Conheça a história de pioneirismo da vinícola californiana, referência na região
por Arnaldo Grizzo
Diz-se que um dia, John Shafer, diretor de planejamento da Scott Foresman (editora especializada na publicação de livros didáticos), deparou-se com um artigo do Bank of America que discutia o iminente boom do vinho na Califórnia.
Não era a primeira vez que ele via aquele tipo de informação, então decidiu que precisava verificar. Era o começo dos anos 1970 e tudo lá ainda era muito incipiente, nem sequer havia ocorrido o famoso Julgamento de Paris – que, em 1976, iria alavancar de vez o prestígio dos vinhos locais.
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Ele embarcou então para a Califórnia e começou a conversar com corretores de imóvel. Disse que queria ver uvas para vinho e, assim, sugeriram que ele fosse para o Napa Valley, local do qual ele nunca tinha ouvido falar. Um corretor lhe apresentou uma propriedade com uma casa antiga, um galpão e locais de alojamento, além de vinhedos bastante velhos. Ele logo se encantou e comprou a propriedade.
O ano era 1972 quando John Shafer, aos 48 anos, um bem-sucedido executivo do setor editorial, trocou a agitada vida corporativa de Chicago por esse sonho no Napa Valley. Ele e sua família se mudaram para a região e adquiriram 84 hectares de terra, dos quais 12 eram de vinhas plantadas em 1922. Inicialmente, John vendeu as uvas existentes para a Napa Valley Co-op, hoje conhecida como Hall Winery, em St. Helena. Em 1973 e 1974, ele plantou seus primeiros Cabernet Sauvignon na propriedade.
Sua paixão pelo vinho foi intensificada em 1976, quando ele provou um Cabernet Sauvignon de 1968, feito por um dos pioneiros da região, Nathan Fay. Inspirado pela profundidade e riqueza desse vinho, John fez seu primeiro vinho caseiro no ano seguinte, utilizando antigas vinhas de Zinfandel. Este período inicial de experimentação e aprendizado foi crucial para o desenvolvimento da Shafer Vineyards.
A história da vinificação na propriedade, contudo, remonta à década de 1880. Um artigo do Napa Register de 14 de agosto de 1885 mencionava a venda de 55 hectares, dos quais 14 já estavam plantados com “as melhores uvas”. Devido à devastação da filoxera, em 1898, o vinhedo foi vendido por US$ 10 ao Security and Savings Bank de São Francisco. Vendida e revendida novamente, a propriedade chegou a Batista Scansi em 1920, que plantou vinhas aparentemente para produzir vinho para consumo próprio.
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O terreno foi comprado em 1961 por Al Phillips, que tentou em vão vender o vinhedo durante anos até que John Shafer concordou em comprar a propriedade. Nascido em 1924, John desistiu de uma carreira de sucesso como editor de livros para se tornar enólogo.
“Eu não estava me aposentando, nem tinha condições de fazê-lo. Minha motivação era estar no negócio por conta própria e estar na base do que percebi que seria um fenômeno crescente. Além disso, eu queria trabalhar ao ar livre”, disse John, um dos primeiros a se fixar no Napa naquele boom dos anos 1970.
Naquela altura, o conhecimento de Shafer sobre vinhos estendia-se até algumas garrafas de Mateus Rosé. Mas ele desenvolveu o que chama de “interesse persistente” pelo futuro do vinho na Califórnia e começou a ler sobre cultivo de uvas e vinificação. Mudando-se com a família, ele criou a propriedade comprando vinhedos na denominação Stags Leap, mas grande parte da terra teve que ser replantada porque estava completamente arruinada.
Grandes parcelas não eram cuidadas desde os dias da Lei Seca, pois o vinhedo foi abandonado. E muitas videiras eram principalmente de Carignan e Zinfandel, sendo a maioria vinhas velhas provavelmente plantadas por Batista Scansi no início da década de 1920.
Dessa forma, John Shafer logo foi dissuadido de quaisquer ideias românticas que pudesse ter sobre a produção de vinho. “Percebi que era um trabalho muito grande e que não tinha condições de arcar com os recursos. Então recuei e me tornei um produtor de uvas”, lembra.
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A grande transformação, todavia, ocorreu quando ele decidiu plantar Cabernet Sauvignon. No início da década de 1970, o Napa ainda não tinha forjado sua reputação e Shafer experimentou Zinfandel e Chardonnay antes de encontrar o Cabernet. Após extenso replantio, a Shafer Vineyards estreou com a safra de 1978 e, em 1980, a vinícola foi oficialmente concluída.
O primeiro Shafer Cabernet tornou-se uma referência. Ele venceu uma degustação do San Francisco Vintners Club após o lançamento e, mais de uma década depois, conquistou o primeiro lugar em uma degustação internacional às cegas realizada na Alemanha, onde superou vinhos como Château Margaux, Château Latour e Château Palmer.
“Não pegamos quase nada e fizemos alguma coisa”, resume Doug Shafer ao falar sobre o que ele e seu pai realizaram em Shafer Vineyards. Doug tornou-se enólogo em 1983, após se formar em enologia e viticultura pela Universidade da Califórnia em Davis.
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Um ano depois, Elias Fernandez ingressou na vinícola como enólogo assistente. Juntos, eles pensaram em cuidados minuciosos, como o uso de barris uniformemente selecionados através da tecnologia de espectroscopia de infravermelho, por exemplo. A vinícola também possui sua própria linha de engarrafamento e selecionadora ótica, garantindo controle total sobre suas operações de adega.
Cerca de 30 anos atrás, os vinhedos de Shafer pareciam “tão limpos quanto uma mesa de sinuca” (segundo aponta Doug): nem uma folha de grama, nem uma erva daninha, nem sinal de pássaros ou insetos, apenas vinhas. “A única maneira de conseguir aquela aparência super limpa era usar produtos químicos pesados. Percebemos que era a direção errada”, afirma Doug. Hoje a Shafer é 100% movida a energia solar – reutiliza e recicla sua água, faz seu próprio composto para fertilizantes e cultiva a biodiversidade.
As vinhas mais prestigiadas da Shafer vêm das encostas vulcânicas ao redor da vinícola, conhecidas por produzir cachos pequenos, que vão majoritariamente para o famoso rótulo Shafer Hillside Select, criado em 1983, quando Doug assumiu a enologia. Hoje, ele é vendido somente para associados da Shafer, que garantem uma alocação anual. Eles produzem ainda os Cabernets One Point Five e TD-9.
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O nome One Point Five foi escolhido porque John e Doug disseram que trabalharam juntos por tanto tempo que a história deles não era de segunda geração, mas de uma geração e meia. Já o TD-9 foi nomeado em homenagem ao primeiro trator de John. Além disso, a vinícola produz um Merlot e o rótulo Relentless (implacável), baseado em Syrah e Petite Sirah, elaborado por Elias Fernandez. Esse vinho foi nomeado vinho do ano pela Wine Spectator na safra de 2008.
Além da propriedade principal, a Shafer possui outros cinco vinhedos no Napa Valley, incluindo Red Shoulder Ranch em Carneros, dedicado à produção de Chardonnay. Em 2016, a vinícola doou 2 hectares de terra para o Wildlife Rescue Center of Napa County, criando o Shafer Sanctuary, uma área dedicada à reabilitação de animais selvagens feridos.
Eles também costumam, todos os anos, oferecer seus melhores lotes para o leilão de caridade do Premier Napa Valley, angariando alguns dos melhores lances do pregão e, com isso, ajudando a alavancar o evento.
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Em março de 2019, John Shafer, pioneiro na era moderna de Napa Valley, faleceu aos 94 anos de idade. Em fevereiro de 2022, a Shafer Vineyards foi vendida para a Shinsegae, uma grande empresa sul-coreana com investimentos diversificados, incluindo lojas de vinhos.
Apesar da mudança, a Shinsegae adotou uma abordagem prática para manter a continuidade e o sucesso da vinícola. Doug Shafer, filho de John e presidente até 2022, e Elias Fernandez continuam a desempenhar papéis essenciais na vinícola, assegurando que a tradição permaneça.
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