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ADEGA deu uma volta pela Itália, buscando diversas referências em sua rica gastronomia, e mostra como harmonizar pensando nas interações entre o corpo dos vinhos e os pratos

por Carlos Cordeiro - Cwp

Foto: Luna Garcia / Restaurante Walter Mancini
Pense nos corpos do prato e do vinho para tentar compor uma harmonização perfeita

A culinária italiana é certamente uma das mais exploradas no Brasil, tanto que pizzas, massas e molhos de tomate são uma religião por aqui. A influência da imigração é forte e a identificação do brasileiro com esse povo da “Bota” é tanta que muitos de nossos pratos cotidianos são ou de origem italiana ou inspirados nas receitas deles.

Então, aproveitando as comemorações de 150 anos da unificação (17 de março de 1861) e 66 anos da libertação da Itália do domínio alemão durante a II Guerra Mundial (25 de abril de 1945), prestamos uma homenagem utilizando o vasto e riquíssimo contexto enogastronômico italiano para criar harmonizações que você certamente poderá copiar em qualquer lugar. E para dar base a isso, usamos das interações entre os pratos e os diversos níveis de corpo dos vinhos tintos (veja box explicativo de como identificar o corpo dos vinhos).


Vinhos italianos
Selecionamos dois vinhos do Piemonte, dois da Toscana, um do Vêneto e um da Sicília. Os dois vinhos do Piemonte, um Dolcetto d’Alba e um Barolo, são produzidos a não mais de 20 quilômetros de distância e, ainda que cada região tenha suas peculiaridades geográficas e climáticas, compartilham o mesmo macroclima, demonstrando que o clima isoladamente não define as características do vinho. Na Toscana, optamos por dois vinhos que utilizam a mesma uva (Sangiovese) e são plantados em regiões vizinhas, um Chianti Classico e um Brunello di Montalcino, e, ainda assim, o resultado é diverso. No Vêneto, fomos buscar uma técnica diferenciada de vinificação, do Amarone della Valpolicella, que resulta em vinhos extremamente concentrados e completamente diferentes daqueles produzidos na mesma região, com as mesma uvas, os tradicionais Valpolicella. Finalmente, na Sicília, buscamos uma uva quase exclusiva da região, a Nero d’Avola, que representa perfeitamente o caráter e o clima local.
Na escala crescente de corpo, os vinhos foram assim ordenados:

A versatilidade do Chianti casou bem com o coelho do molho do pappardelle

Dolcetto d’Alba Dei Grassi 2009 DOCG Elio Grasso – Apesar da neve e das chuvas no início da primavera, a partir do início de maio o clima se estabilizou e proporcionou um amadurecimento perfeito das uvas. Em função disso, o nível de álcool subiu a 14%, adicionando um pouco mais de corpo do que o esperado de um Dolcetto (usualmente em torno de 12, 13%). Apesar do nível de álcool, a textura do vinho é bastante refinada. Os taninos são muito macios e levemente “empoeirados”. Destaque para as frutas escuras, como amoras e blackberries e alcaçuz. Muito acessível e fácil de ser apreciado.

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Chianti Classico Villa Cerna Riserva 2006 Cecchi – Belíssimo Chianti de corpo médio, que combina frutas vermelhas, como cereja e framboesa, com ameixa e alcaçuz. Notas de tabaco. A acidez característica dos Chianti deixa o vinho quase cítrico. Os taninos sedosos e os 13% de álcool se equilibram perfeitamente na composição deste ótimo representante da região.

Morgante Nero d’Avola I.G.T 2007 – A Nero d’Avola pode não ser autóctone na Sicília (a origem pode ser a Calábria), mas representa muito bem o local. Uma uva que precisa do calor e da insolação que a Sicília proporciona e resulta em vinhos vivazes, cintilantes e calorosos, normalmente de corpo médio a encorpados. Em 2007, com 13,5% de álcool e corpo médio, o destaque fica por conta da geleia de framboesa – que chega a enganar sobre uma possível doçura no vinho –, chocolate (mais uma remissão ao doce) e especiarias. Balanço perfeito e satisfação garantida no nariz e na boca.

Brunello di Montalcino 2003 Caparzo – as frutas em compota/cozidas ou geleia de frutas do vinho são resultado do calor de 2003, que amadureceu as frutas muito bem. Por outro lado, deixou este Brunello, com 14% de álcool, bastante encorpado. Um vinho complexo, que revela – abaixo da camada de frutas – aquele empoeirado e especiarias doces como a canela de um carvalho perfeitamente integrado. A estrutura de taninos é sólida, mas já completamente abordável. Um vinho excelente. Para ser bebido hoje, amanhã e sempre que for possível, por, no mínimo, mais dez anos.

COMO IDENTIFICAR O CORPO DO VINHO
Pedra fundamental no processo de harmonização, a noção de corpo do vinho nem sempre é algo totalmente claro. Como, diante de uma prateleira cheia de opções, identificar o vinho com o corpo que melhor se harmonizará com o prato em vista? Por que conhecer o corpo do vinho é tão importante para fazer a melhor harmonização? Quem já massacrou um pobre (e maravilhoso) linguado grelhado regado com um levíssimo molho de espumante com um Cabernet Sauvignon ou um Syrah sabe a resposta à última pergunta. Harmonização pressupõe equilíbrio, e é do equilíbrio que extraímos o máximo prazer. Isso porque vinho e comida devem ser capazes de demonstrar suas características, nuances e particularidades. Se um deles se sobrepuser ao outro, haverá perda. Nosso tema então é o corpo dos vinhos, mais especificamente, dos vinhos tintos secos, o que nos conduz à nossa primeira pergunta: o que é o corpo do vinho e quais as formas para tentar identificá-lo? Infelizmente, não há uma equação que defina o montante de corpo dos vinhos nem, tampouco, uma tabela de consulta rápida para elucidar o caso. Isso porque o corpo é resultado de processos que se iniciam na videira e se completam, apenas, no copo. Os elementos fundamentais do corpo dos vinhos tintos secos são os níveis de álcool, de taninos e dos demais extratos da uva que comporão os aromas e sabores. E esses três elementos são em função da cor (no nosso caso estamos tratando apenas das tintas) e variedade da uva; do clima no qual as uvas foram cultivadas; e da técnica de vinificação.

VARIEDADES Portanto, um bom ponto de partida para identificação do corpo é conhecer a variedade usada no vinho. Aqui é necessário alguma memorização, e o melhor caminho para ela são os testes empíricos, mas, em todo caso, segue uma relação (extremamente simplificada) crescente de uvas em função do corpo: Gamay > Pinot Noir > Grenache > Tempranillo > Sangiovese > Merlot > Zinfandel > Nebbiolo > Cabernet Sauvignon > Shiraz. Trata-se apenas de uma referência, mesmo porque, isoladamente, essa informação diz muito pouco sobre o produto final. Não fosse assim, o Pinot Noir da Borgonha, por exemplo, teria exatamente o mesmo corpo do neozelandês, o que, sabemos, nem sempre é verdade. Nesse caso, entra um segundo fator: o clima.

CLIMA
Não nos referimos a variações esporádicas como geadas ou chuvas próximas das colheitas, mas ao clima médio do local em que são cultivadas as videiras. Principalmente a amplitude térmica, o nível de exposição solar e a quantidade de chuva definirão o tempo que a uva permanecerá na videira. Um clima mais quente e ensolarado possibilitará que a uva amadureça mais rápido e com maior quantidade de açúcar, o que pode resultar em um vinho mais concentrado, com maior nível de álcool e, consequentemente, mais corpo. Inversamente, no clima mais frio, as uvas demoram mais a amadurecer, mantendo elevada a acidez da fruta e o nível de açúcar mais baixo, tendendo a produzir vinhos mais leves. Considerando que, em geral, o clima no Novo Mundo tende a ser mais quente do que nas tradicionais regiões vinícolas europeias, podemos dizer – com a convicção de que cometeremos muitos erros – que os vinhos do Novo Mundo tendem a apresentar mais corpo do que os do Velho Mundo.

TÉCNICAS DE VINIFICAÇÃO
Mas a variedade da uva e o clima não são suficientes para determinar o corpo do vinho. As técnicas de vinificação têm peso, no mínimo igual, nesta aritmética. Sabemos que os taninos estão concentrados basicamente nas cascas e sementes, portanto o nível de tanino dos vinhos será largamente influenciado pelo tempo que o suco permanece em contato com as cascas. O tempo e a temperatura de fermentação definirão, também, quanto de extrato será transferido ao produto final. Finalmente, o tempo de permanência do vinho em contato com carvalho também ajuda a definir o corpo. O carvalho adiciona, através de seus taninos diferenciados, complexidade e corpo.

RESULTADO DAS HARMONIZAÇÕES

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Barolo La Villa 2005 Aldo e Riccardo Seghesio
– O Barolo está intimamente ligado ao movimento de união italiana. O responsável pela mudança estilística do vinho, antes doce, foi Camillo Cavour, um dos expoentes da unificação, que contratou o enólogo Louis Oudart para redefinir o vinho. Barolo é quase sinônimo de vinho encorpado – ainda que haja uma distinção entre os vinhedos a leste e oeste da estrada Alba. Os a leste são mais macios e frutados e os a oeste mais intensos e encorpados. Mas eles compartilham traços em comum: estrutura firme de taninos, aromas complexos e coloração não muito intensa (contrariamente ao que se suporia). Este La Villa 2005 (a oeste da estrada), surpreende. A textura do vinho é extremamente macia, com os taninos já completamente suavizados, algo incomum em função, tanto da localização do vinhedo, quanto da idade do vinho. Essa maciez permite, desde já, que a complexidade aromática seja o destaque: frutas frescas, cogumelos e notas florais. O final longo demonstra, ainda, a perfeita integração do carvalho. Um Barolo excelente, moderno, pronto, porém com um pouco menos corpo do que o esperado.

Amarone della Valpolicella Classico I Castei Campo Casalin 2005 Michele Castellani – O Amarone é um vinho diferenciado pela técnica de vinificação. As uvas, depois de colhidas, são mantidas em ambiente climatizado com umidade controlada (modernamente) para secarem e perdem cerca de 50% da água. Com o aumento da concentração de açúcar, o Amarone costuma ser um vinho encorpado com nível de álcool em torno de 15%. Este ótimo I Castei 2005 de Castellani revela as típicas frutas secas, como ameixas, uvas-passas e tâmaras, mas também uma madeira marcante. Os taninos são firmes, porém não agressivos. Um vinho que enche a boca.


Pratos
Para a harmonização utilizamos pratos típicos das regiões onde os vinhos são produzidos, exceção à pizza, que não poderia ficar de fora. Sempre levando em conta a diversidade de corpo dos vinhos, procuramos pratos com a mesma amplitude. Assim, também em ordem crescente de corpo, os pratos selecionados foram:
Pizza de calabresa;
Pappardelle com il Coniglio – receita toscana de massa chata e larga com molho de coelho;
Cavatieddi – Gnocchetti di Semola al Sugo di Maiale – prato típico da Sicília, trata-se de um gnocchi um pouco menor e ragu com carne de porco e verdura;
Bisteca Fiorentina com Faggiolli Canellini – como o próprio nome diz a receita é proveniente de Florença. Trata-se de um T-bone grelhado na brasa;
Brasato al Barolo – receita do Piemonte na qual o corte bovino é cozido no vinho Barolo com especiarias por cerca de três horas;
Polenta Veneziana com Marmelada de Porcini – ao prato tradicional da região do Vêneto, foi adicionada a Marmelada de Porcini, inspirada em receita do chef Jean-Georges Vongerichten para dar o “peso” necessário à preparação.

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Acompanhar a peculiaridade dos sabores e corpo do Amarone não é simples, mas a polenta com porcini conseguiu

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Dolcetto d’Alba

O Dolcetto é considerado um vinho do dia-a-dia na Itália. É companhia perfeita para os pratos mais simples ou os primi piatti (usualmente massas). A simplicidade da pizza calabresa produziu a melhor harmonização para ele, mas as massas não ficaram muito atrás.

Chianti Classico Riserva
O Chianti é um vinho bastante versátil. Com os pratos de corpo médio, sobretudo aqueles que levam molho de tomate, é quase imbatível. Tanto o porco quanto o coelho dos molhos das massas foram harmonizações de comer de joelhos. A acidez do vinho contrabalançou a acidez do tomate dos molhos enquanto os demais aspectos dos pratos e do vinho se completavam. Equilíbrio perfeito de corpos.

Nero d’Avola
Mais um vinho de corpo médio que se deu bem com várias receitas. Claro que quando colocado ao lado do prato da mesma origem a harmonização ficou ainda mais fácil e marcante. A surpresa da harmonização do Nero d’Avola foi com a polenta. Em tese, o prato seria “pesado” demais, mas a geleia de frutas do vinho foi uma ponte maravilhosa para o adocicado da marmelada de porcini.

Brunello di Montalcino
Os cientistas que nos desculpem, mas a viagem no tempo/ espaço é, sim, possível. Com um gole de vinho e um pedaço de bisteca na boca nos transportamos imediatamente para um terraço com vista para as colinas de Montalcino. O grelhado e as proteínas se equilibraram com os taninos fortes do vinho e o resto foi puro prazer. O componente psicológico não pode ser descartado, mas o Brunello foi perfeito, também, com o outro prato toscano, o pappardelle com coelho. O vinho utilizado na preparação foi o Chianti que, associado à leve doçura da carne de coelho, compôs harmonização irresistível.

Barolo
A característica mais moderna do Barolo possibilitou harmonizações muito satisfatórias com pratos de corpo médio, como as massas e com a bisteca, mas tudo conspirou favoravelmente ao Brasato. O prato leva Barolo, a origem é a mesma (Piemonte) e ambos são extremamente complexos e encorpados. Não há como ser menos do que perfeito. Difícil imaginar as reuniões da Resistência Italiana durante a II Guerra Mundial regada a outra bebida que não um Barolo.

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Dolcetto pode ser um bom acompanhante para a famosa pizza de calabresa

Amarone della Valpolicella
O Amarone é um vinho peculiar, tanto em aromas e sabores, quanto em corpo, o que torna a harmonização mais desafiadora. Os pratos um pouco mais leves são sobrepujados pela força do vinho. As proteínas do grelhado e a complexidade do Brasato alcançaram o nível do vinho e compuseram harmonizações muito boas. Mas o corpo que a marmelada de porcini adicionou à polenta, combinando o frutado do vinho utilizado na receita, com um leve adocicado e o caráter terroso do cogumelo, produziram a complexidade necessária para enfrentar o Amarone. Não é para todo dia, mas a experiência é muito gratificante.

Conclusão
A Itália é quase um mundo à parte quando o assunto é vinho e comida. De norte a sul, de leste a oeste, onde quer que seja há excelentes vinhos e pratos ainda melhores. As possibilidades de harmonização são quase infinitas. As variações de corpo dos vinhos podem ser encontradas, como demonstramos, em pequenas distâncias, em nuances climáticas ou detalhes de vinificação. Em uma visita ao Piemonte, por exemplo, pode- se provar Dolcettos, Barberas, Barbarescos e Barolos, acompanhados por Brasatos, risotos, polentas ou mesmo pizzas. Não é diferente na Toscana ou no Vêneto, na Emilia-Romana ou na Campanha, no Friuli ou na Sicília. Poderíamos passar anos propondo apenas harmonizações italianas sem nos cansar.

Confira as avaliações completas na seção Cave (a partir da página 101)

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