Escola do Vinho

Champagne e os espumantes são os vinhos mais fascinantes. Saiba tudo sobre eles

por Sílvia Mascella Rosa

O verdadeiro Champagne é somente o espumante produzido na França e apenas pode ser produzido pelo método Champenoise

Há sempre um instante de silêncio completo, de respiração contida e sentidos em alerta quando se está prestes a libertar o conteúdo de uma garrafa de espumante. É um segundo de suspense, de antecipação. Um momento contido sob 6 atmosferas de pressão, uma rolha de cortiça e uma gaiola de metal. Impossível dizer que é somente um vinho.

Não há "somente" em nada relacionado aos espumantes, nem em sua história - controversa, cheia de lendas -, nem em seus estilos - do muito seco ao doce -, nem em seus métodos - tradicional ou Charmat -, nem mesmo em sua presença brilhante e borbulhante na taça. O vinho espumante é sempre sinônimo de que algo importante e diferenciado está acontecendo.

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Muitas histórias, algumas verdades

Quem antecipa com prazer a intromissão das borbulhas no olfato e no palato e o travo seco, frutado e ácido no final de boca, com certeza conhece algumas das histórias ligadas ao Champagne, o vinho francês mais famoso do mundo. Como a do monge beneditino Dom Pérignon, que reconheceu a espumatização característica do vinho e, no trabalho de uma vida estudando uma maneira de tirar as borbulhas dele, entrou para a tradição do Champagne como a pessoa que mais forneceu elementos para o que a bebida é hoje.


São diversos os personagens que marcaram a história mítica do Champagne

Outra personagem indelevelmente ligada à sedução em forma líquida é a viúva Clicquot, que lutou para permanecer com sua vinícola aberta, contrariando o sogro, e trabalhou arduamente ao lado de um chefe de cave para sistematizar a maneira de retirar os sedimentos do vinho quase pronto e assim obter uma bebida límpida. Ao lado dela, com uma atuação mais ligada ao luxo que se espera de um Champagne, está Madame Adéle Jouët, da Perrier-Jouët, que incorporou a arte da Belle Époque às suas garrafas de Champagne pintadas à mão, as primeiras Brut da França (até a metade do século XIX quase todos os Champagnes eram doces ou meio-doces).

Sejam quais forem as histórias, mesmo as tristes, como as das inúmeras guerras travadas na região de Reims - não por acaso, as batalhas terrestres eram mais fáceis de serem travadas em campos abertos como os da campanha francesa, ou Champagne, claro -, essa é uma região de tradição para a produção de uvas delicadas e concentradas o suficiente para suportarem não uma, mas duas fermentações e, ao final, serem traduzidas em um néctar de caráter raro.
A região de Champagne, na França, delimitou as regras e impôs, pela qualidade final de seus produtos, os padrões a partir dos quais todos os outros vinhos espumantes do mundo são avaliados. Da mesma forma que não se fala em celebração sem uma garrafa de espumante, não se fala em espumantes sem falar de Champagne.

No método Charmat, a segunda fermentação é feita dentro de grandes tanques de inox — chamados de autoclaves, desenvolvidos para isso, pois suportam a pressão da fermentação


Um vinho construído

Dentro de uma garrafa de Champagne (e de muitos bons espumantes também), encontra-se mais do que o mosto de uvas fermentadas, comuns a qualquer outro vinho chamado tranquilo (que não tem borbulhas). O nascimento do Champagne deve-se a causas climáticas da região norte da França. Por lá, as temperaturas tendem a baixar com rapidez no outono interrompendo a fermentação dos açúcares das uvas Chardonnay e Pinot. Os vinhos eram engarrafados e deixados assim até a próxima estação, quando as temperaturas voltavam a subir e as leveduras e os açúcares que ainda estavam lá entravam novamente em atividade, fazendo com que muitas garrafas explodissem nas adegas.

O estudo desses processos nos dois últimos séculos evoluiu, não para parar essa segunda fermentação como desejava Dom Pérignon, mas para conservá- -la e incentivá-la, uma vez que o vinho proveniente desse processo era diferenciado e elegante. O que começou como um acaso da natureza, bem aproveitado pelo homem, transformou-se em uma série de processos complexos pouco modificados nas últimas décadas, fazendo com que os espumantes sejam os vinhos de elaboração mais distinta.

A maneira tradicional de se preparar um espumante (também chamada de Champenoise) é aquela em que os vinhos base (no caso de Champagne entram as uvas Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier) são combinados depois de pelo menos um ano de sua primeira fermentação, recebem a adição de leveduras e açúcar e vão para as garrafas com tampas de metal. As garrafas vão para caves de temperatura baixa constante e, em aproximadamente uma semana, a nova fermentação é iniciada. Durante um ano, pelo menos, essas garrafas serão mantidas em prateleiras conhecidas como pupitres.
Nos primeiros oito meses desse processo, formam- se as borbulhas e uma parte dos aromas, depois disso as garrafas passam a ser giradas todos os dias (processo de remuage) e vão sendo cada vez mais inclinadas, para que as leveduras e os sedimentos se concentrem no gargalo.

No novo recipiente, leveduras selecionadas são adicionadas com açúcares para que ocorra uma nova fermentação, liberando o gás carbônico

O método Charmat acelera o processo da segunda fermentação

Quando o chefe de cave decide que o vinho chegou ao ponto do estilo daquela vinícola (esse processo de repouso sobre as leveduras pode levar até três anos), as garrafas são resfriadas a zero grau, estabilizadas e depois colocadas com o gargalo em uma solução de salmoura gelada, que solidifica as leveduras no bocal. Quando a tampa de metal é retirada (processo de dégorgement), a pressão interna do líquido expulsa o tampão de leveduras.

Nesse momento, é adicionada uma pequena quantidade de licor de expedição, uma mistura de açúcar e álcool vínico que dará ao espumante seu estilo em relação ao conteúdo final de açúcar (ver box na página ao lado). Na sequência, a rolha e a gaiola são colocadas e o espumante estará pronto, só necessitando de descanso e resfriamento para poder ser degustado.

Apressando o processo

Os espumantes são um estilo de vinho que agradam uma enormidade de consumidores. Por isso, as vinícolas precisaram desenvolver um método de elaboração que fosse capaz de apressar o longo processo tradicional. Foi assim que surgiu o método Charmat (inventado pelo enólogo italiano Federico Martinotti e patenteado em 1907 pelo francês Eugène Charmat), em que a segunda fermentação ocorre em um tanque de aço inoxidável, capaz de suportar a pressão resultante da liberação de gás carbônico.
Da mesma forma que no método tradicional, os vinhos base são combinados e recebem a adição de açúcar e leveduras. Mas, ao invés de irem para as garrafas, essa mistura vai para um tanque onde a segunda fermentação ocorre sob temperaturas um pouco superiores às do método tradicional, apressando o processo.

Terminada essa segunda fermentação, o líquido é resfriado a uma temperatura negativa, acrescenta-se açúcar da mesma forma que no licor de expedição do Champenoise e o produto fica repousando, enquanto as leveduras sedimentam- -se no fundo do tanque. Pouco mais de uma semana depois, o espumante é filtrado e transferido para um outro tanque com pressão negativa e engarrafado a frio. Alguns espumantes feitos no método Charmat aumentam a parte do processo de fermentação, para que o vinho fique mais tempo em contato com as leveduras e assim ganhe mais sutilezas. Esse método é conhecido como "Charmat longo" e é muito utilizado no Brasil e na Itália, por exemplo.
Outro espumante que tem um método de produção mais rápido (em algumas regiões em menos de um mês o vinho está pronto) é o preparado com as uvas Moscatel. Conhecido como "método Asti", por ter sido desenvolvido por italianos na cidade de mesmo nome, ele produz o espumante com apenas uma fermentação, interrompendo o processo quando o açúcar das uvas ainda não foi inteiramente transformado em álcool. Isso garante um produto mais adocicado e de menor teor alcoólico, que agrada paladares mais seduzidos pelos açúcares.

Borbulhas pelo mundo

O professor de sociologia e filosofia do Senac, Hélio Hintze, explica que celebrar é inerente ao ser humano. Celebramos o final de um ciclo e a passagem para uma nova situação em rituais que podem parecer distintos em diferentes localidades, mas que guardam um mesmo sentido. "O homem vivia em grande conexão e dependência da natureza e assim celebrava o final ou a chegada das chuvas, a mudança das estações e os momentos em que a vida tomava novos rumos. A bebida alcoólica estava sempre inserida nesse contexto, como forma de ligação com os deuses e de liberação catártica. Esse é um sentido que reproduzimos até hoje, quando abrimos uma garrafa de Champagne na passagem do Ano Novo", conta Hélio.
Talvez seja por isso que os espumantes são feitos em diversos países europeus e em todo o Novo Mundo do Vinho (ver box na próxima página). Alguns deles chegam a ter o status dos bons Champagnes, como é o caso de algumas Cavas espanholas, dos Franciacorta italianos e de alguns espumantes Brut brasileiros.

Todos eles, no entanto, seguem de alguma maneira as regras estabelecidas nos métodos tradicional e Charmat, com cepas mais bem adaptadas a seus terroirs e fazendo uso de algumas tecnologias mais modernas, como é o caso do giropalete, um equipamento que faz o remuage de uma centena de garrafas ao mesmo tempo, com precisão milimétrica, facilitando o trabalho no método tradicional.
Para os consumidores, no entanto, a qualidade, o preço e o sabor finais importam mais do que qualquer dado técnico, assim, os dois métodos (tradicional e Charmat) apresentam vantagens e desvantagens.

O investimento em equipamento para fazer espumantes em que a segunda fermentação ocorre em tanques de aço inoxidável é muito grande, pois devem ser comprados, no mínimo, dois tanques paralelos e a utilização de eletricidade é ininterrupta. Ademais, se não houver clientes terceirizados, o equipamento ficará ocioso em poucos meses depois da produção. O reverso dessa moeda é que o espumante ficará pronto mais rápido, chegando ao mercado mais cedo, onde poderá ser vendido e o investimento começará a retornar.
Já no método tradicional, o investimento em equipamentos é pequeno, mas uma boa cave de temperatura controlada é essencial e o treinamento de pessoal especializado é fundamental. Esse é um vinho que se apóia no talento de quem o faz. Por outro lado, seu longo processo inviabiliza a comercialização rápida, assim, o investimento, embora menor, demora a retornar.

Métodos Champenoise e Charmat influenciam no aroma e sabor

Qualquer enólogo que se preze vai dizer que o bom vinho se faz no vinhedo. É possível fazer mau vinho de boa uva, mas o contrário é impossível. E isso também é verdade para os espumantes. No caso de Champagne, o solo calcário gipsífero das encostas das montanhas de Reims privilegia as uvas do corte clássico que são colhidas ainda com alta acidez e pouco açúcar, mas já tendo extraído do solo os componentes que permitem que o fermentado delas ganhe caráter com as duas fermentações. Provavelmente, é nesse ponto que reside o verdadeiro segredo dos Champagnes.

O enólogo Adolfo Lona, presidente da Comissão de Produtores de Espumantes de Garibaldi, cidade que foi a primeira brasileira a produzir espumantes de alta qualidade, explica que o método tradicional de produção dá ao espumante uma finesse originada pelo tempo de contato das leveduras com o vinho durante a segunda fermentação. Ele explica que, quando o vinho já está com as leveduras há mais de oito meses, elas começam um processo chamado de autólise (elas se auto destroem), liberando os aminoácidos, que possuem os aromas tão comumente associados aos grandes espumantes: pão torrado, mel, manteiga. Esses aromas combinados com um bom vinho base garantem o principal atrativo da bebida.

As leveduras que agem sobre o vinho base morrem, e para que elas não deixem o líquido turvo, as garrafas são colocadas nos pupitres 

No método Charmat, por outro lado, explica Lona, as leveduras têm um contato mais breve com o vinho e encarregam-se de ressaltar as características do vinho base, como frescor e acidez, sem, no entanto, deixar marcas de sua passagem, fazendo desse um espumante mais ligeiro, fácil de beber e muitas vezes mais gastronômico. O meio do caminho, nesse caso, seria o Charmat longo, que permite que as leveduras atuem por mais tempo no vinho, mesmo que ele esteja em um tanque de aço inox, trazendo logo de início um perlage mais delicado e semelhante ao obtido no método tradicional.

"Sempre digo que comparar os dois métodos é como comparar vinhos tintos jovens e envelhecidos. Num predomina a fruta, o frescor, a vinosidade, noutro a complexidade dada pela fruta seca, a baunilha da madeira, a textura dos taninos domados", revela Lona. "Nos espumantes, é a mesma coisa. Os do método Charmat são mais leves, frescos, frutados - nem por isso com qualidade inferior -, e os do método tradicional são mais encorpados, com mais cor, elementos organolépticos mais complexos e por isso mesmo são vinhos de consumo mais dirigido", afirma.
Para os apreciadores de espumantes, sejam quais forem os estilos e métodos, fica a certeza de que cada garrafa guarda um pequeno segredo, um mistério de uvas frescas e ácidas que celebram a capacidade do homem de compreender e utilizar as nuances da natureza em favor do prazer, da celebração, dos ciclos que se fecham e cumprem-se ao som final - inequívoco - de uma rolha liberta de Champagne.


CHAMPAGNE

Frequentemente, o nome Champagne é utilizado de forma equivocada para se referir a qualquer tipo de espumante. Na verdade, Champagne é só o espumante produzido na França, na região demarcada que leva o mesmo nome. Além disso, Champagne somente pode ser produzido pelo método Champenoise e a partir das uvas tintas Pinot Noir, Pinot Meunier e da branca Chardonnay.

CRÉMANT

Espumantes produzidos na França, em regiões como Borgonha, Limoux e Loire, entre outras, respeitando as especificações de cada uma das AOCs. É feito pelo método tradicional.

PROSECCO

Só recebem esse nome os espumantes produzidos nas cidades de Connegliano ou Valdobbiadene (no Vêneto, Itália), elaborados no método Charmat e com as uvas da casta Prosecco.

ASTI

Espumante meio-doce e com baixa graduação alcoólica (6 a 7%) elaborado com uvas Moscato na cidade de Asti, na Itália. É produzido através de uma variação do método Charmat, na qual a base é um mosto - e não um vinho -, que passa por primeira e única fermentação em grandes tanques.

FRANCIACORTA

Produzido pelo método tradicional a partir de uvas cultivadas dentro nas colinas de Brescia, na Lombardia, a partir das uvas Chardonnay e Pinot Blanc, com 15% de Pinot Noir.

CAVA

Nome dado aos espumantes espanhóis, em sua maioria produzidos pelo método Champenoise na região da Catalunha a partir das uvas Macabeo, Xarel-lo, Parellada e Chardonnay.

SEKT

Nome dado aos espumantes alemães majoritariamente feitos pelo método Charmat. Podem ser produzidos a partir de uma variedade de uvas e até mesmo utilizando-se vinhos base vindos de fora da Alemanha, desde que o processo de segunda fermentação ocorra em território alemão.

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