John Duval e Felipe Tosso

Shiraz chileno ou Syrah australiano?

Um dos mais renomados enólogos australianos, John Duval - conhecido por seu trabalho com os Shiraz em sua terra natal -, veio ao Brasil apresentar um trabalho conjunto com Felipe Tosso, da chilena Ventisquero, e os Syrah dos vales andinos

por Christian Burgos

Norio Ito
John Duval e Felipe Tosso

O fenômeno australiano John Duval veio ao Brasil pela primeira vez, no mês de abril, para apresentar, juntamente com Felipe Tosso, os vinhos de sua joint venture com a chilena Ventisquero. Juntos, os dois enólogos brindaram um seleto grupo de convidados da Revista ADEGA com um jantar no restaurante Emiliano, mas não sem antes nos conceder a entrevista exclusiva que você lerá a seguir. Com o bom humor de John Duval e a humildade e paixão pelos vinhos de Felipe Tosso - enólogo chefe da vinícola Ventisquero - a entrevista se transformou numa agradável conversa entre amigos.

John, quando você entrou no mundo do vinho, a Austrália passava por uma verdadeira revolução no setor, não?
JD -
Exatamente. Em 1973, me formei em Ciências Agrícolas pela Universidade de Adelaide e, provavelmente, fui muito sortudo. Comecei na Penfolds, em 1974, e alcancei o cargo de enólogo-chefe em 1986, função que exerci até 2002. Este foi um período muito dinâmico. Creio que a internacionalização do vinho australiano foi a responsável por isto.

Como era a Austrália antes disso?
JD -
Diria que, antes, costumávamos beber nossos melhores vinhos em casa e enviar o resto para o exterior [risos]. Neste momento, passamos a levar o mercado internacional muito a sério e a construir a boa reputação internacional dos vinhos australianos.

Como foi essa transformação?
JD -
As vinícolas costumavam enviar as equipes de vendas e marketing para outros países e, neste ponto, os enólogos "botaram o pé na estrada". Passamos a viajar apresentando os vinhos e construindo relacionamentos com clientes e com a imprensa internacional. Além disso, trouxemos muita gente para visitar a Austrália. Também conquistamos prêmios internacionais para nossos vinhos. Foi um período muito excitante.

Sob sua gestão como enólogo-chefe, o Grange 1990 foi indicado "Vinho do Ano" em 1995 pela Wine Spectator. Algum vinho australiano tinha atingido tamanha projeção?
JD -
Não nos Estados Unidos. O próprio Grange já havia ganhado competições importantes na França, na categoria Syrah. Mas, certamente, por volta deste período foi que as coisas começaram realmente a acontecer.

Como o prêmio o afetou?
JD -
De fato, o reconhecimento serviu como plataforma de lançamento para toda a indústria australiana de vinhos e passamos a ser levados muito a sério. Somos um país com um mercado muito pequeno - 20 milhões de pessoas -, então, exportamos mais vinho do que consumimos domesticamente. Tudo isso possibilitou uma expansão inimaginável.

Penso que os vinhos australianos não atingiram o nível de vendas que poderiam no Brasil. Você acredita que isso se deve à falta de foco no País ou à concentração de vinhos no portfólio de poucos e tímidos importadores?
JD -
Excelente pergunta. Para ser honesto, acho difícil respondê-la. Pessoalmente, comecei a ficar diretamente envolvido com a América do Sul a partir de meu projeto com a Ventisquero.

A vinícola Penfolds teve sempre uma visão e estilo muito particular, preferindo fazer uso do blending das melhores uvas de diversas regiões ao invés de privilegiar o vinho de um único terroir. Você poderia nos explicar isso?
JD -
Creio que precisamos voltar ao período de 1940 a 1950, quando Max Schubert estava fazendo importantes experimentos que resultaram no lançamento do Penfolds Grange. Não apenas no Grange, mas em um portfólio de vinhos. Acredito que o Max estava realmente tentando criar o conceito de um estilo de blend, para que o Grange alcançasse um estilo único.

Você poderia nos dar uma visão daquele momento?
JD -
Max fizera uma viagem à Europa, inicialmente por Portugal, porque os fortificados, como Porto e Jerez, eram os interesses da Austrália no momento. No final dessa viagem, ele visitou Bordeaux e experimentou vinhos de 30, 50 anos de idade que continuavam frescos e vibrantes. Ele ficou tão excitado que voltou para a Austrália, não necessariamente para copiar estes vinhos, mas para desenvolver um vinho australiano com a capacidade de guardar e evoluir por anos. Estes eram os anos iniciais dos barris novos no mundo e Max conseguiu importálos e usá-los para gerar um novo tipo de vinho na Austrália.

E como foi a reação na Austrália?
JD -
Muitos não receberam bem a idéia e tentaram fazê-lo parar de produzir o vinho. Mas ele estava tão determinado e confiante que vinificou três safras em segredo. Algo que é impensável nos nossos dias com todos os controles por computador [risos]. Eu certamente não conseguiria uma façanha destas [risos].

E como ele saiu desta?
JD -
A certa altura ele chegou à conclusão de que não poderia fazer isto para sempre, então apresentou o vinho a um dos diretores da Penfolds que vivia em Sidney, um merchant de vinhos. O vinho fora feito sete anos antes e, neste período, a fruta e o carvalho tinham se integrado maravilhosamente, demonstrando o que Max queria criar.

E como a empresa reagiu?
JD -
Este diretor levou o vinho ao conselho da empresa e disse: "Sei que o que Max fez é errado, mas devemos perdoá-lo, pois este é um grande vinho". [risos] E assim o vinho continuou sendo misturado segundo um estilo. Sabe, este não é um conceito tão maluco assim.

Minha pergunta se deve pois, em Ventisquero, particularmente no Vale de Apalta com Pangea, parece haver um conceito de valorização de terroir único.
JD -
Acho que, com o passar dos anos, a Penfolds, ao invés de abandonar o conceito dos vinhos originais, passou a desenvolver novos vinhos, alguns de vinhedo único. Essa foi a graça do meu trabalho, pois o dividia em duas partes: continuar a produzir os grandes e tradicionais vinhos e, por outro lado, desenvolver novos e seguir a linha de meu próprio estilo. Quando assumi como enólogo-chefe me perguntaram: "Agora que é o responsável pelo Grange, como vai mudá-lo?". E disse que não iria mudá-lo em sua filosofia fundamental.

#Q#

E como se desenvolveu seu estilo?
JD -
Tive a oportunidade de usar uvas Shiraz de Barossa (Valley) não no estilo musculoso do Grange, mas com amoras negras - numa expressão mais elegante -, e utilizando carvalho francês ao invés de 100% carvalho americano do Grange. E continuam assim os vinhos que hoje produzo em minha vinícola. Num deles me dedico a explorar a tipicidade da região de Barossa.

Desde que deixou a Penfolds, encarou seu próprio projeto e também outros no Chile, Estados Unidos e Europa...
JD -
Na Europa, foi mais um trabalho de consultoria. Estou entusiasmado realmente com o projeto que desenvolvo com Felipe (Tosso) neste maravilhoso lugar chamado Apalta. Além disso, tenho outro interessante projeto no estado de Washington, Estados Unidos.

Mesmo sendo ambos "Novo Mundo", como você compara o trabalho no Chile com o realizado na Austrália?
JD -
São muito distintos. O mais importante é que não estou trazendo o Barossa Valley para Apalta. Trago minha experiência de 36 safras fazendo vinhos Shiraz a fim de que este terroir possa se expressar no estilo mais elegante que Felipe e eu preferimos.

Natalia Araujo

Como é o trabalho conjunto de vocês?
FT -
Primeiro, começamos com algumas viagens para convencer John a trabalhar conosco.
JD - Não deu tanto trabalho assim... [risos]
FT - Nesse momento, foi muito importante o papel de Aurélio Montes, que é amigo de John, pois éramos uma vinícola muito nova em 2004. A primeira tarefa foi degustar muitos vinhos juntos e encontrar as similaridades entre nossos gostos e estilos.

Testar vinhos de onde? Austrália?
FT -
De todos os lugares, iniciando pelos vinhos de Ventisquero das safras 2002 e 2003. Então, fomos visitar os vinhedos e recebemos o apoio de um amigo de John, um grande especialista no cultivo do Syrah. Temos que lembrar que somos muito novos nessa variedade no Chile. Conhecemos bem Cabernet e outras variedades, mas, com o Syrah, ainda estávamos engatinhando.
JD - Tivemos que nos basear muito na experiência de Felipe, que realmente conhecia o Chile e suas características, e com ele e Aurélio recebi um curso avançado e rápido sobre como fazer vinho naquele país. No início, trabalhei como consultor da Ventisquero e logo recebi a maravilhosa proposta de fazer um projeto em joint venture com a vinícola para desenvolver Pangea e Vertice.

Nos últimos anos, o Syrah encontrou um terroir muito adequado no Chile, comparável ao que ocorreu com o Cabernet Sauvignon. Como está a evolução do Syrah no Chile?
JD -
Excepcional. Temos que levar em consideração que o Syrah no Chile é novo e que existem novas áreas onde ele ainda está sendo testado. Além disso, os vinhedos são muito novos e melhorarão ainda mais com a idade.
FT - Embora o Syrah tenha chegado pela primeira vez ao Chile há muito tempo, a variedade se perdeu. A primeira a reimplantá-lo no Chile foi Errazuriz, em 1993, e, em seguida, foi a vez de Aurélio Montes. Em Ventisquero, começamos em 1998.

E vocês diriam que, no Chile, temos Syrah ou Shiraz? [risos]
JD -
No meu ponto de vista, e sou categórico nisto, Shiraz é produzido apenas na Austrália [risos].

Apalta parece ser o centro do Chile agora. Sobretudo depois que Casa Lapostolle teve um grande reconhecimento pela Wine Spectator. Como você vê isso?
FT -
Apalta é um espaço pequeno, mas interessantemente apresenta grande variedade de solo. Estamos ao lado de gigantes e somos muito respeitosos, além de estarmos próximos de Santa Rita, Neyem e Montes. Muitas vezes, trabalhamos juntos, pois, no campo, não há segredos. Hoje, Apalta está mostrando seu potencial num curto período de tempo. Percebemos uma linha de Rhône - no Syrah - e Bourdeaux - no Cabernet e Merlot. Podemos ver, nas áreas mais planas, vinhedos de quase 100 anos e isso afirma também o potencial do vale.

#Q#

Natalia Araujo

Como vocês fazem o blend de Pangea?
JD -
Mantemos pequenas parcelas diferentes de vinhedos e as colhemos e vinificamos separadamente.
FT -
Temos 12 diferentes blocos. De cara, encontramos dois blocos que nos entusiasmaram imediatamente. Logo, descobrimos também que os formatos dos blocos não são geometricamente perfeitos, com manchas que se entrelaçam e, hoje, nossos blocos são muito menores que inicialmente. No princípio, os blocos produziam cerca de 7 mil litros. Hoje, temos muito mais blocos produzindo, em média, entre 2 e 3 mil litros em tanques menores.
JD -
Não é uma questão de seleção de barricas, mas de seleção de blocos, e os de maior sucesso guardamos para Pangea.
FT - Ainda temos que levar em consideração que estamos em nossa sétima vindima. Estamos desenvolvendo nosso conhecimento sobre cada bloco ano a ano. Hoje, sabemos que o bloco tal deve ser fermentado de certa maneira por suas características, e que outro bloco deve ser tratado de maneira diferente. É um trabalho de detalhe, foco e paixão. Conversamos como amigos ao final de um dia de trabalho intenso, geralmente tomando uma cerveja gelada após degustar dezenas de amostras.
JD - Costumo dizer que é necessária muita cerveja para se fazer um grande vinho. [risos]

E como avaliar a capacidade de envelhecimento do Pangea?
FT -
Nossa primeira safra tem apenas cinco anos, mas, numa dica, se você bebe um vinho de cinco anos e ele está jovem, pode auferir que ele tem pelo menos mais outros cinco pela frente. Entretanto, é realmente um trabalho em progresso, com detalhes e melhorias para fazer um vinho superior a cada ano.

John, soubemos que você participa de um programa de avaliação dos vinhos australianos que querem ser exportados. Como é isso?
JD -
É um painel para certificar-se que o vinho é o que diz ser no rótulo e prevenir que ele venha a prejudicar a credibilidade de nossos vinhos em geral. A Austrália exporta cerca de 15 mil rótulos diferentes por ano e avalio estes vinhos, cerca de 70 numa manhã. Mas, quando estava na Penfolds, testava muito mais do que isto. Aproveito para deixar claro que a questão é julgar a tipicidade e não fazer uma resenha completa.

E como decidiu o início de seu projeto solo?
JD -
Quando saí da Penfolds, quis manter uma estratégia simples. Meu trabalho tinha um bom prestígio, então tentei manter uma linha de aproximação direta: Barossa, vinho tinto, Shiraz e blend de Shiraz. E tenho muito carinho por este caminho. 2009 é minha 36ª vindima no Barossa Valley.

Você é um caso único de um enólogo associado a uma variedade de uva como Syrah?
JD -
É uma pergunta interessante. Sou muito feliz fazendo isso há anos e realmente me identifico com a variedade. Passei a conhecê-la mais a cada dia e ainda tenho a oportunidade de experimentar e fazê-lo em alguns dos melhores terroirs do mundo.

Leia mais sobre a Syrah!

palavras chave

Notícias relacionadas