Entrevista

"Os vinhos naturais, de natural não têm nada"

Uma conversa franca com Alejandro Vigil, enólogo da Bodega Catena Zapata

por Por Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan

Alejandro Vigil

Alejandro Vigil surge com um sorriso no rosto. Como é de costume. Mas, agora, um pouco de sua felicidade são as notas divulgadas naquele dia pela Wine Advocate, de Robert Parker, para os vinhos argentinos. Mais uma vez, seus produtos estão no topo da lista, com as melhores pontuações. Desta vez, contudo, um vinho de seu projeto pessoal (em parceria com Adrianna Catena, caçula de Nicolas) superou os ícones da Bodega Catena Zapata.

O enólogo poderia estar preocupado com a repercussão disso. Porém, o importante é que os primeiros da lista são vinhos feitos por suas habilidosas mãos e engenhosidade. Então, certamente há um toque de orgulho naquele farto sorriso que distribui.

As novas notas de Parker novamente mostram o quanto não só a Catena Zapata, mas especialmente Vigil está na dianteira das tendências enológicas na Argentina. Mesmo ele não gostando de ser rotulado como uma estrela, cada vez mais atrai as atenções para si e, de certo modo, para os caminhos da evolução do vinho argentino que ele vem ajudando a trilhar.

Despojado, sincero, direto – assim como os vinhos que busca sempre fazer –, Vigil define-se como uma mistura de artista e cientista. Sua relação com o vinho vem desde criança, quando brincava de criar mostos e fermentá-los – e diz que até hoje brinca na hora de elaborar seus blends.

Ao notar a tatuagem no seu braço esquerdo, que ostenta os dizeres “Malbec” e “Juan Cruz” (nome de seu filho), pode-se pensar em sua devoção à variedade símbolo da Argentina, o que não deixa de ter um fundo de verdade, mas a história, apesar de estar vinculada ao vinho, não é bem assim. “Há seis anos, estava em São Paulo para uma feira e, um dia, fomos provar vinhos da Borgonha. No fim, tomamos cerca de 12 garrafas. Na frente do hotel havia uma loja de tatuagens. Por sorte, pus Malbec e Juan Cruz e não outra coisa... Isso foi bom. O ruim é que me inteirei do que havia feito de manhã. Senti um plástico no braço e... oh!”, conta. Ele diz que a tatuagem ainda causou um conflito em casa, pois não tinha colocado o nome da filha, Juliana. “Estou velho para isso... Vou colocar com Cabernet Franc...”, diz.

Nesta entrevista exclusiva, sempre de bom humor, ele revela um pouco de sua história e de qual legado pretende deixar para o vinho argentino.

Poderia contar como foi sua trajetória no vinho?

É uma história um pouco longa. Podemos pedir uma garrafa de espumante? Ela fica ainda maior quando vou bebendo... [risos] Tudo começou com meu avô materno, Tristán Valenzuela, quase um homem das cavernas, rústico, enorme, que trabalhava sua vinha. Eu passava as férias de verão, que na época eram quatro meses, em San Juan, 160 quilômetros ao norte de Mendoza. Desde as 5 horas da manhã até meio dia, trabalhava com meu avô na vinha ou na vinícola. Era pequenino. Ao meio dia, parava, pegava cachos de uva, moía e preparava suco de uva para mim. O que sobrava, ia para um barril, que ficava fermentando de forma permanente – era um vinho doce, com gás carbônico, quase um Beaujolais de Criolla e Malbec. Então, desde essa época, trabalhava na vinha. Lembro que era muito penoso para mim, pois todas as crianças brincavam nas férias e, enquanto trabalhava, elas já estavam jogando bola. Mas é interessante como a minha visão foi mudando do pesar de fazer isso para depois escolher isso. Quando fui crescendo, já não queria trabalhar até às 12h, mas até às 18h. Isso foi uma evolução muito bonita que guardo na minha memória. Logo depois, sai de casa, fui viajar com grupos de rock, voltei e fui viver no campo, em um lugar que se chama Algarrobal, ao norte de Mendoza. Meu trabalho era arrancar e plantar novos vinhedos em uma cooperativa agrária. Depois, aos 18 anos, mais ou menos, comecei a trabalhar numa vinícola, que se chamava Lobos Hermanos. Entrei na universidade de agronomia e, depois de um ano, passei a trabalhar no Instituto de Tecnologia Agropecuária da Argentina. Depois de cinco anos e três meses, formei-me e ingressei como chefe do departamento de solos. Minha tese foi sobre o zoneamento da Malbec nos distintos terroirs. Na época, era uma loucura, porque o Malbec era pensado como um vinho básico. Mas muitas empresas me apoiaram. Começamos o trabalho e me ligavam da Catena. Ligavam, ligavam, ligavam. “Quando vem trabalhar conosco?” Um dia, meio irritado, ligaram e disse: “Hoje vou trabalhar com vocês”. Já faz 14 anos.


“Para mim, terroir é uma somatória de experiências em cultivar e elaborar o vinho de forma centenária em um determinado lugar”

Como começou na Catena?

Comecei desenvolvendo o instituto de pesquisa. Na época, havia um consultor australiano, John Duval, fazendo o corte de Nicolas Catena Zapata 2001. Ele disse: “Vigil, anima-se a fazer um corte?” Eu, com toda a ignorância – pois, para mim, era uma brincadeira –, fiz. Estavam todos: Nicolas, Laura (sua filha), Pepe Galante (enólogo), e fui com minha garrafinha. Colocaram-na sobre a mesa, com outras cinco. Fizeram uma prova às cegas e todos votaram no meu corte. Eu, cara de pôquer. “O que você fez?” “Mesclei isso e isso”. “E quantas garrafas pode fazer disso?” “Nem faço ideia” [risos]. Alguns meses depois, Nicolas me encarregou de todos os vinhos premium da empresa. Os da safra 2004 foram meu primeiros como chefe e, em 2007, encarregaram-me de todas as vinícolas da família.

Há uma responsabilidade em trabalhar na Catena, um nome tão respeitado na Argentina e no mundo?

A responsabilidade coloco no planejamento dos trabalhos que faço. Lá se trabalha muito seriamente, tudo planejado, estruturado. Mas não sou nada responsável quando elaboro os cortes. É quando posso brincar e, como sempre digo, fazer vinhos como criança. Sempre com total “analfabetismo de vinho” para que não existam fatores que me façam duvidar ou ter medo ante ao que creio que está bom.

“Lá [em Catena] se trabalha muito seriamente, tudo planejado, estruturado. Mas não sou nada responsável quando elaboro os cortes. É quando posso brincar e, como sempre digo, fazer vinhos como criança. Sempre com total ‘analfabetismo de vinho’ para que não existam fatores que me façam duvidar ou ter medo ante ao que creio que está bom"

"Sei que vou morrer e não vou poder ver nem 1% do potencial que temos com esse varietal [Malbec]. É lamentável, mas é assim"

Então é possível ser “irresponsável” na Catena?

O bom de trabalhar com Nicolas e Laura é que trabalhamos de forma permanente em hipóteses, em teses, em ideias. Teorizamos tudo e, para mim, isso é o melhor. Depois, o momento da pratica é muito diferente, mas a teorização de algo faz com que se pense muito mais, e isso me agrada. Assim, trabalhar na Catena é uma mescla muito perfeita de ciência com arte. E essas duas coisas estão sempre muito juntas. Quando pensamos nos grandes artistas, eles também são cientistas. Veja Da Vinci, por exemplo. Então, há uma certa conexão.

Você fez uma tese sobre zoneamento. Foi você quem começou com os temas de terroir na Argentina e que hoje se fala tanto?

Acho que se fala demais e há muito pouco feito. Comecei trabalhando em terroir e agora já me dá vergonha. Se fala tanto disso que me choca. Uma banalização. Hoje quero falar um pouco de identidade geográfica com a busca do terroir. Mas é muito difícil falar disso, porque, sobretudo, minha definição de terroir é muito particular.

E qual é a sua definição?

Sempre se fala da interação do homem com o clima, a superfície, o solo. Isso não é verdade. Quem escolheu plantar a vinha aí? Quem a cultivou? Quem elaborou o vinho? Quem decide? Então, a minha definição de terroir é algo como uma somatória de experiências em cultivar e elaborar o vinho de forma centenária em um determinado lugar. Isso é terroir. Aí essa palavra se transforma. Há lugares em que não há terroir, porque só há 40 anos se faz vinho e nada mais. E há outros – como Agrelo, com 400 anos fazendo vinho – em que há. Então, voltando à pergunta anterior, começamos a falar de terroir muitos anos atrás, creio que o instalamos depois de 15 anos e acho que agora temos que planejar nosso trabalho para determiná-los.

Pode-se falar de potencial de terroir, então?

Exato. Somos muito novos, pois começamos a trabalhar com Malbec de zonas diferentes e, muito provavelmente, vão aparecer outros varietais em outras regiões. Então, falemos de tintos de Tupungato, tintos do Vale de Uco, de Lunlunta, algo que não se restringe a um varietal, mas a uma cor em uma região. Temos uma viagem muito longa pela frente, com 50, 60, 100 anos. Mas, é preciso começar, alguém tem que fazer. Sempre digo que começamos algo que não vamos ver. Outros vão levar os louros, mas não importa, alguém tem que fazer – e, o melhor de tudo, é divertido.

Sala de Degustação
“Trabalhar na Catena é uma mescla muito perfeita de ciência com arte. E essas duas coisas estão sempre muito juntas. Quando pensamos nos grandes artistas, eles também são cientistas. Veja Da Vinci, por exemplo”

"Os vinhos naturais, que todos gostam de escutar, de natural não têm nada. Fazemos um desastre ecológico. Eu prefiro falar da mínima intervenção possível"

Quão importante é o homem na sua visão de terroir?

É a parte definitiva, que toma a decisão de plantar. É um início. Sem contar que fazemos um dano muito grande, porque passamos de um lugar onde há 60 espécies de árvores, de fauna, arrancamos e fazemos uma monocultura. Temos uma intervenção tão forte sobre o lugar que é impossível separar o homem da vitivinicultura. É preciso colocá-lo como um componente do terroir. Os vinhos naturais, que todos gostam de escutar, de natural não têm nada. Fazemos um desastre ecológico. Eu prefiro falar da mínima intervenção possível. E a mínima intervenção já é um desastre, porque pegamos a terra, aramos, tiramos tudo, matamos as formigas, os pássaros se vão, imagine o impacto que isso produz. Vinho natural é muito difícil, mas há toda uma discussão conceitual que não vem ao caso.

Então, como você trabalha os diferentes terroirs e castas da Argentina?

O mais importante, a principio, é entender que, com a Malbec, estamos começando. Temos apenas 15 anos trabalhando medianamente sério. Por isso, o caminho da Malbec é muito amplo. Então, quando começo a introduzir outra variedade como Cabernet Franc, Garnacha, Mourvèdre, Nebbiolo na zona sul, é um complexo que a minha cabeça quase não alcança, mas é preciso fazer. Com a minha marca pessoal, El Enemigo, foquei em Cabernet Franc e seus blends. Mas é algo experimental. Quando tenho que trabalhar seriamente em algo já imposto, trabalho muito só com Malbec, de Catena, e sigo trabalhando e estudando sobre essa uva. E sei que vou morrer e não vou poder ver nem 1% do potencial que temos com esse varietal. É lamentável, mas é assim.

Alejandro Vigil

"Em termos de vinho, a vida é muito curta. Deveríamos viver 350, 400 anos, pelo menos, para ter um processo terminado"

O que é mais importante quando se trabalha para uma empresa tão grande?

É importante, em primeiro lugar, que a empresa vá bem e seja capaz de manter seus empregados. Segundo, por ser uma empresa tão importante na Argentina, somos um exemplo de trabalho. Então, temos que ir nos adequando à realidade aos poucos e a realidade é poder fazer vinhos transparentes do lugar de onde vêm.

Os enólogos hoje são muito requisitados, famosos, o que acha disso?

Espero que os enólogos deixem de ser rock stars. Não entendo por que chegamos a esse ponto. A única coisa que o enólogo deveria fazer é perder o menos possível a uva que vem do vinhedo. Esse é o trabalho fundamental. Deve-se estudar e trabalhar para ser o mais transparente e que o vinho chegue ao consumidor de forma direta. Isso é o mais importante hoje: trabalhar com o que temos no campo, poder colocar na garrafa e que ela chegue até você. Isso resulta em duas coisas: honestidade em relação ao produto e a tranquilidade de mínima intervenção. Mínima, em definitivo.

Você está escrevendo um livro sobre terroir?

Sim. Vou ver se consigo terminar até dezembro deste ano. Na Catena, tenho a possibilidade de elaborar vinhos de quase todas as regiões, posso experimentar, não somente trabalhar sobre as origens do solo, o clima, a interação, a história, mas também compreender um pouco sobre o que aprendi quando elaborei essas coisas. O que me dá medo é ter toda essa informação e ela não chegar às pessoas. Quando se entra em uma empresa, o mais importante – quando se é uma pessoa ambiciosa como eu – é saber qual o piso e o teto. Na Catena, meu piso era altíssimo, quase um arranha-céu, porque havia gente de muito alto nível. Então, você tem que começar a digerir, a pensar que piso vai deixar para os que vêm. Se podemos elevar esse piso para a maior quantidade de viticultores da Argentina, isso significa que toda a indústria vai subir. Isso é o que pretendo com o livro e com tudo o que estou fazendo – ir compartilhando o que vou
aprendendo.

Quais diferenças há entre o trabalho em seu projeto pessoal, El Enemigo, e na Catena?

Meu projeto é uma diversão a mais que tenho. Sou capaz de desenvolver uma parte que não é tão possível dentro da Catena. Posso trabalhar sobre outros aspectos nos quais tenho curiosidade. Comecei com projetos de uvas Criolla, por exemplo, coloco mosto em ovos para fermentar, estou produzindo vinhos doces, tipo Porto, como se fazia antigamente em Mendoza... Tudo isso para me divertir com algo novo. Estou satisfazendo um desejo.

Com o tempo, o que mudou na sua forma de ver o vinho?

Lembro que pensava no vinho como um alimento e como um centro de atenção. Hoje vejo como algo para compartilhar, mas que a bebida não seja o centro das atenções, que seja algo mais. Vou a reuniões onde estão falando de vinho e não se pergunta sobre os filhos, não se fala do trabalho, da vida, está-se falando de um vinho [faz uma cara de desaprovação]...  O vinho abre uma porta que as pessoas têm um pouco fechada ou travada. Quando bebe vinho, abrimo-nos e compartilhamos, sempre, especialmente se não nos mantemos no paraíso e não descemos ao inferno. Se bebemos demais, estamos com problema. Mas, se soubermos nos manter nessa nuvem tóxica, mas amigável, é tudo muito belo. Então, o vinho é um veículo para essa situação, ou para um jantar lindo, ou para um momento a sós... Mas é uma companhia para outra coisa e não o leito. Isso mudou na minha mente e, por isso, estou pensando em vinhos aromáticos, simples, frescos...

Isso mudou a sua forma de fazer vinhos?

100%. Meu primeiro 98 pontos de Parker tinha 300% de madeira. Abria a garrafa e tinha um jogo especial de talheres para a ocasião... Era realmente difícil. Mas as pessoas evoluem.

Qual sua ambição?

Ambição não necessariamente tem a ver com obtenção de poder, então, a minha é conhecer. O problema mais grave é a curiosidade. Minha curiosidade é grande em respeito a tudo o que é vitivinícola. Li escritos em que diversas pessoas diziam que um produtor chamado Godoy, em 1715, fazia o melhor vinho “de vela” (estilo Jura) que haviam provado. Deve ter sido muito bom. E não fazemos mais isso, esquecemos. Por quê? Isso me gera curiosidade. Então, vamos resgatando um pouco disso para ver o que acontece. Estou nessa busca eterna de saber se tem algo bom. Outro vício.

A vida é curta demais quando se trabalha com vitivinicultura?

Em termos de vinho, a vida é muito curta. Deveríamos viver 350, 400 anos, pelo menos, para ter um processo terminado. Mas, como ela é curta, é preciso fazer muitas coisas, tentar fazer o máximo possível.

AD 92 pontos
CATENA ZAPATA CHARDONNAY WHITE BONES 2009
Catena Zapata, Mendoza, Argentina (Mistral US$ 159,50). Branco 100% Chardonnay, fermentado e estagiado entre 12 e 16 meses em barricas de carvalho francês. A madeira está bem integrada, aportando textura e volume de boca ao conjunto. Chama a atenção pelo equilíbrio, pelo frescor e pelo final persistente e suculento, com notas de mel, que convidam a mais um gole. EM

AD 93 pontos
CATENA ZAPATA MALBEC ARGENTINO 2008
Catena Zapata, Mendoza, Argentina (Mistral US$ 199,50). Este tinto é uma seleção de Malbec dos vinhedos Adrianna, em Gualtallary, e Nicasia, em La Consulta, com fermentação e estágio em barricas de carvalho francês. Estruturado, mostra acidez refrescante, taninos finos e de boa textura, além de ótima concentração e profundidade, tudo num contexto de elegância e finesse. Um outro ótimo Malbec, de um ano muito bom, que tem tudo para evoluir magistralmente. EM

AD 93 pontos
CATENA ZAPATA MALBEC ADRIANNA 2008
Catena Zapata, Mendoza, Argentina (Mistral US$ 199,50). Tinto elaborado exclusivamente a partir de uvas Malbec advindas do vinhedo de mesmo nome, com fermentação e estágio em barricas de carvalho francês. Um tinto grande em todos os aspectos, desde a sua fruta exuberante, passando pela textura sedosa e granulada de seus taninos, até o seu final cheio – tudo equilibrado por bastante frescor e vibração. Um ótimo exemplo de Malbec de altura, que deve ficar ainda melhor nos próximos 10 anos. EM

AD 91 pontos
NICOLAS CATENA ZAPATA 2009
Catena Zapata, Mendoza, Argentina (Mistral US$ 199,50). Elaborado a partir de 75% Cabernet Sauvignon e 25% Malbec, com estágio de 24 meses em barricas de carvalho francês. Aqui, o ano mais quente se faz sentir no estilo de fruta vermelha e negra mais madura, na grande concentração e suculência, tudo suportado por taninos marcantes e de ótima textura. Potente, tem final persistente, com agradáveis notas de grafite. Um grande exemplar de Malbec de um ano mais quente. EM

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