uva. As pessoas falam de um estilo feminino do Pichon, mas, para mim, trata-se da estrutura poderosa do estilo Pauillac combinada com a finesse de Saint-Julien.

"Temos: 35% de Merlot, 45% de Cabernet Sauvignon e os demais se dividem em Cabernet Franc e Petit Verdot"

A Cabernet está indo bem por causa das mudanças no clima ou por conta de um maior conhecimento em torno dela?
O que importa é que conseguimos "domá-la" agora, lidar com sua maturação, acompanhar passo a passo. Antes, costumávamos tirar férias no verão, agora não mais... [risos]. Agora temos muito trabalho no verão, temos que acompanhar tudo. Especialmente nesse ano, que tivemos uma primavera bastante quente, mais do que jamais tivemos. Você poderia dizer que é o aquecimento global, mas deve lembrar que também tivemos um inverno muito frio. O necessário é adaptar-se a quaisquer circunstâncias, e o maior avanço que tivemos foi exatamente na maturação.

E, nesse caso, ter habilidade para o blend é essencial, certo?
Sim, é preciso ter flexibilidade nos tanques, porque a maturação de uma parcela pode não ser a mesma das demais. A maturação numa parcela mais baixa é diferente de uma mais alta, então você vai precisar de dois tanques diferentes. E isso torna tudo muito mais preciso.

Há muita curiosidade no Brasil sobre o modelo dos "négociant" em Bordeaux.
Esse é um sistema que sempre gera perguntas. Ele existe há muito tempo e foi questionado várias vezes. Mas já provou que é um sistema incrível, por diferentes motivos. Um deles é o fato de os négociants terem constituído uma incrível rede de distribuição. Graças a eles, temos 5 mil pessoas vendendo o Pichon nesse momento no mundo todo, o que é absolutamente único.
O outro motivo é que podemos vender a futuro, oito meses depois da colheita, o que contribui para o fluxo de caixa. Eles também atuam como reguladores. Se o mercado não estiver bom, eles podem segurar o vinho, o que é muito bom para nós. E, além disso, como eles são a força comercial, nós, produtores, podemos viajar e promover nossos vinhos em conjunto, unidos e sem a preocupação imediata em vender.

Château Pichon-Longeville 2004 - A. Gariteai
"Todo movimento protecionista, de qualquer país, se mostrou negativo. Isso não vai melhorar a qualidade de vinhos brasileiros, só vai privar os brasileiros de terem acesso a outros vinhos
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Por conta do sistema de négociant, vocês não se veem como competidores, não?
Exatamente, esse é o trunfo dos négociants. Não estamos competindo uns contra os outros, somos amigos que viajam juntos para promover nossos vinhos. Esse é um dos motivos pelos quais nossa energia é tão boa.

Você viaja o mundo inteiro a trabalho. Por que o Brasil foi um dos seus destinos?
O Brasil é muito importante, pois é um mercado em crescimento, uma das poucas economia em ascensão. Há um grande aumento no consumo de vinho, a atividade vinícola de vocês está se desenvolvendo bastante e o consumo do vinho francês está crescendo. Mas também sei que os impostos aqui são muito altos.

Você sabe que esse é um problema que pode piorar?
Ouvi e fiquei preocupada. O fato de as pessoas terem mais possibilidades de conhecer vinho fará com que elas bebam mais. No caso do vinho, todo movimento protecionista, de qualquer país, se mostrou negativo. Isso não vai melhorar a qualidade de vinhos brasileiros, só vai privar os brasileiros de terem acesso a outros vinhos.

Falando sobre mercado e taxas, o que você pensa dos preços dos seus vinhos no Brasil?
Eles são muito altos se comparados ao preço que vendemos em outros países. Não podemos fazer vinhos mais baratos só por conta da carga de impostos. E vocês, brasileiros, merecem mais do que isso. Tudo está crescendo aqui, e essas medidas vão regredir o crescimento. Ir para frente é ter mais gente bebendo vinho, experimentando mais, conhecendo mais, e não estou falando só dos vinhos de Bordeaux, mas vinhos do mundo todo. A China é um grande exemplo quando se fala de abertura de mercados. Quando você quer desenvolver a produção interna, precisa gerar interesse, aumentar o consumo, e isso se faz sem protecionismo. A Índia também é um bom exemplo, pois se fechou, aumentou as taxas, e agora não tem crescimento no setor vinícola.

A Union des Grands Crus de Bordeaux é uma associação voluntária e sem suporte governamental?
Ela é uma associação voluntária de pessoas que, juntas, organizam eventos ao redor do mundo para promover seus vinhos. É uma associação privada, então não recebemos dinheiro de ninguém, nós mesmos a mantemos. Somos 135 e, durante as viagens, a média é de 80 a 100 pessoas viajando juntas. Organizamos cerca de 50 eventos ao ano, como degustações e jantares. A maioria deles é para mostrar a nova safra que irá chegar ao mercado, queremos permitir que as pessoas degustem e façam suas escolhas conscientemente.

Você acredita que, às vezes, Bordeaux intimida os consumidores?
Acho que sim, e esse é o motivo de estarmos aqui com os consumidores, para que de alguma forma possamos ajudar, para que eles entendam que isso é só um símbolo, que esqueçam as diferenças de classificação, denominação etc. Nossos vinhos são "solo e pessoas", eles têm que entender os solos, as uvas e os vinhos, e precisam encontrar as pessoas que os produzem, para entender sua filosofia, seu espírito.

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