Sangue por taninos

Adega explica como formar harmonizações de dar água na boca com carnes clássicas grelhadas

por Carlos Cordeiro - Cwp


Foto: Luna Garcia

O tanino é o elemento mais intrigante do vinho e também o de maior complexidade de compreensão. A maior parte dos taninos encontrados nos vinhos é proveniente da casca da uva, sobretudo as vermelhas. Assim, variedades de uvas com cascas mais finas (Pinot Noir, por exemplo) tendem a produzir vinhos menos tânicos, e variedades com cascas mais grossas (Cabernet Sauvignon, por exemplo) geralmente produzem vinhos mais tânicos.

Essa relação não é perfeita, pois outros fatores podem influenciar o volume final de taninos presentes no vinho, entre eles o contato do suco com o engaço e as sementes, o tempo de fermentação, a permanência do vinho em barris de carvalho e a idade do dele. Nos vinhos brancos, a percepção de taninos está relacionada quase que exclusivamente ao amadurecimento em barris de carvalho. O tanino tem propriedades antioxidantes que preservam o vinho contra os efeitos do oxigênio, sendo esse um dos motivos da maior longevidade dos vinhos tintos em relação aos brancos.

As cascas das uvas vermelhas possuem outro elemento relevante na elaboração dos vinhos tintos: os pigmentos. Os pigmentos são compostos químicos chamados de antocianinas (pertencentes ao grupo dos flavonoides) e sua função é proteger as plantas dos raios ultravioleta e evitar a produção de radicais livres. Mais uma vez, a grossura da casca e o tempo de contato do líquido da prensagem com as cascas serão os fatores determinantes da coloração do vinho.

Os pigmentos tendem a se unir aos taninos produzindo complexos antocianinas- -tanino. Com o envelhecimento do vinho, um número crescente de complexos é criado. Enquanto os complexos pequenos são de coloração púrpura intensa, adstringentes e mais "ásperos", os complexos maiores são mais suaves, redondos, menos adstringentes e amarronzados. Eventualmente os complexos se tornam tão grandes e pesados que decantam, produzindo os sedimentos do vinho.

Fotos: Carlos Cordeiro
Lombo de porco se mostrou uma das companhias perfeitas para o tinto espanhol
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Fotos: Carlos Cordeiro
A combinação Malbec e picanha se confirmou


Combinando proteínas

Mas, afinal, qual o papel dos taninos no processo de harmonização?

O efeito sensorial do tanino é mais tátil do que gustativo. Só mais um pouco de química: o tanino é um composto orgânico (polifenol) amargo com tendência a se conectar a proteínas. Ao se conectar às proteínas da saliva, ocorre uma desnaturação (perda da estrutura tridimensional) delas, causando uma sensação adstringente caracterizada pela "secura", enrugamento das paredes da boca, da língua e até mesmo dos dentes.

Mas os taninos não são tão incomuns como parecem, e a lista dos alimentos ricos em taninos imediatamente nos remete a outra relação bem mais familiar, a dos aromas e sabores dos vinhos, senão vejamos: morango, berries em geral, romã, caqui, avelã, noz e outras oleaginosas, defumados, cravo, tomilho, baunilha, canela etc.

Muito bem, chegamos lá, quais as interações do tanino com os demais componentes do vinho e das comidas? A percepção do tanino é afetada pela presença de sabores amargos (aumentando), ácidos (aumentando) e doces (reduzindo). Os alimentos gordurosos tendem a criar uma barreira entre os taninos e as papilas gustativas reduzindo significativamente sua ação.

Finalmente, as carnes animais são o paraíso para os taninos, sedentos por proteínas, principalmente as não coaguladas do sangue de carnes mal passadas. Por outro lado, peixes e frutos do mar tendem a adquirir um gosto metálico pela reação dos taninos com o iodo.


Vinhos
Para avaliarmos a presença, intensidade e efeito dos taninos e suas interações com as comidas, selecionamos vinhos jovens com grande potencial de envelhecimento e com passagem por barris novos de carvalho francês que adicionam taninos diferenciados. São eles:

Dog Point Pinot Noir 2008 (R$ 304) - Pinot Noir neozelandês (Marlborough) com nível médio de taninos, muito finos e gentis. No nariz e na boca, apresenta as tradicionais notas de framboesa e cereja. Presença floral no nariz, sobretudo violetas. Aromas de bosque molhado, barro e musgos dão um toque de Borgonha a este ótimo exemplar do Novo Mundo.

Fotos: Carlos Cordeiro
Tempranillo se mostrou par ideal para o carrê
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Libranza 2005 Bodegas y Pagos Matarredonda (R$ 128) - A Tempranillo, chamada de Tinta de Toro na apelação, ganha contornos um pouco diferentes daqueles da Rioja. O clima quente e árido faz com que as uvas amadureçam mais rápido, podendo alcançar facilmente níveis alcoólicos elevados (limitado a 15% pela legislação da DO) e produzindo vinhos usualmente mais encorpados. O Libranza, apesar de jovem, já apresenta taninos muito macios e elegantes. Entre os aromas de frutas, destacam-se amora e mirtilo. O final, interminável, traz especiarias do carvalho francês. Faz mais do que jus à fama que a apelação vem recebendo nos últimos anos.

Hecht & Bannier Minervois 2007 (R$ 49) - Este GSM do oeste do Languedoc tem predomínio de Syrah e presença de Grenache, Mourvèdre e Carignan. A Syrah aporta volume significativo de taninos, porém bastante maduros. Os aromas de frutas transitam pelas vermelhas e negras, sobretudo cassis. Apresenta a tradicional pimenta branca e certo caráter herbáceo, até mesmo garrigue. O final persistente aponta alguma salinidade, decorrente, provavelmente, da proximidade da região com o Mar Mediterrâneo.

Nosotros 2007 Susana Balbo (R$ 525) - Trata-se de um Malbec potente, denso e opulento. Nariz intenso apresentando frutas negras frescas (amora, mirtilo e cereja negra), além de um alcaçuz marcante. Ainda chamam a atenção aromas florais, minerais e uma baunilha que grita, decorrente dos 18 meses em carvalho francês. Acidez marcante, nível alcoólico elevado e taninos domesticados proporcionam um vinho perfeitamente equilibrado. Malbec de estirpe, clássico.

Gillmore Cabernet Sauvignon Reserva 2006 (R$ 110) - Este vinho do Vale de Loncomilla, no Maule, é um Cabernet Sauvignon de manual nos aromas: frutas negras (amora, mirtilo e cassis), grafite, couro, defumado, tabaco e baunilha. Conta com uma estrutura firme calcada em taninos macios e acidez equilibrada. Elegante pela discrição, nada está fora do lugar.


Carnes
Para fazer frente a todo esse tanino dos vinhos, nada melhor do que um bom churrasco, ou, para evitar correções futuras vindas do sul, grelhados em brasa de carvão. O processo de grelhagem carameliza a gordura e transfere um sabor defumado à carne, construindo uma ponte segura para vinhos com passagem marcante em carvalho e com caráter condimentado por especiarias.

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Foto: Carlos Cordeiro
Pato e Pinot Noir é uma harmonização clássica, que também funcionou na grelha

O umami (quinto gosto percebido por nós além do doce, salgado, amargo e ácido) tende a aumentar o amargor do vinho, podendo, inclusive, gerar um sabor metálico. Sendo as carnes ricas em umami, não se constituiria aqui um equívoco? Nesse ponto, é essencial a presença do sal. Este, usado de forma adequada, aumenta a percepção dos outros sabores no vinho e na comida, e limita a impressão de amargor, neutralizando (ou reduzindo muito) o efeito do umami.

Pela grelha, passaram carne bovina (picanha e prime rib), de pato, de porco e de cordeiro nas seguintes preparações:
- Peito de Pato com molho de mirtilo e vinho tinto
- Lombo de porco com farofa de lingüiça de pernil de porco
- Carrê de Cordeiro com Cuscus Marroquino
- Picanha com batatas fritas
- Prime Rib com aipim cozido e mini rúcula

Comentários
Pinot Noir Pato e Pinot Noir é uma combinação clássica. Regar o peito de pato grelhado com molho de mirtilo e o próprio vinho foi quase desleal. Perfeito. Ainda encarou bem as carnes não tão intensas como o porco e o cordeiro, mas capitulou diante da picanha e da Prime Rib.


Tempranillo
A potência esperada da Tinta de Toro não se confirmou neste Libranza 2005. O vinho extremamente equilibrado e elegante foi o mais versátil. Não dominou o pato e também não foi dominado pelas carnes mais intensas. Esteve sempre, no mínimo, na mesma altura. O lombo de porco e o carrê de cordeiro, ambos de gordura e intensidade médias, ofereceram a moldura perfeita para o vinho brilhar.


Minervois
Ao contrário do vinho anterior, neste caso houve mais potência do que o esperado, provavelmente em função do predomínio da uva Syrah no corte. Dominou as carnes mais leves e a esperada harmonia perfeita com o cordeiro não aconteceu. Isso não quer dizer que não foi bem, apenas não foi aos píncaros.


Malbec
A potência do Malbec foi demais para o pato e o porco. Acompanhou dignamente o cordeiro e a Prime Rib, mas picanha e Malbec é um novo clássico. Os sucos da picanha mal passada alimentaram os taninos do vinho deixando aparecer o restante da complexidade de aromas e sabores. Uma vez por semana é pouco.

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Cabernet Sauvignon
O Cabernet Sauvignon agradou com quase todos os pratos, apenas o pato foi dominado. A elegância dos taninos permitiu inclusive que acompanhassem bem o porco. Com o carrê, fez uma reprodução digna do clássico Bordeaux e cordeiro. Esperava-se um pouco mais da parceria com a Prime Rib, mas, se não chegou lá, foi mais em função da carne (um pouco dura e não tão suculenta) do que do vinho.


Vinhos e carnes
De forma geral, a relação entre as gorduras, proteínas, grelhagem e taninos fica bastante clara quando comparamos as impressões do vinho degustado isoladamente e em companhia das carnes. Desacompanhados, alguns dos vinhos talvez se mostrassem menos agradáveis, destacando os taninos. Ao colocarmos ao lado das carnes, foi possível percorrer uma miríade de sabores, mostrando que um vinho pode ser mais do que um vinho.

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