Um gole de História

A bebida alcoólica mais antiga da humanidade é parceira do homem em sua jornada sobre a Terra

por Sílvia Mascella Rosa

Esta é a uma história em três partes, começando pelas origens da bebida, passando por seus ingredientes e fabricação e terminando nas modernas cervejas artesanais, fiéis aos princípios dos antigos mestres cervejeiros. O brasileiro tem uma relação íntima com a cerveja. A ponto de dar-lhe apelidos que os vinhos jamais aceitariam, de ter sua marca preferida conhecida pela família e por aquele garçom de confiança. Enquanto o vinho é do restaurante e a cachaça é do balcão, a cerveja é da casa, da beira da piscina, do futebol e do dia-a-dia. Sempre foi assim. A cerveja tem acompanhado o homem ao longo de sua trajetória em uma parceria feliz e ligeiramente embriagante.

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Os assírios e os sumérios foram os primeiros mestres cervejeiros

Alguns arqueólogos acreditam que o homem do período neolítico, há três mil anos a.C., já conhecia uma bebida semelhante à cerveja pelo simples motivo de ter aprendido a cultivar e estocar cereais para o inverno. Guardados em locais quentes e úmidos, esses cereais iniciavam um processo rústico de fermentação e, se misturados com água, produziam líquido potável de baixa graduação alcoólica.

Os registros mais sérios, no entanto, apontam os sumérios e os assírios - povos da antiga região da baixa Mesopotâmia, as margens do Rio Tigre, e ao norte da Mesopotâmia, alto do Rio Tigre, respectivamente -, como os primeiros mestres cervejeiros. Para dar à essa história sua dimensão correta, é necessária uma breve viagem no tempo. Vamos nos levar para o que era o mundo por volta de dois mil anos a.C. Em 1290 a.C., o faraó Ramsés II governava o Egito, em 1500 a.C. a escrita cuneiforme aparece na Ásia Menor e, menos de 100 anos depois, os fenícios surgem com a primeira escrita semelhante ao alfabeto. Essa época era parte da era do bronze onde hoje é a Escócia, e aqui na América já existiam vilas e fazendas em Honduras, e centros cerimoniais no Peru. O homem já deixara para trás sua vida nômade na maior parte do globo e já dominava com razoável habilidade o manejo da terra e dos artefatos de madeira, metal e barro.

Os sumérios habitavam os vales férteis dos rios Tigre e Eufrates e a eles se atribuiu o desenvolvimento de uma bebida fermentada a partir do trigo selvagem e da cevada, cultivados perto dos rios. Como já sabiam lidar com o excesso de produção e eram bons comerciantes, trocavam seus produtos e os levavam além do Golfo Pérsico através de uma intrincada rede de canais. O império da Babilônia, que sucedeu aos sumérios, parece ter sido o encarregado de levar essa antiga cerveja (que eles já produziam comercialmente em quase 20 variedades) até o Egito, onde ela alcançou grande popularidade e se espalhou pelos povos do mar Mediterrâneo.


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A cerveja retratada nos hieroglifos durante o governo do faraó Ramsés II, no antigo Egito

Uma controvérsia no mínimo divertida está inserida no livro Comida - uma história, de Felipe Fernández-Armesto, que pergunta: "O que veio primeiro, o pão ou a cerveja?". Segundo ele, a cerveja foi proclamada "a fonte Ur (Cidade- Estado fundada na Mesopotâmia em 3.500 a.C.) de toda a civilização, um grão fermentado de efeito mágico que persuadiu as pessoas a se estabelecerem em aldeias amistosas". Seria ela o objetivo final dos agricultores, e não o pão. Pois parece que o processo rústico de transformar grãos em álcool apareceu primeiro do que o processo de moagem, mistura e cozimento do pão.

Entre os egípcios, a cerveja era preparada tanto para a realeza quanto para o povo e, por vezes, utilizada como forma de pagamento dos trabalhadores. Ela estava inserida em todas as camadas da sociedade, sendo utilizada como oferenda aos deuses, nas celebrações festivas e também como parte dos pertences que eram colocados nas tumbas, para garantir uma pós-vida mais agradável. Um texto egípcio de 1600 a.C. atesta os mais de 100 usos medicinais da cerveja.

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A deusa Ceres, padroeira das colheitas e da agricultura

E os costumes sociais indicavam que se uma dama aceitava um gole da cerveja de um homem, isso os fazia automaticamente noivos.

Um salto na história nos leva aos romanos, aproximadamente no ano 60 a.C., provavelmente os responsáveis pelo nome da bebida. Eles preparavam um líquido ao qual davam o nome de cerevisia, em homenagem à deusa Ceres, padroeira das colheitas e da agricultura e cujo nome em latim significa força. Foi por meio de suas conquistas que a cerveja chegou ao norte e ao oeste da Europa. O próprio César brindou com cerveja suas tropas quando atravessou o Rubicom, que deu início à guerra civil romana, no ano 49 a.C.

Nessa época, a cerveja já estava bem espalhada pelo mundo e grande parte de seu processo de fabricação ficava nas mãos das mulheres, pois era considerado um alimento. Cada povo preparava a bebida com os grãos que mais facilmente eram produzidos em sua região e, muitos deles, acrescentavam ervas, frutos e algumas flores para dar-lhe distintos sabores.

Durante a primeira metade de Idade Média (entre os anos de 500 e 1000 d.C.), a produção de cerveja se modificou para sempre na Europa, deixando de ser um produto de fabricação familiar para ir às mãos dos mosteiros e conventos.

Inicialmente, o que seria para consumo próprio, para receber os peregrinos e, por vezes, como substituição do vinho sagrado nas regiões onde ele não podia ser produzido, passou a ser uma importante fonte de renda para os mosteiros. Nesse lugares, em que a história do mundo era conservada nos livros e um pouco de ciência era praticada, a cerveja evoluiu. Foi exatamente nesse período, por volta do ano 800, que o lúpulo foi introduzido na fabricação pelos monges de San Gallo, na Suíça, iniciando o processo que culminaria na cerveja moderna.

Algumas centenas de anos depois, em 1200, as cervejarias passaram a existir também fora dos mosteiros e já eram um negócio bem estabelecido em países como Alemanha, Áustria e Inglaterra. A bebida já era tão popular que os registros da época mostravam as cervejas do tipo lager mais geladas (guardadas em caves alpinas) como preferida dos alemães, e as do tipo ale, em temperatura um pouco mais elevada, como predileta dos ingleses. A cerveja é levada tão à sério que, em 1489, surge na Alemanha o primeiro conselho de cervejeiros, o Brauerei Beck.

Na próxima edição, conheça os ingredientes e o processo de fabricação das cervejas, do renascimento até nossos dias.

Eduard Spelterini
Na Suíça, o lúpulo foi introduzido em torno do ano 800 pelos monges de San Gallo

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