Perfeição Inatingível

O sucesso de Vega Sicilia segundo Pablo Álvarez

por Por Arnaldo Grizzo e Christian Burgos

Não há conversa com Pablo Álvarez em que não surja o tema da produção de um vinho ainda melhor, mais perfeito. Em sua mais recente visita ao Brasil, em meados de setembro, entre suas diversas atividades programadas, estava a participação em uma degustação histórica de Vega Sicilia.

Mesmo diante de 110 vinhos feitos na propriedade que ele gerencia desde 1985 (sendo 76 safras de Vega Sicilia Único e outras 34 de Único Reserva Especial), Álvarez não é capaz de apontar uma garrafa como sendo perfeita. “Nunca vi uma degustação tão grande. O Único 1915 era o mais velho. E era um vinho para beber. Não um ilustre cadáver”, diz, revelando ainda que ficou impressionado com as safras 1953, 1962 e 1985. Ao comentar os vinhos provados, sua interjeição mais contundente, no entanto, foi sobre o 1942: “Fantástico!”. Ainda assim, é difícil para ele cravar um “melhor de todos”.

Mas isso não se dá por algum preconceito em relação ao que era feito antes, porém, sim, a uma filosofia empresarial e também de vida que incute uma quase obsessiva perseguição à perfeição. “Nunca é possível fazer o melhor vinho, por isso, você precisa sempre continuar trabalhando”, costuma afirmar o homem que não somente defende a imagem grandiosa dos vinhos de Vega Sicilia a todo custo, como também ajudou a desenvolver o mito em torno do mais célebre vinho espanhol de todos os tempos.


Vega Sicilia foi fundada em 1864 por Eloy Lecanda e, em 1982, comprada pela família Álvarez, que promoveu diversas mudanças com o tempo

Em busca do melhor

Apesar de a relação de Álvarez e sua família com Vega Sicilia e seu vinho ser relativamente recente, ela logo se tornou intensa e transformou a empresa em um conglomerado. Desde 1982, quando David Álvarez – pai de Pablo e dono de uma poderosa companhia de prestação de serviços – adquiriu a vinícola, a história de Vega Sicilia mudou muito.

Fundada em 1864 por Eloy Lecanda. Na época, ele, assim como outros visionários, experimentaram fazer vinhos mesclando Tempranillo, a variedade espanhola típica, com outras cepas vindas da França, como Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir. Por volta de 1950, apesar do grande prestígio de seu vinho, Vega Sicilia acabou vendida a uma empresa de sementes, chamada Prodes, e, anos mais tarde, à família Neumann, da Venezuela. “Durante 70 anos, Vega Sicilia foi a única vinícola que existiu no que hoje é Ribera del Duero. Até 1927, além dela, havia somente quem fizesse vinho para consumo próprio. Nos anos 1950, a agricultura mudou completamente, chegou a mecanização. Era mais rentável cultivar cevada do que vinha. Isso fez com que as pessoas abandonassem os vinhedos, que ficaram relegados a solos que não valiam muito. Isso aconteceu com Vega na época da Prodes. Então, quando compramos, ela só tinha 80 hectares de vinhas. No século XIX, chegou a ter mais de 200”, recorda Pablo Álvarez.


“Provavelmente temos a cantina mais limpa do mundo. Somos obsessivos”,
conta Pablo Álvarez

A compra da vinícola, por sinal, não estava nos planos da família. Na época, a firma de advocacia dos Álvarez havia sido escolhida pelos Neumann para intermediar as negociações de venda com possíveis compradores. Contudo, ao ver o potencial do negócio, eles mesmos acabaram por fazer uma oferta, adquirindo a propriedade em 1982.

Pablo, que havia se formado em direito – apesar de sua família ter desejado que ele tivesse estudado medicina –, assumiu as rédeas da vinícola em 1985, quando Jesús Anadón (uma das principais personalidades do vinho de Ribera na época), aposentou-se. “A partir de 1985, começamos a modificar tudo, ampliar a vinha, melhorar a que já existia. Nos anos 1990, já tínhamos as vinhas que temos hoje: 200 hectares”, revela Álvarez.

A mais limpa do mundo

Mas as mudanças não pararam por aí. “A vinícola foi completamente reformada, climatizada. Provavelmente temos a cantina mais limpa do mundo. Somos obsessivos”, ri o diretor, que lembra de uma passagem engraçada ocorrida anos atrás. “Uma vez, um famoso desenhista espanhol veio nos visitar. Mas ele tinha vindo de uma visita a outra vinícola. Ao chegar na cantina, ele disse: ‘Lá, eu vi uma enorme quantidade de m... Então, pensava que em Vega Sicilia tinha que ter muito mais m...”

Além da limpeza, houve ainda mudança na forma de envelhecer os vinhos. “Mudamos o sistema de envelhecimento, mas sempre buscando preservar a personalidade do vinho. Antigamente, os vinhos ficavam muito tempo em madeira – o que hoje consideramos demasiado. Então, reduzimos parte desse envelhecimento em madeira para fazer em garrafa. Agora, tanto Reserva quanto Único ficam quatro ou cinco anos em garrafa antes de ir ao mercado. E saem com mais frescor do que antes”, garante Álvarez.

Seu investimento também foi no aprimoramento das vinhas. “Não podemos plantar mais porque os solos restantes não são aptos para uma vinha de alta qualidade. Temos 200 hectares, então fizemos uma seleção clonal em um viveiro da Borgonha, durante 10 anos, com nossas melhores cepas. Todas as novas plantações são feitas com clones selecionados. Antes disso, durante 70 anos, fez-se uma seleção massal. Vega Sicilia tem um patrimônio de vinhas único. E a uva é 80% do vinho”, diz o diretor, que lembra ainda que, por norma, as vinhas usadas para os vinhos Vega Sicilia precisam ter, no mínimo, 11 anos de idade. “Antes disso, acreditamos que é um bebê e não utilizamos”.

Diferentes estilos


As vinhas usadas para os vinhos de Vega Sicilia precisam ter, no mínimo, 11 anos de idade

Quando se questiona se essas mudanças alteraram o estilo do vinho feito na vinícola, Álvarez pondera várias coisas. A primeira é que sempre há uma evolução no gosto do vinho. “Se provássemos os vinhos feitos há 50 anos, provavelmente não gostaríamos, mas não diríamos que não são bons”, admite. Outro fator a levar em conta, segundo ele, é o efeito Parker. “A grande mudança climática foi graças a Parker, porque ele gostava de um estilo muito concentrado. Isso mudou o cultivo da vinha. Assim, você precisava reduzir rendimento, deixava sobremadurar, coisas que antes não aconteciam”, aponta.

Todavia, Álvarez garante: “Vega Sicilia soube manter seu estilo elegante e ainda assim foi evoluindo”. Para ele, as mudanças promovidas ajudaram seus vinhos a ficarem mais regulares. “Antes, dependia muito das safras. Hoje, há menos anos ruins em que decidimos não fazer Único. Houve mudanças na produção. Em 2002, fizemos Único, mas só 40 mil garrafas. Em 2004, por outro lado, fizemos 100 mil. O que ocorre é que, em menos anos não fazemos o vinho, mas há muita diferença de produção entre um ano e outro”, explica.

“A técnica está ao alcance de todos, o que se precisa preservar é a personalidade dos vinhos”

No entanto, uma coisa que ele admite não conseguir explicar é o fato de Vega Sicilia, por vezes, apresentar dois estilos diferentes dependendo da safra, que ele classifica como masculino e feminino. “Historicamente, aqui se fazem dois estilos. Em alguns anos, um pouco mais corpulentos, em outros, mais finos e elegantes. Nem sempre o feminino é o mais fino e elegante, mas tende a ser...”, ri. O que causa isso? “Por mais explicações que possamos dar, a verdade é que inventamos, pois nunca sabemos. Não podemos interpretar a natureza. Não sei porque isso acontece. Houve um homem que trabalhou 40 anos na vinícola e me disse: ‘Aqui acontece algo que não sei o que é, mas faz-se vinhos diferentes’. Ele nunca descobriu. Acho que é a vinha, no seu conjunto”, pensa Álvarez.

Construção de um império

Quando a família assumiu Vega Sicilia, a vinícola já produzia três grandes ícones: Único Reserva Especial (um blend dos melhores anos de Único), Único (o primeiro ícone, feito com Tempranillo e Cabernet Sauvignon) e Valbuena no 5 (mescla de Tempranillo e Merlot envelhecida por cinco anos, daí o 5). Sobre este último, Álvarez faz questão de frisar que, ao contrário do que muitos pensam, ele não é pensado para ser um “segundo vinho”. “Valbuena tem vinhedos próprios. Sua qualidade é muito mais do que seria um ‘segundo vinho’. Em muitos anos, é um grande vinho. Não é um segundo vinho não só pela qualidade, mas também pelo estilo. Ele é talvez um pouco mais moderno”, garante.

Ao longo dos anos, porém, o trabalho da família não se restringiu somente ao desenvolvimento desses vinhos, mas acabou rumando para projetos paralelos. Em 1991, vendo que não podiam aumentar a produção de Vega Sicilia, criaram Alión. A ideia surgiu em 1985 e, no ano seguinte, compramos o primeiro terreno para plantar os vinhedos para Alión. “A ideia era fazer um vinho mais moderno ao classicismo de Vega Sicilia”, afirma Álvarez. Dois anos depois, viram surgir uma oportunidade na Hungria e compraram Tokaj-Oremus.

“Em 1990, houve o fim da Cortina de Ferro. Soube que iam privatizar Tokay e fomos para lá. Não sabíamos de muita coisa, só sabíamos que Tokay era um dos grandes vinhos do mundo. Em 1993, chegamos a um acordo com o governo húngaro, começamos com 120 hectares de vinha e passamos a recuperar os vinhos. Lá também estamos fazendo uma seleção clonal, a primeira na história de Tokay. Também fomos a primeira a comercializar um branco seco. Mas Tokay é o vinho mais difícil de todos, não é fácil de vender. O maior problema de Tokay foram os anos do comunismo. Mas não perdemos dinheiro, há um equilíbrio”, atesta.

Recall

Em 2001, seguiram em frente na expansão de seus territórios e foram para Toro, região próxima à Ribera del Duero, onde criaram Pintia. “É um estilo diferente. São vinhos para beber. Toro é uma região rústica”, diz Álvarez. Segundo ele, dificilmente Toro será capaz de produzir vinhos tão célebres quanto os de Ribera del Duero ou Rioja – as duas regiões mais tradicionais na Espanha. “Elas são as duas únicas regiões capazes de produzir grandíssimos vinhos”.

Por sinal, Pintia e Alión lhe causaram grandes prejuízos recentemente. Obviamente que não por causa da qualidade do vinho. Ao lançar a safra 2009 de Pintia no mercado, eles se depararam com um problema. “Erramos no momento da clarificação dos vinhos e pagamos por isso. Não é um excesso de borra. É que ela não decanta. Então, o vinho fica turvo. Não muda nada na bebida, mas os clientes ligavam dizendo que os vinhos estavam turvos”, explica. Diante disso, eles resolveram suspender as vendas de Pintia 2009, assim como de Alión 2010, que também apresentou o problema (mas ainda não havia sido lançado). “Foi uma decisão que nos custou 10 milhões de euros. E tomamos porque tínhamos que tomar. Você tem que pagar pelos erros. O que temos que fazer é não ter erros. Nosso prestígio está acima disso. A verdade é que, no mundo do vinho, as pessoas não assumem os problemas”, lembra.

E o projeto mais recente da família, chamado Macán, começou há apenas dois anos. Em parceria com Benjamin de Rothschild, eles investiram em vinhedos em Rioja. “Isso começou há 13 anos. Rioja é a região mais profissional, mas histórica do vinho na Espanha. A primeira ideia era comprar terreno para plantar vinhas e esperar... Depois, vimos que havia vinhas para comprar. Então, perguntei a Benjamim se ele não se importava esperar 14 anos. Ele disse que não, pois era jovem e não tinha pressa. Nesse momento temos 85 hectares – todas as vinhas com mais de 30 anos – comprados. Vamos a chegar a 95 e temos uma parcela de 35 de terreno que vai servir para a rotação da vinha – que nos permita ter sempre em produção 90 hectares. Este ano, começamos a construir nossa vinícola, que terminará em junho de 2016. A ideia é fazer dois vinhos no conceito bordalês, de primeiro e segundo vinho”, aponta.

Novos projetos?

Além de Vega Sicilia, o grupo tem as marcas Alión, Pintia (Toro), Macán (Rioja) e Oremus (Hungria)

“Historicamente, aqui se fazem dois estilos de vinhos. Em alguns anos, um pouco mais corpulentos, em outros, mais finos e elegantes”

Quando ADEGA o entrevistou pela primeira vez, em 2008 (edição 34), a família Álvarez estava “em paz”. Pouco depois, o pai, David, passou a disputar com os filhos o controle da empresa. O caso vai se estendendo na justiça espanhola desde então. “Não é uma briga societária, é uma briga de família. Do meu pai contra nós. Infelizmente, ela só acabará no dia em que meu pai falecer”, lamenta Pablo, que explica: “Ele quer mandar em tudo e sobre todos. Isso não é possível. Mas isso parece uma evolução até bastante natural para algumas pessoas que vão envelhecendo e, diante da sensação de que perdem capacidade, isso os faz reagir querendo mais poder. Meu pai tem 89 anos. Ele nos colocou 17 processos e vai perdendo um a um, mas insiste”.

Apesar da briga, a rotina de Vega Sicilia – e sobretudo seus vinhos – não parece ter sido afetada. Na mesma entrevista de 2008, Álvarez dizia estar experimentando para futuramente elaborar um vinho branco. O que aconteceu? “Não gostamos. Então, deixamos de lado. Mas vamos tentar novamente. Teremos outra experiência este ano com Marsanne e Chardonnay. Mas precisamos achar um solo determinado dentro dos 19 tipos de solo que temos classificados. Também vamos ter uma experiência em Rioja”, garante.

Sua fé no potencial de Rioja é tamanho que não é capaz de entender porque não há mais vinhos icônicos na região. “Acho que Rioja deveria ter vários Vega Sicilia”. Mas o que é preciso para fazer um grande vinho lá? “Selecionar uva”, resume, porém acrescenta: “A técnica está ao alcance de todos, o que se precisa preservar é a personalidade dos vinhos. Em Rioja, tentamos encontrar Rioja”. Isso tudo sem esquecer de sua máxima: a melhora constante em busca de uma perfeição que, no fundo, é inatingível.

AD 93 pontos  
Alión 2011
Alión, Ribera del Duero, Espanha (Mistral US$ 165,41). Um excelente vinho, que manteve o perfil e personalidade típicas de Ribera, mas com uma pegada um pouco mais moderna, num estilo independente do Vega Sicilia. 100% Tempranillo, com 30% passando por carvalho francês e 70% por barrica de carvalho francês novo. Um vinho rico, com muita vida, framboesa e groselha no nariz. No palato, a fruta é bem presente e vem seguida pela acidez e taninos que conduzem até um final de boca de cassis e especiarias. Delicioso e com muita vida pela frente. Deve atingir seu auge em mais oito anos. Paciência é a palavra a lembrar quando olhar para a garrafa em sua adega. CB

AD 93 pontos  
Macán 2010
Macán, Rioja, Espanha (Mistral US$ 199,50). Este vinho nasce do projeto conjunto de Vega Sicília e Château Lafite Rothschild e foi fundado em 2009. Aqui Vega Sicilia coloca os pés respeitosamente em Rioja. Um vinho com muita complexidade no nariz, cereja fresca e um perfil mineral. Em boca, percebemos que é uma máquina de vencer o tempo. A boca é deliciosa, com fruta vibrante amparada pela estrutura dos taninos e excelente acidez, tudo com um toque de ervas e pimenta negra. Um toque final de alcaçuz e os taninos que merecem esperar mais cinco anos antes de abrir a garrafa. CB

AD 93 pontos  
Pintia 2008
Bodegas Pintia, Toro, Espanha (Mistral US$ 123,65). Dou mais crédito a este ícone da emergente região de Toro do que o próprio Pablo Álvarez. Encantador e franco, é daqueles para quem ama os vinhos rústicos, da terra. Ao primeiro gole já imaginei um cabrito assado. Não parece ter os 15% de álcool, então cuidado. A textura de taninos granulada é a base do vinho e se combina com fruta, ameixa colhida no pé. A acidez se destaca amparando e equilibrando tudo, e ajudando o protagonismo dos taninos. Explosivo sem perder o aspecto austero. E, por fim, os aromas de ameixa, terra, musgos e ervas. Menos tempo em madeira que seus primos, e até por isso muito autêntico a seu terroir. CB

AD 95 pontos  
Vega Sicilia
Valbuena no 5 2009
Vega Sicilia, Ribera del Duero, Espanha (Mistral US$ 376,34). A tradição pede passagem. Frutas, ervas, alcaçuz que, com o tempo em taça, evolui num floral delicioso e um toque mineral, muito elegante. Em boca, confirma o perfil aromático, e os taninos são uma top model na passarela. Num paradoxo, se está mais pronto para tomar que o Alión (dois anos mais velho que ele), também promete mais tempo de vida. Sei que estou sendo repetitivo no adjetivo, mas é impossível não ser: elegante hoje e virtualmente para sempre. CB

AD 97 pontos  
Vega Sicilia Único
Gran Reserva 2004
Vega Sicilia, Ribera del Duero, Espanha (Mistral US$ 957). Um vinho emocionante. Antes de tentar interpretar os aromas, vale senti-lo em boca. Incrível vibração. Faz-nos agradecer o fato de nem todos seguirem as tendências. Demonstra que há um espaço reservado para os clássicos no mundo. Incrível acidez e taninos que são a única coisa juvenil neste vinho. Uma cesta de ameixas com um toque de pimenta branca. Um vinho para degustar pensando no passado e olhando para o futuro. CB

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