Tempo, tempo, tempo, tempo...

Entre a passagem dos dias e o clima, a safra 2013 no Rio Grande do Sul foi mais poesia do que drama

por Sílvia Mascella Rosa

Acervo Casa Valduga

O cantor e compositor Caetano Veloso é o autor da canção "Oração ao Tempo" e nas primeiras estrofes dela ele diz: "Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo, tempo, tempo, tempo/Entro num acordo contigo...". Para os enólogos brasileiros esse acordo começou ainda no inverno do ano passado, quando as videiras - no merecido descanso do ciclo anual - foram "acordadas" por alguns dias de inverno ameno, bem diferente dos últimos anos. E mais do que isso, no final do inverno, uma sequência de dias muito quentes fez com que muitas plantas "entendessem" que o descanso havia chegado ao fim e começassem a brotar.

"É claro que ficamos preocupados. O inverno na Serra Gaúcha é sempre intenso e longo. Isso previne doenças, faz a planta se enraizar mais e descansar", contou o enólogo da Vinícola Geisse, em Pinto Bandeira, Carlos Abarzúa. Ao seu lado, o enólogo da Dal Pizzol, Dirceu Scottá, é rápido para dizer que os dias de preocupação se revelaram infundados: "O inverno voltou e as plantas retomaram seu ciclo, mas é claro que já ficamos de olho, pois normalmente isso é sinal de que a safra tem chance de começar mais cedo", afirmou.

Ficar de olho significa, em termos de viticultura, fazer mesmo um acordo com todos os envolvidos no cultivo para prestarem atenção ao tempo, aqui traduzido tanto em temperatura (clima) quanto na passagem dos dias de evolução das uvas. Algumas regiões do Rio Grande do Sul sofreram outro susto, as chuvas de granizo - que costumam cair na primavera e que derrubam brotos de muitas plantas, prejudicando a colheita de até dois anos seguintes. Mas desta vez, com exceção de Santa Catarina, onde o tempo (tempo, tempo...) não colaborou tanto, o granizo ocorreu apenas em poucas áreas do Rio Grande do Sul.

"(...)Peço-te o prazer legítimo/E o movimento preciso/Tempo, tempo, tempo, tempo..."

"Nossa colheita foi realmente adiantada", diz Carlos Abarzúa, "mas isso não impediu que fosse excelente", completa o enólogo que, por conta de trabalhar quase que 100% com espumantes, começou a receber uvas cedo na Geisse, ainda em dezembro de 2012, com o pico em meados de janeiro.

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Apenas uns poucos quilômetros separam a Vinícola Geisse (em Pinto Bandeira), da sede da Cooperativa Aurora, no centro de Bento Gonçalves. E por lá a atividade começou realmente antes do normal: "Trabalhamos muito entre o Natal e o Ano Novo, recebendo uvas para base de espumantes que, mesmo vindo antes do que é o padrão - significa que tivemos duas safras no mesmo ano praticamente - vieram com qualidade impressionante", contou o enólogo André Peres Júnior, que recebeu as primeiras uvas de uma safra que, segundo Alem Guerra, presidente da cooperativa, deve chegar a 15 milhões de quilos de uvas viníferas, o que corresponde a pouco mais de 11 milhões de litros de vinho. "Certamente teremos rótulos especiais, mas ainda é cedo para firmarmos quais, pois tudo vai depender do comportamento durante a vinificação. Podemos apostar em espumantes de altíssima qualidade - porque as uvas precoces se mostraram excelentes em todos os componentes - e, consequentemente, vinhos brancos tranquilos à altura. Quanto aos tintos, deverão ter destaque o Pinot Noir e o Merlot", explicou Guerra.

Safra no Rio Grande do Sul começou mais cedo em 2013 devido aos dias de calor que ocorreram no fim do inverno

Garibaldi
Outros que mal celebraram a passagem do ano foram os cooperados da Garibaldi, na cidade de mesmo nome, conhecida como a capital brasileira do espumante (produto, aliás, que completa 100 anos de preparação no país neste ano). No final de janeiro, na manhã já cálida de um dia cuja temperatura atingiria os 34°C, o enólogo Gabriel Carissimi circulava apressado entre os tanques para controlar a temperatura dos mostos em fermentação, e proteger com gelo seco as uvas Chardonnay e Riesling - para que os delicados aromas não se perdessem com o calor. A tarefa do enólogo não é fácil, a estrutura da vinícola é grande, há quase uma centena de tanques e a perda de temperatura pode comprometer o trabalho de um ano inteiro que, dessa vez, foi auxiliado pela natureza: "As uvas brancas estão, em sua maioria, com, no mínimo, a mesma qualidade (alta) de 2012, e as tintas, que vão começar a chegar aos poucos, devem estar ainda melhores", explicou em meio a um ajuste e outro nos tanques que fervilhavam com as uvas fermentando, enquanto nas esteiras de recebimento, caixas e mais caixas de cachos íntegros e perfumados começavam o caminho para se tornarem vinho, uma pequena parte dos mais de 4 milhões de quilos de uvas finas que deverão ser processados neste ano lá.

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"(...)De modo que o meu espírito/Ganhe um brilho definido/Tempo, tempo, tempo, tempo/E eu espalhe benefícios..."

"É a safra mais perfeita de que já participei aqui", afirmou o enólogo Edegar Scortegagna, da Vinícola Luiz Argenta, em Flores da Cunha. Na novíssima IP brasileira, a colheita é sempre mais tarde do que na região de Bento Gonçalves e por lá começou nos primeiros dias de janeiro, com o recebimento da Chardonnay e da Pinot Noir para base de espumantes. "Uma das grandes vantagens de uma safra que está tomando esse caminho de perfeição é, para nós, enólogos, a possibilidade de experimentação. Agradaremos aos clientes com grandes vinhos e estudaremos o potencial do terroir e de nosso produto finalizado", explica ele, cuja colheita das uvas tintas iniciou apenas no final da segunda quinzena de fevereiro.

Mas uma safra de muito boa qualidade nem sempre quer dizer uma safra uniforme. Em todas - e principalmente em cada vinícola com seus terroirs particulares e plantios variados - existem uvas que se deram melhor e outras nem tanto.

Acervo Casa Valduga

Base de espumante
As uvas de base para espumantes, que no Rio Grande do Sul são tradicionalmente Chardonnay, Pinot Noir e Riesling, foram quase unanimidade nas duas dezenas de vinícolas consultadas em vários municípios. No entanto, cada vinícola parece ter sua estrela, de brilho definido pela quantidade de açúcar e de componentes fenólicos, que são algumas das chaves para o que poderá vir a ser um grande vinho. Na Casa Valduga (que cultiva uvas em três regiões diferentes do Rio Grande do Sul), até o começo de março, as uvas que chegaram com os maiores teores de açúcar tinham sido a Sauvignon Blanc e a Cabernet Franc, ambas vindas da região da Campanha Gaúcha. "Estamos bastante animados também com os resultados potenciais da Serra do Sudeste, onde estão variedades como a Arinarnoa e a Marselan, que devem ser colhidas na primeira quinzena de março, pois as condições climáticas estão colaborando muito", contou Daniel dalla Valle, enólogo da Valduga, que explicou que até aquele momento a empresa já havia processado 1,5 milhão de quilos de uvas viníferas.

"(...)Portanto peço-te aquilo/E te ofereço elogios/ Tempo, tempo, tempo, tempo/Nas rimas do meu estilo..."

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Descendo a Serra, em direção à Caxias do Sul, no terroir de Alto Feliz, o enólogo Bruno Motter, da Vinícola Don Guerino, já tem bem encaminhados alguns dos vinhos que deseja fazer para 2014: "Durante a elaboração, com a qualidade das uvas que estamos recebendo, estamos percebendo que poderemos ter tanto tintos jovens e frescos (que fazemos pensando no mercado externo) quanto alguns com bom potencial de guarda", disse. Motter explicou que na região onde a família tem os vinhedos, a grande amplitude térmica, mesmo no verão, favoreceu a concentração de aromas e cor das uvas tintas e que a baixa precipitação do final de janeiro e começo de fevereiro resultou numa maior concentração de açúcar nas bagas. "Uvas como Teroldego, Tannat, Chardonnay e Ancelotta, por exemplo, chegaram excelentes na cantina. E isso facilita o trabalho do enólogo", contou.

Uvas para base de espumantes chegaram em dezembro e enólogos acreditam em qualidade alta

Dirceu Scottá
Depois do Carnaval, a chuva se espalhou de forma desigual no Rio Grande do Sul, sendo que algumas partes da Serra Gaúcha e da Serra do Sudeste foram mais afetadas, enquanto uma boa parte da Campanha permaneceu seca (o que também pode comprometer a maturação). Por isso, enólogos tiveram que ter atenção com as tintas, especialmente a Cabernet Sauvignon

Uvas tardias
Conforme a safra chega ao fim, as preocupações do enólogos atingem algumas uvas tintas, principalmente a Cabernet Sauvignon, uma das últimas a ser colhida. O enólogo Alejandro Cardozo, do Grupo Décima e da Vinícola Estrelas do Brasil, contou que depois do Carnaval a chuva se espalhou de forma desigual no Rio Grande do Sul, sendo que algumas partes da Serra Gaúcha e da Serra do Sudeste foram mais afetadas, enquanto uma boa parte da Campanha permaneceu seca (o que também pode comprometer a maturação). "Recebemos uvas Merlot e Cabernet Sauvignon de alguns produtores terceirizados daqui da Serra que não compramos neste ano, pois estavam com baixa qualidade. Por outro lado, vimos uvas brancas de Vacaria (região norte do estado) de altíssima qualidade como a Sauvignon Blanc e também vimos uvas Tempranillo e Tannat da Campanha Gaúcha que estavam muito, muito boas", explicou Cardozo.

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Num domingo de março, em Caxias do Sul, depois de mais de 10 horas de trabalho controlando densidade e temperatura dos mostos, o enólogo deixou a empresa em direção à sua casa, enquanto dava esta entrevista. Ele afirmou que o tempo fez jus à sua fama: "Chego à reta final da safra - mesmo sem ter recebido ainda algumas uvas - mais otimista do que comecei. Imaginei que o calor precoce do começo do ciclo e que as chuvas irregulares fossem prejudicar um ano promissor. Mas hoje, depois de mais de dois meses de trabalho quase ininterrupto em vários terroirs, estou satisfeito com o que vejo, muito satisfeito. Percebo que teremos grandes vinhos desta safra e que, muitas vezes, precisamos trabalhar duro e dar tempo ao tempo", finaliza Cardozo.

IMPRESSÕES DE UMA SAFRA AINDA EM CURSO
Alguns fatores naturais, como volume de chuvas e temperaturas médias influenciam diretamente na maturação, acelerando todo o processo de metabolização, antecipando o amadurecimento dos frutos. Nos meses de outubro, novembro e dezembro, o volume de chuva foi baixo (próximos aos 30 mm/mês), bem aquém da média histórica de 140mm/mês. Ao mesmo tempo, as temperaturas médias se mantiveram acima da mediana. Esses fatores foram responsáveis por favorecer uma aceleração no processo de maturação, o que provocou uma antecipação de cerca de 15 dias na colheita das uvas precoces. Nas de maturação intermediária e tardia, essa antecipação está sendo ainda maior. As uvas, muitas delas colhidas no final de dezembro e começo de janeiro, apresentavam excelente sanidade e qualidade, com maturação e acidez bem equilibradas, o que já indicava mais uma safra excepcional. Já no final de janeiro, tivemos mudanças no clima, com precipitações frequentes, temperaturas diurnas elevadas e uma alta umidade, forçando os viticultores a antecipar a colheita das uvas a fim de evitar o desenvolvimento de fungos. Algumas variedades mais tardias não chegaram a expressar todo seu potencial em açúcares, no entanto apresentam boa estrutura em polifenóis e taninos.

Em linhas gerais, a safra 2013 teve uma excelente qualidade para as uvas colhidas até meados de fevereiro. Não tivemos problemas graves com granizo, como na safra de 2012. Para as uvas colhidas após a segunda quinzena de fevereiro, o potencial alcoólico foi menor, mas com boa sanidade e com bom IPT (Índice de Polifenóis Totais), permitindo a elaboração de bons vinhos, apenas com uma porcentagem menor em álcool. Em termos quantitativos, devemos ter uma safra com volume de produção muito semelhante à de 2012. Alguns especialistas apontam uma ligeira diminuição, principalmente por parte das uvas americanas, e um leve acréscimo nas uvas europeias. Deveremos chegar muito próximo aos 700 milhões de quilos de uvas produzidas.

É importante lembrar que a vitivinicultura se alastrou para novas regiões produtoras do Brasil, cada uma com particularidades no solo e no clima. Essa diversidade de terroir nos mostra um comportamento climático distinto em cada uma dessas regiões. A região do Planalto Catarinense, por exemplo, que colhe uvas mais tardiamente, após a segunda quinzena de abril, poderá ter excelente maturação em açúcares, dependendo do desenrolar do clima. Isso só o tempo dirá.

Por Luciano Vian, presidente da Associação Brasileira

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