Passificado

Entenda o histórico processo de secar as uvas antes da vinificação

O processo natural de desidratação parcial das uvas permite atingir um nível mais alto de açúcar antes da vinificação

Imagem Entenda o histórico processo de secar as uvas antes da vinificação

por Lucas Bertolo

Produtores das mais variadas regiões vinícolas, no Velho e Novo Mundo, lançam mão de um processo natural de desidratação parcial das uvas, chamado de passificação (appassimento, em italiano), para atingir um nível mais alto de açúcar, assim como maior concentração de aromas, cores e sabores.

Esse é um processo célebre em regiões italianas como Valpolicella, no norte, e na ilha de Pantelleria, no sul, por exemplo, e não só apura o mosto de uva a ser vinificado, mas acrescenta uma tipicidade indefectível a seus vinhos.

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A passificação adiciona mais um estágio, de desidratação, no processo que define a vitivinicultura destas regiões: terminada a colheita, há ainda o tempo de ressequir. Diante da atual valorização da “mínima intervenção humana” no cultivo das vinhas e na produção do vinho, o processo de appassimento – cuja tradição antecede o colapso do Império Romano, como comprovam as cartas do estadista Cassiodorus sobre as qualidades dos vinhos passificados do Vêneto – não deveria ser interpretado senão como mera decisão humana pelo prosseguimento do ciclo natural da fruta.

Em uma dessas cartas, Cassiodorus defende o passito de sua época, dizendo que as uvas eram apenas estimuladas de acordo com a sua nobreza, e continua: “no palato, entumece de tal maneira que se diria ser um vinho carnudo, uma bebida para comer, e não para beber”. O texto, escrito entre os séculos V e VI d.C., enaltecia o “suave dulçor da bebida púrpura”, chamada à época de Acinaticum, do latim acinus, bago de uva.

Valpolicella

Na DOC Valpolicella Classico, as castas mais cultivadas são as nativas Corvina, Rondinella, Molinara, Corvinone e Oseleta. Há também uma quantidade considerável de Merlot por todo o território.

O solo dos principais vales da denominação é vulcânico. Protegidos pelas colinas, os vinhedos recebem ventos frios do lago de Garda na medida certa. A passificação das uvas é iniciada após a colheita, e antecede o desengace, o esmagamento e a prensagem das uvas: selecionados à mão, os cachos são levados ao fruttaio, uma sala arejada, geralmente no piso superior da cave, e são depositados tradicionalmente nos arele, caixas rasas de madeira ou de bambu, onde podem ficar secando de 90 a 120 dias.

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Outra técnica de appassimento consiste em amarrar os cachos de uva a uma corda, e pendura-los em posição vertical. Atualmente, no lugar dos arele, caixotes de plástico perfurados também têm sido utilizados.

Com as uvas desidratadas, produz-se o doce Recioto e o seco e robusto Amarone, cujo amargor característico está em seu nome (amaro, em italiano significa amargo). Nos anos 80, a vinícola Masi produziu os primeiros Ripasso: um segundo vinho, feito com a mistura de uvas frescas e dos restos da passificação dos clássicos da região.

Pantelleria

Com menos de oito mil habitantes, a ilha de Pantelleria contém duas denominações de origem controlada: Passito e Moscato. A variedade de uva Zibbibo, nome siciliano para a Moscatel de Alexandria, reina sozinha nos dois tipos de vinho.

O passito é feito com uvas passificadas, como podemos intuir pelo nome, sob o sol, em prateleiras, liteiras de junco ou mesmo no chão, geralmente pelo período de 12 a 30 dias. Expostos ao sol e aos ventos do Mediterrâneo, os bagos não só desidratam, mas são atravessados por tudo que torna Pantelleria tão peculiar.

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Cada produtor define a proporção entre uvas passificadas e frescas durante a maceração, podendo chegar a 75 quilos de uvas ressecadas para 100 litros de mosto fresco. A vinícola siciliana Donna Fugata, para fins de comparação, engarrafou na safra de 2017 o aclamado Ben Ryé Passito di Pantelleria com o açúcar residual a 196g/l e pouco mais de 14% de álcool.

Tanto na insular Pantelleria como nas colinas veronenses, o appassimento é usado para a produção de um vinho mais apurado nos aromas e mais vigoroso no sabor, mas é, sobretudo, a expressão de dois povos que preservaram uma tradição e um gosto ancestrais, que nem as condições climáticas e geológicas, as particularidades das castas nativas, os diferentes processos de vinificação e armazenamento, as disparidades culturais e materiais foram capazes de mitigar. 

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