Retornando ao passado

Steven Spurrier revela os bastidores do Julgamento de Paris

Confira os detalhes da degustação que abalou o mundo do vinho há 40 anos

por Por Steven Spurrier

Um convite para que eu participasse do Festival de Vinhos de Inverno de Naples, na Flórida, foi feito há quase dois anos, juntamente com o pedido para que criasse um lote para seu leilão anual – que, em 11 anos, arrecadou US$ 146 milhões para a Naples Children and Education Foundation (NCEF), que se dedica a melhorar a vida das crianças menos privilegiadas e sob risco. O vinho é um ótimo veículo para arrecadar dinheiro, já que aproxima as pessoas em um senso de convivência compartilhado e comprometido, em que o entusiasmo das degustações, jantares e na sala de leilão só se compara com a generosidade dos doadores. Uma visita a um dos principais campus da NCEF em uma manhã mostrou que o dinheiro é muito bem gasto.

A razão de minha presença neste ano foi o 40o aniversário do Julgamento de Paris, a degustação que minha escola de vinho, a L’Academie du Vin, organizou em 24 de maio de 1976 sob o pretexto de comemorar o 200o aniversário da Guerra de Independência dos Estados Unidos. O pano de fundo para o evento começou com a sala de degustação da Academie no centro da cidade, que se tornou um imã para enólogos visitantes e escritores de vinho norte-americanos interessados em saber o que estava acontecendo na Califórnia. Os vinhos eram uma revelação para nossos palatos baseados na França. Patricia Gallagher, diretora norte-americana da escola, usou suas férias de verão para visitar a Califórnia e, graças às apresentações feitas pelo crítico Robert Finigan, foi de vinícola em vinícola e voltou totalmente entusiasmada.

Durante o outono, plananejamos mostrar Chardonnays e Cabernets californianos cuidadosamente selecionados para um grupo de elite de degustadores com o objetivo de ver sua qualidade reconhecida e talvez comentada. A Academie du Vin, a primeira escola de vinho independente e autossustentada na França, era bem respeitada, então Patricia e eu não tivemos dificuldade em receber respostas afirmativas para nossa lista de potenciais juízes, que eram: Pierre Brejoux, inspetor geral do comitê de Denominações de Origem; Michel Dovaz, professor-chefe da L’Academie du Vin; Claude Dubois-Millot da revista Gault-Millau; Odette Khan, editora da Revue du Vin de France; Raymond Oliver, chef e proprietário do restaurante 3 estrelas Le Grand Vefour; Pierre Tari, dono do Château Giscours em Margaux; Christian Vanneque, sommelier-chefe do restaurante 3 estrelas La Tour d’Argent; Aubert de Villaine, coproprietário do Domaine de la Romanée-Conti;  Jean-Claude Vrinat, dono do restaurante 3 estrelas Taillevent.

Como foram selecionados os vinhos?

O passo seguinte foi encontrar um local apropriado para a ocasião e, graças a Ernst Van Damm, um dos clientes habituais da minha loja de vinho, Caves de la Madeleine, e diretor de publicidade do Hotel Intercontinental, localizado nas proximidades, pudemos usar as salas do terraço das 3 às 6 horas da tarde no dia 24 de maio. Tudo o que era preciso agora era eu ir para a Califórnia e fazer a seleção final. Então minha esposa e eu voamos no fim de abril para São Francisco e, novamente com ajuda de Robert Finigan, fomos trabalhar.

Depois da degustação, fomos questionados por que não havia “grandes” nomes como Mondavi, Beaulieu Vineyards ou Buena Vista. A resposta mais honesta é que estávamos procurando por produtores menores, “hands-on”, que eram conhecidos na França como vinícola “boutique”. A seleção de seis Chardonnays e seis Cabernets foi feita, duas garrafas de cada foram compradas e, para evitar problemas com a alfândega francesa, foram levadas na bagagem de mão até Paris por um grupo de 20 ou mais produtores de vinho e suas esposas que, sob a orientação do grande Andre Tchelistcheff e a organização de Joanne Dickinson, estavam indo para um tour de vinhos na França.

Havia pouco mais de uma semana até a degustação quando nos ocorreu que apenas um dos jurados – Aubert de Villaine, cuja esposa Pamela era de São Francisco – pudesse talvez ter provado um vinho da Califórnia anteriormente. Assim, os outros oito só sabiam que a Califórnia era um estado pouco ao norte do México na costa oeste dos Estados Unidos e talvez levassem a geografia em consideração, não dando a atenção devida à seleção de vinhos que fizemos. Portanto, persuadimo-nos a transformar o evento em uma degustação às cegas com tintos top de marcas famosas e brancos borgonheses. Escolhi os melhores da minha loja e perguntei aos juízes se eles tinham algum problema em incluir grandes vinhos. Eles concordaram que isso seria ainda mais interessante. A ordem de serviço foi decidida em um sorteio com nomes dentro de um chapéu no dia anterior.

Resultados

Os Chardonnays foram provados primeiro, com todos os juízes dando notas até 20 pontos. Com o total somado e dividido por nove, o resultado foi:

1 – Chateau Montelena 1973

2 – Meursault-Charmes 1973 Roulot

3 – Chalone 1974

4 – Spring Mountain 1973

5 – Beaune Clos des Mouches 1973 Drouhin

6 – Freemark Abbey 1972

7 – Batard-Montrachet 1973 Ramonet-Prudhon

8 – Puligny-Montrachet Les Pucelles 1972 Leflaive

9 – Veedercrest 1972

10 – David Bruce 1973

Com três dos top 5 sendo vinhos da Califórnia, isso foi um resultado surpreendente, mas as pontuações individuais dos jurados foram ainda mais conclusivas, já que o Chateau Montelena foi escolhido o melhor por seis deles e Chalone por outros três. Patricia deu empate entre Meursault-Charmes e Spring Mountain, e eu coloquei Freemark Abbey e Batard-Montrachet também empatados, mas nossas notas não foram contadas.

Anunciei os resultados enquanto os tintos estavam sendo servidos e tive a impressão de que os jurados seriam mais protetores com seu país desta vez. E assim foi. Os resultados foram:

1 – Stag’s Leap Wine Cellars 1973

2 – Château Mouton-Rothschild 1970

3 – Château Montrose 1970

4 – Château Haut-Brion 1970

5 – Ridge Monte Bello 1971

6 – Château Leoville-Las Cases 1971

7 – Heitz Martha’s Vineyard 1970

8 – Clos du Val 1972

9 – Mayacamas 1971

10 – Freemark Abbey 1969

 Se houve 5,5 pontos de diferença entre o primeiro e segundo brancos, Stag’s Leap teve apenas 1,5 ponto a mais do que Mouton-Rothschild e apenas 5,5 pontos separaram os quatro primeiros vinhos. Muitos jurados pontuaram os Cabernets californianos com apenas um dígito, o que é raro numa prova de vinhos. Patricia colocou Heitz Martha’s Vineyard em primeiro lugar e eu tive um empate de quatro com Montrose, Mouton-Rothschild, Ridge e Stag’s Leap.

Persona non grata

Convidamos as principais mídias da França para esse evento, mas sabendo de antemão que a ideia não os interessaria. Patricia então lembrou que George Taber, do escritório francês da revista Time, tinha feito um dos nossos cursos de vinhos havia pouco tempo e ligou para ele. A resposta foi que ele viria se não houvesse nada mais a fazer. Devido a um dia pacato no escritório, ele apareceu lá desde o começo, com minha esposa Bella como fotógrafa. Uma semana depois, a Time colocou sua descrição da degustação sob o título “Julgamento de Paris”, que se tornou o título do livro seminal de Taber publicado pela editora Scribner em 2005 e agora traduzido em diversas línguas, mesmo em francês, com o subtítulo: “A degustação que revolucionou o vinho”.

Maio de 1976 certamente fez muito pelos vinhos da Califórnia e eu me tornei “persona non grata” em Bordeaux por um tempo. Fui literalmente atirado para fora das caves de Ramonet-Prudhon em Chassagne-Montrachet, mas os resultados da degustação permaneceram. Alguns produtores inteligentes foram para a Califórnia para ver o que era todo aquele barulho e acho que não é coincidência que a primeira safra de Opus One, a colaboração entre Robert Mondavi e Philippe de Rothschild, tenha sido em 1979. Para mim, a importância do Julgamento de Paris foi criar um modelo no qual vinhos desconhecidos, mas de qualidade, poderiam se sobressair diante de marcas reconhecidas e, se julgados com sucesso por um painel competente, poderiam ver suas regiões e suas marcas ganhar o reconhecimento que mereciam.

Entre as críticas que recebi estava o fato de que os tintos franceses foram degustados muito jovens. Portanto, eu marquei uma nova prova com os mesmos vinhos em maio de 1986, em Nova York. Novamente, nove degustadores, liderados por Alexis Lichine, mais os críticos de vinho Alexis Bespaloff e Robert Finigan, George Lepre’ do Ritz de Paris e o jovem Bartholomew Broadbent. Aqui, Clos du Val 2002 veio em primeiro, Ridge em segundo e Stag’s Leap em sexto. A Union des Grands Crus de Bordeaux estava nos Estados Unidos na época, promovendo seus vinhos de 1985 e eles me responsabilizaram pessoalmente pelo fracasso de sua campanha.

Contraprova

Isso, e tendo provado que todos os tintos envelheciam bem, significava que eu não tinha a intenção de fazer uma nova prova em 1996. Foi só depois da pressão de Jacob Lord Rothschild, que apoiou o Copia Centre no Napa, que fui persuadido a organizar, em 24 de maio de 2006, o 30o aniversário da degustação com os mesmos tintos, simultaneamente às 10 horas da manhã no Copia e às 6 horas da tarde na Berry Bros & Rudd, em Londres. Novamente, nove degustadores em cada painel, com Patricia Gallagher e Christian Vanneque unindo palatos como os de Anthony Dias Blue no Napa, e Michel Dovaz e Michel Bettane unindo-se a mim, Hugh Johnson, Michael Broadbent, Jancis Robinson em Londres. Ambos os painéis escolheram Ridge Montebello 1971 como vencedor e, quando nossas notas foram somadas, a Califórnia ficou com os cinco primeiros lugares, seguida por Mouton Rothschild 1970, com Freemark Abbey 1969 por último.

Então, o triunfo final para a Califórnia? Para os vinhos originais, certamente, mas, em Londres, organizamos uma degustação aberta com os mesmos vinhos e mais alguns outros da safra 2000 – com os votos indo esmagadoramente em favor de Bordeaux. Minha conclusão foi que, no começo dos anos 1970, a França estava deitava sobre os louros – não havia competição à vista, portanto, não havia razão para se esforçar mais – e, no começo dos anos 2000, de certa forma, o mesmo ocorreu com a Califórnia.

Degustação no Napa

O dia de abertura do Festival de Vinho de Inverno de Naples destacou uma caminhada nostálgica de George Taber, que estava lá naquele dia, e eu, seguida de uma degustação dos Chardonnays do Chateau Montelena com o proprietário Bo Barrett e dos Cabernets de Stag’s Leap Wine Cellars com o CEO Ted Baseler. Minha introdução foi um panorama dos primeiros dias em Paris com a Academie du Vin e a decisão de organizar a degustação, enquanto George, como um observador em vez de participante, contou como foi a prova. “Ah, de volta à França”, disse um degustador ao provar o Freemark Abbey Chardonnay; “Este deve ser da Califórnia, não tem nariz”, disse outro sobre o Haut-Brion 1970. Nossa apresentação dupla foi bem recebida e então veio a degustação.

Chateau Montelena

Bo Barret mencionou que o Chardonnay de 1973 não passou por fermentação malolática e nenhuma outra safra depois disso passou. Todos os vinhos foram servidos em magnums.

1992 – Uma safra em que tudo foi bem, o vinho ficou mais tempo na barrica do que o usual, pois estava desenvolvendo vagarosamente. Puro dourado, com muitas nozes no nariz, mas ainda fresco, bem estilo Rhône e sabores amplos, sem sinal de desaparecer, final bom e firme.

1998 – Uma colheita tardia salva por um clima milagroso em outubro, o vinho estava bem fechado e verde na sua juventude, mas agora mostra cor ainda mais pura do que 1992, menos frescor, mas com boa estrutura, mais melado que com nozes, acidez que levanta o final.

2001 – Um ano com rendimento baixo, mas fruta próxima da perfeição. Dourado puro com um toque de verde, mais rico que 1998, porém, no geral, mais fresco e com uma boa profundidade da fruta de Chardonnay que mostra tanto maturidade quanto complexidade.

2004 – Um ano médio em quantidade e qualidade, mas que se transformou em um clássico. Dourado como limão fresco, leve tom de nozes com muita precisão de fruta, tem boa profundidade e textura soberba, um vinho muito bom.

2008 – Uma safra no meio de setembro com parte da colheita envelhecida em tanques para preservar a fruta. Amarelo puro, cheio, nariz melado, muito boa pegada no palato pela acidez retida, meio do caminho entre juventude e velhice, vai evoluir bem.

Stag’s Leap Wine Cellars SLV Estate

A famosa vinícola do estado de Washington, Chateau Ste Michelle comprou Stag’s Leap em 2008 por US$ 185 milhões. O CEO Ted Baseler disse que estava muito feliz com o investimento. A qualidade do seu 2008 e especialmente do 2012 me faz acreditar nele.

1983 – Uma safra excepcional para o Cabernet: robusto em cor, borda madura, nariz cálido, fruta muito boa, ainda um vinho agradável.

1993 – (com 5% de Petit Verdot) Uma estação de crescimento ideal do amadurecimento uniforme até a riqueza natural. Cor densa, outonal, frutas selvagens no nariz, rico no palato com boa pegada no final.

1998 – (com 2,6% de Merlot) Uma safra chuvosa depois da excepcional 1997. Vermelho robusto, alo maduro, mostrando vigor e profundidade no palato, mas não a elegância esperada de um SLV.

2008 – Uma boa safra com concentração natural da fruta no vinhedo. Soberba cor densa aveludada, fruta maravilhosamente rica no nariz e uma realmente boa expressão de Cabernet no palato, potente mas elegante, precisa de cinco anos.

2012 – Uma safra dentro dos padrões do Napa Valley. Cor vermelho-escuro aveludado, ótima expressão do Cabernet, até melhor do que 2008, muito boa profundidade do vinhedo combinando energia e vinificação soberbamente ajustadas.

Lote Spurrier

Meu lote de leilão foi para que dois casais me acompanhassem no Napa em um fim de semana de meados de maio, ficando no Meadowood Resort, jantando no Napa Valley Reserve com vinhos do Napa de anos anteriores a 1976. Depois, almoçando no dia seguinte no Chateau Montelena, em seguida uma visita a Mike Grgich, que fez o 1973 em Grgich Hills, e um jantar em Stag’s Leap. O final é com um brunch de domingo em Raymond Vineyards com Jean-Charles Boisset, quando eu devo desafiá-lo para o Julgamento do Napa: meu Bride Valley 2013 Blanc de Blancs contra seu JCB 2013. O lote arrematou US$ 120 mil e devo assegurar que valha a pena.

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