O poeta do vinho

Omar Khayyam desafiou as leis islâmicas para celebrar o vinho e a vida

Para o poeta e filósofo do Islã, os prazeres do vinho se confundem com o amor

por Por Arnaldo Grizzo

“Alcorão, o livro supremo, pode ser lido às vezes, mas ninguém se deleita sempre em suas páginas. No copo de vinho, está gravado um texto de adorável sabedoria que a boca lê a cada vez com mais delícia”

(Quadra atribuída ao Rubaiyat de Omar Khayyam, traduzida por Alfredo Braga)

Maomé viveu entre 570 e 632 d.C. A religião que criou ganhou o coração dos árabes e se tornou uma das maiores do mundo. Assim como todas as religiões, sua difusão passou por processos conturbados, levou a guerras, mas, enfim, estabeleceu-se entre seus seguidores, especialmente no Oriente Médio.

No século XI, já muito tempo depois da expansão muçulmana que conquistou todo o norte da África e boa parte do sul da Europa, o mundo árabe continuava em polvorosa. As tribos mais poderosas ainda guerreavam contra o Império Bizantino, mas também precisavam se preocupar com outros povos islâmicos que viviam batalhando entre si. O fim do século foi marcado pela convocação da Primeira Cruzada e, logo em seguida, pelo início da guerra entre Bizâncio e os otomanos, que, tempos depois, levaria à queda definitiva do império.

Foi nesse período conturbado que viveu um dos mais célebres matemáticos e astrônomos, além de poeta, de toda a história do islamismo. Estima-se que Omar Khayyam nasceu em 18 de maio de 1048 na cidade persa de Nishapur, no atual Irã – uma cidade importante, na Rota da Seda, uma das maiores do mundo naquela época, rivalizando com o Cairo e Bagdá. Acredita-se que Ghiyath al-Din Abu’l-Fath Umar Ibn Ibrahim Al-Nisaburi al-Khayyami, seu nome completo, era filho de fabricantes de tendas, pois Khayyam é uma derivação da palavra árabe para essa função.

Além de poesia, Khayyam escreveu importantes tratados de matemática

No entanto, o jovem não seguiu o ofício dos pais e foi enviado para estudar em Samarcanda (no atual Uzbequistão), por volta de 1070. Antes mesmo dos 25 anos, Khayyam já se mostrava um exímio pensador, tendo escrito seu “Tratado sobre a Demonstração de Problemas de Álgebra”, considerado um dos mais importantes tratados anteriores à Era Moderna, além de outras tantas obras relacionadas à matemática e astronomia.

Turcos seldjúcidas e o calendário

Na época, a primeira dinastia unificada turca, chamada seldjúcida, estava em formação. Toghril Beg, fundador da dinastia, ingressou na região de Khorasan (onde ficava Nishapur e Samarcanda), e fez da cidade de Isfahan sua capital. Em 1073, seu neto, Malik-Shah, comandava o local e convidou o sábio Khayyam para gerir seu observatório estrelar. Por 18 anos, o matemático persa ficou a cargo do estudo astronômico do reinado seldjúcida. Nesse tempo, o sultão pediu a seus conselheiros e cientistas que reformassem o calendário, buscando um mais preciso. Khayyam foi um dos oito homens empregados nessa tarefa que criou o calendário Jalali (considerado mais assertivo do que o gregoriano), adotado pelos persas em 1079.

Até 1092, quando Malik-Shah morreu (acredita-se que assassinado no caminho entre Bagdá e Isfahan), Khayyam pôde desenvolver seus estudos em matemática e astronomia em um dos raros períodos de tranquilidade política na região. Ele estudou profundamente os postulados de Euclides, dito “pai da geometria”, e criou formas de resolver equações cúbicas, por exemplo. Sua produção foi tamanha que chegou-se até a acreditar que ele havia demonstrado uma teoria heliocêntrica (na qual a Terra gira em torno do Sol) séculos antes de Galileu.

Com a morte do sultão e mesmo antes, com a conquista da Anatólia (que compreende boa parte do território da Turquia de hoje) por parte dos seldjúcidas, a região viu sucederem diversas batalhas. Aliás, um apelo do imperador bizantino para que o papado reunisse tropas para combater os turcos na Anatólia foi uma das desculpas para se formar a Primeira Cruzada, em 1095, convocada pelo papa Urbano II. Khayyam viveria ainda até 4 de dezembro de 1131, quando morreu em sua cidade natal, Nishapur.

Filosofia e vinho

Sabe-se relativamente pouco da vida de Omar Khayyam. Além de seus tratados matemáticos, ele também escreveu obras de cunho filosófico, apesar de ter estudado e ensinado até o fim da vida os pensamentos do mais conhecido filósofo do islã, Avicena. A despeito de suas teorias matemáticas, sua fama mundial só ocorreria séculos depois de sua morte, com a tradução de seus Rubaiyat, quartetos rimados, pelo poeta inglês Edward Fitzgerald, em 1859.

Não se sabe ao certo quantos quartetos Khayyam escreveu. Alguns acreditam que foram mais de 600, mas a autoria de boa parte deles é incerta, já que essa forma poética de escrever em quartetos (chamada de rubaiyat) era bastante comum. Ainda assim, é através desses pequenos poemas que se consegue entender um pouco da vida e da alma desse persa que, muitas vezes, desafiou a lei muçulmana ao cantar as benesses do vinho, bebida proibida pelos ensinamentos do islã. Neste quarteto, percebe-se o seu apreço pelo vinho: “Nunca procurei saber onde encontrar o manto da mentira e do ardil, mas sempre andei à procura dos melhores vinhos”.

Além do vinho, Khayyam celebra a vida em seus poemas. Ele percebe a efemeridade dessa passagem do homem sobre a Terra e não se furta em dizer que devemos aproveitar os momentos, numa filosofia de carpe diem, como se observa nesse trecho: “Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã. Apanha um grande copo cheio de vinho, senta-te ao luar, e pensa: Talvez amanhã a lua me procure em vão.”

“Nunca, por um momento sequer, deixe sua taça sem uso! O vinho mantém entretidos o coração, a fé e também a razão”

Há inúmeros outros quartetos com a mesma tônica e que mostram o vinho como um fiel companheiro: “Só de nome conhecemos a felicidade. O nosso melhor amigo é o vinho; afaga a única que te é fiel: a ânfora, cheia do sangue das vinhas”. E ainda: “Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade, a divina estação das rosas, da vida eterna, dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta o instante fugidio que é a tua vida”.

Em diversos trechos, a lei de Maomé também é questionada: “Quando me falam das delícias que na outra vida os eleitos irão gozar, respondo: Confio no vinho, não em promessas; o som dos tambores só é belo ao longe”. Em um ponto, chega ao cúmulo de perguntar: “Alá vos prometeu vinho no Paraíso, por que então o vinho deveria ser considerado um vício na Terra?” Assim como em outro quarteto aponta: “Já que nem a verdade nem a certeza estão em nossas mãos, não desperdicemos nossas vidas na dúvida de uma terra prometida, não recusemos uma taça de vinho, pois, sóbrios ou bêbados, na ignorância ficamos”.

Para o poeta, os prazeres do vinho se confundem ainda com os do amor e ele questiona novamente: “Um jardim florido, uma bela mulher, e vinho. Eis o meu prazer e a minha amargura, o meu paraíso e o meu inferno. Mas quem sabe o que é céu e o que é inferno?” O vinho e a mulher são suas desculpas: “Não vamos falar agora, dai-me vinho. Nesta noite a tua boca é a mais linda rosa, e me basta. Dai-me vinho, e que seja vermelho como os teus lábios; o meu remorso será leve como os teus cabelos”. E também seu prazer: “Não aprendeste nada com os sábios, mas o roçar dos lábios de uma mulher em teu peito pode te revelar a felicidade. Tens os dias contados. Toma vinho.”

Khayyam, por fim, canta as benesses do vinho: “O vinho dá-te o calor que não tens; suaviza o jugo do passado e te alivia das brumas do futuro; inunda-te de luz e te liberta desta prisão”. E declara com a sabedoria que os anos lhe deram: “Nunca, por um momento sequer, deixe sua taça sem uso! O vinho mantém entretidos o coração, a fé e também a razão”.

palavras chave

Notícias relacionadas