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Entenda a diferença entre os vinhedos plantados em Pé Franco

Para alguns produtores, somente vinhas plantadas deste modo exprimem o real gosto do terroir

por Alexandre Lalas

Na metade do século XIV uma pandemia de peste bubônica dizimou, segundo alguns pesquisadores, cerca de um terço da população mundial. Altamente contagiosa, a bactéria Yersinia pestis era transmitida pelas pulgas dos ratos pretos indianos e outros roedores. O número de mortos varia de acordo com o historiador, mas acredita-se que em torno de 75 milhões de pessoas tenham perdido a vida. Populações, cidades e economias foram afetadas. A pandemia entrou para a história com o nome de Peste Negra.

Para as videiras, a grande praga veio alguns séculos depois da pandemia de peste bubônica. Proporcionalmente até mais letal para as plantas do que foi a Peste Negra para os homens, essa praga arrasou a indústria, levou à falência produtores, dizimou plantações. Dessa vez, não eram as pulgas dos ratos negros os vilões, mas, sim, um inseto que cruzou o Atlântico, vindo da América do Norte, no final da década de 1850: a filoxera.

Para Luís Pato (acima), a diferença entre pé franco e enxertia está no vigor da planta

O primeiro registro documentado da doença aconteceu em 1863, no Languedoc, na França. Misteriosamente, as vinhas iam murchando e morrendo. Na ocasião, os viticultores não notaram a presença do inseto e compararam o processo de evolução da doença ao da tuberculose. Rapidamente, a praga espalhou-se pela França e pela Europa. Em 15 anos, 40% das vinhas da Europa estavam arrasadas.

Ninguém sabia exatamente a razão de as plantas misteriosamente murcharem. Até que, em 1868, o biólogo francês Jules-Emile Planchon e dois colegas descobriram, por acaso, um enxame de filoxera sugando as raízes de uma planta. Nascia ali a primeira teoria relacionando o inseto à peste que assolava as vinhas europeias. A ideia de Planchon foi confirmada apenas dois anos depois, pelo entomólogo americano Charles Valentine Riley. Mas a descoberta não trouxe resposta imediata à peste que se alastrava incontrolável. Em desespero, produtores tentavam de tudo. Pesticidas eram ineficazes. O controle natural da epidemia, com o uso de sapos e outros predadores, não funcionou.

Então, dois viticultores franceses, Leo Laliman e Gaston Bazille, sugeriram a possibilidade de que a variedade de vitis vinifera podia ser enxertada em porta-enxertos de videiras americanas, resistentes à doença, resolvendo assim o problema. A tática foi testada e funcionou. Mas ainda houve bastante discussão entre os viticultores até que o método fosse largamente utilizado na reconstrução das videiras mundo afora.

Sem medo da praga
Como até hoje ainda não foi descoberto um remédio eficaz no combate à filoxera, recomenda-se a enxertia, em que a muda é formada por meio do enxerto da planta-mãe, com uma ou duas gemas, em uma estaca de um porta-enxerto. No entanto, ainda hoje, alguns produtores desafiam as probabilidades e a filoxera e plantam suas vinhas em pé franco, isso é, fincam diretamente as raízes da planta-mãe no solo, sem o uso de um porta-enxerto. E os que fazem uso desse expediente defendem com unhas e dentes essa opção.

Há 23 anos, o português Luis Pato resolveu cultivar 1,2 hectare da casta Baga diretamente em pé franco. O enólogo alimentava o sonho de fazer um vinho como faziam os antigos, antes da chegada devastadora da filoxera à Europa. Para aumentar as chances de sucesso, escolheu um solo arenoso, usualmente rejeitado pelo inseto. Em 1995, sete anos após o plantio, Pato finalmente comemorou a primeira vindima do que seria batizado Quinta do Ribeirinho Pé Franco. Deu tão certo que o enólogo dobrou a área que tinha plantada em pé franco. A diferença, Luis Pato explica:

“Em termos de viticultura, o pé franco não difere do enxertado sobre parreira americana. A grande diferença é no vigor da planta, que, com o pé americano, aumenta enormemente. As raízes da parreira americana são mais fortes e desenvolvem-se em profundidade. Enquanto isso, as de pé franco (europeias apenas) apresentam raízes frágeis que saem dos entrenós que estão enterrados”, conta Pato. “A dimensão dos cachos e dos bagos é bem menor na parreira em pé franco que na enxertada. A sensibilidade às pragas é semelhante. Basicamente, a grande diferença surge no rendimento de uma parreira em pé franco, que é cerca de um quinto do de uma parreira enxertada sobre americano. Julgo que o aumento de vigor que, após a filoxera, a parreira americana induziu na europeia foi a razão da quase perda da uva Touriga Nacional, por esta ser muito sensível ao desavinho (perda de cachos durante a floração) quando se apresenta com muito vigor. Provavelmente, o mesmo sucedeu com a Carménère em Bordeaux, o que justifica o seu desaparecimento e apenas a sua permanência no Chile, onde a rega por inundação impedia o desenvolvimento da filoxera”, sugere Pato.

Geografia chilena ajuda os produtores locais a optarem por usar o pé franco, com menos risco de pragas

No Novo Mundo
Jimena Castañeda, da vinícola argentina Nieto Senetiner, diz que a decisão entre plantar uma vinha com pé franco ou porta-enxerto depende do tipo de solo. “Na Nieto temos quatro fazendas próprias, algumas em pé franco e outra de pé americano. O enxertado tem a vantagem de ser mais resistente a diferentes doenças e pestes, sobretudo nematoides e a filoxera, que ficam no solo e podem estragar as raízes”, pondera. “Em Alto Agrelo, a 1.150 metros de altitude, onde temos Malbec e um pouco de Pinot destinado a espumantes, está tudo em pé enxertado. É um solo com muita pedra e pouquíssima matéria orgânica. Já em Agrelo, está tudo em pé franco, pois é um solo franco-argiloso e a vitis vinífera é mais resistente nesse tipo de solo”, explica.

O Chile é um dos paraísos para os amantes dos vinhos cujas uvas provêm de vinhedos plantados em pé franco. Por conta da privilegiada condição geográfica, protegido por barreiras naturais, o país conseguiu escapar praticamente ileso da peste que abalou a viticultura mundial. Mesmo assim, para não correr riscos, alguns produtores chilenos recorrem ao uso de porta-enxertos. Marcelo Retamal, enólogo da De Martino, é um ferrenho defensor das vinhas em pé franco. E conta a razão:

“Para mim, o uso de porta-enxerto é algo antinatural e um grande alterador do terroir. Se você tem, em um mesmo vinhedo, uma uva sobre distintos porta-enxertos, ou seja, sobre pés diferentes, certamente você terá um monte de vinhos diferentes”, assegura Retamal. “Para mim, o pé franco assegura a melhor expressão do terroir”, explica.

“No entanto, já li que algumas pessoas defendem que o uso de porta-enxertos em clones específicos de algumas variedades entrega vinhos mais homogêneos, mais fáceis de trabalhar. No meu ponto de vista, o uso de clones combinado com o de porta-enxertos nos vinhos de alta gama é mais uma das práticas que acabam por causar uma padronização nos vinhos atuais, isso somado ao uso abusivo das barricas, leveduras selecionadas e outros recursos, que findam por produzir vinhos sem personalidade e difíceis de associar a algum lugar em particular”, argumenta o enólogo chileno. “Aqui no Chile, eu prefiro, para os vinhedos que têm como finalidade os vinhos de alta gama, conviver com os nematoides e não usar porta-enxertos nem clones específicos. Sou favorável a usar uma mescla de clones da mesma casta, assim terei mais variedade e complexidade nos meus vinhos de um terroir particular”, defende.

Divulgação
Vinha de pé franco da Bodega Ponce

O verdadeiro gosto do terroir
Juan Antonio Ponce, da Bodegas Ponce, de Manchuela, na Espanha, compartilha da opinião de Marcelo Retamal. Para ele, “o pé franco mostra a pureza de uma variedade”. Produtor de um vinho chamado PF (Pie Franco), Ponce elenca uma série de argumentos pró-pé franco. “As uvas plantadas em pé franco não são modificadas pelas características de um porta-enxerto. A qualidade e o refinamento melhora a cada vindima, assim como são refletidas com mais intensidade as características do terroir de onde elas vêm”, garante o espanhol.

Na Grécia, o enólogo Yiannis Paraskevopoulos, da Gaía Wines, defende que os grandes vinhos são aqueles que expressam o terroir e, “mais especificamente, a ‘mineralidade’ do solo”. Com vinhas de cerca de 80 anos em suas propriedades, o grego, que estudou em Bordeaux, monta uma lógica de raciocínio para afirmar a vantagem do uso do pé franco: “Para alcançar isso (um vinho ter a expressão do seu terroir) é preciso de um sistema de enraizamento maduro. Isso é obrigatório! Para ter um sistema de raízes maduro, é preciso que a vinha tenha alguma idade (profundidade). Então, todas as vinhas enxertadas possuem um certo limite de tempo de vida (muito menor se comparado com as não enxertadas) e, portanto, não conseguem alcançar a idade necessária para expressar completamente o terroir e a mineralidade. Assim, vinhedos enxertados produzirão, por definição, vinhos menos robustos do que os de pé franco”.

Para Inma Cañibano, apenas com vinhas em pé franco se consegue a máxima expressão do terroir

De volta à Espanha, outra voz importante a defender o pé franco é a de Inma Cañibano, diretora-geral da Estância Piedra, de Toro. Assim como o chileno Marcelo Retamal, para ela, “apenas com vinhas em pé franco se consegue a máxima expressão do que os franceses chamam de terroir”. “Nós temos duas parcelas, sendo que a principal foi plantada em 1968, em uma terra de 40 hectares, com diferentes altitudes, orientações e composições de solo. É uma parcela que se abre para o vale formado pelo rio Guareña a fluir para o rio Douro a 2 quilômetros de onde a vinícola está localizada, com solo arenoso, em algumas partes, barro em outras, e muito pedregoso em algumas”, explica Inma.

“Plantamos a vinha usando braços de outra vinha situada no mesmo vale e que tinha, naquele momento, entre 60 e 70 anos de idade. E essa outra vinha, com toda a certeza, derivada de outra vinha plantada, havia muito tempo, do mesmo modo”, conta. “A adaptação ao clima, altura e solo já tinha sido realizada pela vinha original, a vinha-mãe, antes de plantar os seus ramos nos nossos. Se a nossa Tinta de Toro é diferente da Tempranillo é justamente por conta da adaptação secular à zona, adaptação esta que não sofreu nenhuma interferência até as duas últimas décadas do século passado, quando a Comunidade Europeia começou com a obrigação de plantar unicamente vinhas enxertadas sobre pés americanos”, prosseguiu.

“Nós temos outra vinha, plantada em 1927, e que fica do outro lado do vale. As provas que realizamos tanto das uvas vindimadas quanto das amostras de vinho antes de irem para as barricas mostram claramente as diferenças que, dentro de uma mesma variedade, podem marcar a idade das vinhas, a altitude, o solo, a orientação. Essa complexidade e caráter não são tão claramente identificáveis em vinhas enxertadas”, assegura.

“Assim como o espanhol que se fala em Sevilha, no México, em Madrid e em San Juan de Porto Rico é diferente, enriquecido ao longo do tempo com novas palavras, gírias, sotaques que agregam e exprimem as características próprias de cada região, o mesmo ocorre com as vinhas. E fica acentuado em vinhas plantadas em pé franco”, compara. “E são vinhas que sofrem menos, quando se deparam com situações extremas, justamente porque foram se adaptando ao longo do tempo, como que ‘endurecendo’, exatamente como nós, humanos”, conclui Inma.

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