Mundo Vino

Château Le Puy é o fenômeno de Bordeaux que ganhou o mundo através de quadrinhos japoneses

por Guilherme Velloso

O cultivo da vinha e a produção de rótulos na Le Puy ostentam todas as certificações oficiais necessárias que um produtor precisa para ser considerado biodinâmico

Na manhã de 11 de março de 2009, o escritório do Château Le Puy, pequena vinícola familiar na região de Bordeaux, foi inundado por um inusitado volume de pedidos, vindos principalmente do Japão. Além do número surpreendente, todos os pedidos eram para um vinho específico: o Château Le Puy, principal vinho da vinícola, da safra 2003. Esse vinho é um corte de Merlot, Cabernet Sauvignon e Carménère - com larga predominância da primeira, que, em geral, contribui com 85% do total.

Embora sua qualidade fosse reconhecida por críticos e consumidores bem informados, o Château Le Puy é um "Bordeaux Côtes de Francs", portanto não integra a elite das denominações da chamada "Margem Direita" do Gironde, como Saint-Émilion e Pomerol, com as quais compartilha praticamente o mesmo tipo de terroir. E, na época, nem de longe desfrutava da mesma fama, prestígio, muito menos preço, de muitos vinhos dessas duas regiões, nas quais figuram, entre os mais conhecidos, o Cheval Blanc (Saint-Émilion) e o lendário Petrus (Pomerol). O mistério era ainda maior porque 2003 não foi uma safra particularmente bem sucedida. Naquele ano, os vinhedos de toda a Europa foram afetados por uma onda de calor sem precedentes, o que significou, em muitos casos, vinhos sem a acidez ideal e com sinais de maturação excessiva das uvas, ou seja, menos elegantes.

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Le Puy virou uma febre na Ásia depois de ser a estrela do mangá "As gotas de Deus"

Intrigado, Jean-Pierre Amoreau, proprietário do Le Puy, entrou em contato com o distribuidor de seus vinhos no Japão e logo ficou sabendo a razão do que estava acontecendo. Na noite da véspera, um dos canais de televisão japoneses transmitira um programa de uma série baseada num "mangá" (espécie de história em quadrinhos) que se tornara muito popular no Japão. O mangá conta a história de dois irmãos, filhos de um famoso crítico de vinhos japonês. Ao morrer, o pai determina em testamento que a extraordinária adega que acumulara em vida seria herdada pelo filho que conseguisse identificar, a partir de dicas propostas sob a forma de enigmas, 12 vinhos que ele compara aos 12 apóstolos de Cristo. Para completar a tarefa, teriam ainda que identificar um 13º vinho, o melhor de todos os provados por ele, e por isso mesmo definido como "As gotas de Deus", título do mangá e da série televisiva que originou.

divulgação

Os lavradores precisam estar de bom humor na hora da colheita, pois "nós emitimos energia, e ela passa para os grãos", garante Amoreau

Mais surpreendente, porém, foi a reação dos proprietários do Le Puy. Diante de um volume de pedidos que absorveria todos os estoques disponíveis na vinícola e em seus distribuidores em outros países (mais de 80% da produção é exportada), e que permitiria elevar substancialmente o preço de 15,50 euros, pelo qual o vinho vinha sendo comercializado, Jean-Pierre e o filho - e enólogo -, Pascal, decidiram simplesmente suspender a venda daquela safra, orientação transmitida também a seus principais distribuidores. Decidiram também que o estoque remanescente na vinícola, de aproximadamente 1.200 garrafas, seria vendido em pequenos lotes a serem liberados a cada 10 anos. Com isso, pretendiam conter a especulação e, como declarou Jean-Pierre na ocasião, "manter o vinho acessível a clientes que nos ajudaram a ganhar a vida nos últimos 50 anos". Só abriram exceção para eventuais vendas individuais, que não excedessem uma ou duas garrafas, na própria vinícola. Foi o que permitiu que os dois jovens japoneses que tinham vindo de Paris não voltassem de mãos vazias, pois cada um pode comprar a sua. Fora isso, a única providência foi aumentar o preço de catálogo da safra 2003 para 18 euros, um modesto incremento de pouco mais de 10%, ainda mais considerando que, logo depois do programa ir ao ar, o vinho chegou a ser vendido por até 1.000 euros a garrafa.O vinho revelado ao final do programa transmitido na véspera (disponível no Youtube), que ressaltou sua excepcional qualidade mesmo num ano muito difícil, fora justamente o Le Puy 2003.

A repercussão do programa foi imediata. Além das sucessivas ordens de compra que chegavam, naquele mesmo dia dois jovens japoneses se deslocaram de Paris até a pequena Saint Cibard, distante poucos quilômetros de Saint-Émilion, onde fica o Château, para comprar algumas garrafas do vinho.


Clara Asarian/Estúdio Gastronômico/divulgação

Mesmo com o sucesso repentino, Le Puy Jean-Pierre Amoreau decidiu não subir o preço de seu vinho

Uma filosofia

A reação da família Amoreau revela um pouco da filosofia que orienta o trabalho do Le Puy. A produção de vinhos na propriedade teve início em 1610 (o Château em si foi em boa parte reconstruído no século XIX pelo bisavô de Jean-Pierre, Barthélemy). E sempre esteve em mãos da família, hoje em sua 15ª geração. O comando sempre passa de pai para filho homem. Em que pese essa diretriz arcaica, dois dos vinhos produzidos atualmente homenageiam mulheres da família. O primeiro é o único vinho branco da casa, o Marie-Cécile (100% Sémillon); o outro é o raro - e caro - Marie-Elisa, um vinho doce produzido em minúsculas quantidades nos anos em que parte das uvas Sémillon é atacada pela chamada "podridão nobre". Não existe participação de enólogos externos na elaboração dos vinhos, como hoje é quase regra em muitas vinícolas bordalesas. "É o nosso savoir-faire acumulado geração após geração", observa Jean-Pierre, e resume: "Cada vinho que produzimos é a expressão de nossa família no copo".

Fiel aos preceitos biodinâmicos, proprietário do Château diz que seu vinho é a expressão de sua família, atualmente na 15ª geração

Desse "saber fazer" acumulado ao longo de mais de 400 anos de experiência transmitida diretamente de pai para filho resultou o uso de certas práticas de vinificação tradicionais (como a do "chapéu" submerso, para obter maior extração do mosto) e, principalmente, nos últimos 20 anos, a opção pela viticultura orgânica e biodinâmica.

O cultivo da vinha e a produção de vinho no Le Puy são quase um livro-texto de tudo o que é recomendado por esse misto de filosofia e prática agrícola. Prova disso é que o Le Puy ostenta todas as certificações oficiais necessárias para um produtor ser considerado biodinâmico. No campo, isso obviamente significa que não é usado qualquer tipo de produto químico (herbicidas, pesticidas etc.) para combater doenças e pragas, mas apenas preparados naturais aprovados pelas regras da biodinâmica. Só é permitido pedir ajuda à própria natureza, como fez o Le Puy cultivando uma variedade específica de cogumelo que ajuda a combater certos parasitas. Significa também selecionar, manualmente, apenas cachos de uva maduros e integralmente sãos no momento da colheita ainda no parreiral. Segundo Jean-Pierre Amoreau, isso é feito para que os grãos sobremaduros não toquem os com maturação perfeita e não transmitam sua "energia" para eles. "Se você fizer isso numa mesa de triagem, é tarde demais", garante. Fora isso, ele diz que os lavradores precisam estar de bom humor na hora da colheita, pois "nós emitimos energia, e ela passa para os grãos".

"A levedura é a expressão do terroir, por isso, precisa ser do próprio local", afirma Jean-Pierre Amoreau

Filho "bastardo"
Na adega, o cuidado em interferir o mínimo no processo de produção do vinho e não alterá-lo de forma artificial é ainda maior. Um bom exemplo é a questão das leveduras. Como qualquer vinícola que segue os cânones da biodinâmica, o Le Puy não usa leveduras artificiais, apenas as naturais. "A levedura é a expressão do terroir, por isso, precisa ser do próprio local", explica Jean-Pierre, que faz uma comparação bem humorada ao falar sobre o uso de leveduras selecionadas: "Um homem e uma mulher querem ter um filho e, para isso, usam o esperma do vizinho. Eles vão ter um filho. Ele pode até ser um bom garoto. Mas não será deles. Com o vinho, é o mesmo. Não se pode falar de terroir dessa maneira".

Com se sabe, a maioria das leveduras morre ao final do próprio processo de fermentação. Uma pequena porcentagem sobrevive, mas normalmente, morrem após a adição de SO2 (dióxido de enxofre ou anidrido sulfuroso) para proteger o vinho. Embora a adição de SO2, dentro de certos limites, seja autorizada pela biodinâmica, essa prática não é adotada em dois vinhos do Le Puy: o Barthélemy, o tinto top da vinícola, e o branco Marie-Cécile. São vinhos de produção pequena. A do Barthélemy, por exemplo, é de aproximadamente 10% da do Château Le Puy (também conhecido por "Emilien"), que oscila entre 140 e 180 mil garrafas, dependendo da safra. A do Marie-Cécile normalmente não chega a três mil garrafas por ano. A explicação de Jean-Pierre é que essas leveduras sobreviventes, que ele chama de "alcoólicas", começam a se multiplicar novamente e a absorver oxigênio, criando uma proteção natural para o vinho, garantindo assim sua conservação e longevidade. O Barthélemy 2000, provado pela equipe de ADEGA em companhia do próprio Jean-Pierre, comprova sua afirmação. Embora já delicioso e ótimo no copo, é um vinho de cor rubi claro, ainda jovem e com muitos anos de vida pela frente (veja quadro com comentários sobre os vinhos degustados na ocasião ao fim do texto).

Além dos citados, o Le Puy produz mais dois vinhos. Um é o tinto Blaise-Albert, uma espécie de "corte dos cortes", já que é produzido, somente em anos especiais e em quantidades minúsculas (apenas 400 garrafas numeradas), com as melhores parcelas dos melhores millésimes. A exclusividade fica evidente no fato de ele ser vendido unicamente em garrafas artesanais sopradas à boca de 1 litro, por ser conservado em barricas por 11 anos e ter-se que entrar numa lista para poder adquirir um. O outro vinho, Rose-Marie, como o nome sugere, é um rosé, que pode ser feito com qualquer das três uvas tintas cultivadas na propriedade.

Vinhos aromatizados?

Outro exemplo do cuidado em preservar ao máximo o trabalho da natureza é o uso do carvalho. No Le Puy, os vinhos amadurecem 24 meses tanto em foudres com capacidade para 5 mil litros como nas clássicas barricas bordalesas de 225 litros (mais nas primeiras do que nas últimas). Em ambos os casos, nunca se emprega carvalho novo, apenas usado (de 3 a 15 anos), para não aportar aromas da madeira ao vinho. "O gosto da madeira não é gosto do vinho", defende Jean-Pierre, que vai além: "Os vinhos que vão em barricas novas são 'aromatizados'".

Atividades corriqueiras na produção de vinhos como a batonnage (como o próprio termo francês descreve, trata-se de "misturar" de tempos em tempos o mosto fermentado, com o auxílio de algum tipo de bastão) são feitas de acordo com um preciso calendário lunar. Antes do engarrafamento, os vinhos não passam por nenhum processo de filtragem ou "colagem", práticas que objetivam eliminar eventuais resíduos da fermentação e deixá-lo mais "limpo". O engarrafamento também segue o ciclo lunar e só ocorre a meio caminho do quarto minguante. "O mundo é criado por um mix de energias cósmicas. Dizemos que é a lua porque a vemos. Mas essa energia vem de todos os planetas e está sempre mudando", aponta o vinhateiro.

Clara Asarian/Estúdio Gastronômico

Château Le Puy não usa madeira nova, pois "o gosto da madeira não é o gosto do vinho", segundo seu proprietário

Sem frescuras

Todos esses cuidados mostram que a frase impressa em cada rótulo do Le Puy ("Expression Originale du Terroir", em português "Expressão Original do Terroir") é muito mais do que um desses apelos de marketing tão comuns nos produtos (vinho inclusive) vendidos atualmente. É a pura expressão da verdade. O próprio Jean-Pierre faz questão de desmistificar o excesso de sofisticação com que o vinho é, muitas vezes, tratado atualmente. Segundo ele, a primeira função do vinho é "aplacar a sede". A segunda é "ser agradável ao paladar". Só depois entraria o aspecto intelectual, a sofisticação. E mais uma vez ele faz uma comparação brincalhona: "Quando se está no meio do ato sexual com sua parceira, está chegando ao clímax, você não para e fica teorizando o porquê daquilo estar bom, ou se a posição está adequada... É fato, primeiro degustamos, depois falamos". Aí, segundo ele, é preciso beber verdadeiramente o vinho para compreender suas qualidades e condena o ato de bochechar e cuspir, que muitos adotam nas degustações. "O ato de bochechar e cuspir está associado ao que faz o vinhateiro quando está provando suas barricas. Mas ele faz isso porque prova muitas e, além disso, com isso, só está procurando defeitos. Então, quando se cospe o vinho, você só identifica os defeitos; para identificar as qualidades, é preciso bebê-lo". E conclui: "Se você cospe, não vai saber se o vinho é bom ou ruim". Pior ainda. Pelo menos no caso do Château Le Puy o ato equivaleria a cometer um sacrilégio. Afinal, seria o mesmo que cuspir "gotas de Deus".

AOC PARTICULAR

Há alguns anos, Jean-Pierre Amoreau, proprietário do Château, encomendou um estudo geológico que identificou um pequeno lote de 5,6 hectares, dentro dos cerca de 50 que a propriedade possui, com uma composição distinta de calcário, e é neste lote que poderá ser aplicada a singular AOC Le Puy. "Fazemos vinhos muito diferentes de nossos vizinhos na Côte de Francs", defende Amoreau, que entrou com o pedido no INAO em agosto de 2011 e espera ter resposta afirmativa até 2014. "Será a primeira denominação de um único Château em Bordeaux", conta o proprietário.

OS MISTÉRIOS DA "CRISTALIZAÇÃO SENSÍVEL"

Técnica curiosa francesa permite "fotografar" a aura do vinho

Também revela que a colheita foi feita "no ponto da maturação completa das uvas" e que o vinho foi produzido "sem qualquer tipo de contaminação química", em ambiente "não agressivo" à parcela do vinhedo que o gerou. Por último, dá uma preciosa dica aos apreciadores desse vinho em particular: a de que ele "precisa tempo" para se abrir totalmente, sugerindo "no mínimo 24 horas para se apreciar todo o seu potencial". Os críticos que se cuidem!Além de todo o arsenal disponível na biodinâmica, o Château Le Puy também recorre a ferramentas pouco comuns para avaliar suas práticas e seus vinhos. A mais curiosa talvez seja a "cristalização sensível" ou "morfocristalização". Como a francesa Margarethe Chapelle explica em seu site (www.oenocristal.com), a cristalização sensível é uma técnica de investigação adaptada por ela de pesquisas científicas desenvolvidas na Alemanha. Chapelle garante que, após 21 anos de experiência, a técnica possibilita traçar "um perfil preciso do vinho, da vinha e do solo". De forma simplificada, pode-se dizer que a cristalização sensível seria uma espécie de "fotografia" da aura (alma?) do vinho, ou seja, de suas qualidades e eventuais defeitos, identificados tanto no vinho em si como nas práticas agrícolas que lhe deram origem. No site do Le Puy (www.chateau-le-puy.com), é possível encontrar um exemplo concreto: a fotografia da cristalização sensível feita no Barthélemy 2009. A análise que a acompanha identifica um vinho com "densidade, força e muita energia bem distribuída".

DEGUSTAÇÃO VERTICAL CHÂTEAU LE PUY

ADEGA teve o privilégio de participar de uma degustação exclusiva de oito safras de Château Le Puy, conduzida por Jean-Pierre Amoreau, proprietário da vinícola, que está nas mãos de sua família desde 1610.

O Château Le Puy é elaborado a partir de Merlot (sempre com mais de 80% da mescla) e o resto de Cabernet Sauvignon e Carménère, com um primeiro estágio de 12 meses em grandes barris de 5.000 litros e, em seguida, é transferido para barricas usadas de carvalho francês, onde permanece por mais 12 meses antes de ser engarrafado. Sem dúvida, o destaque da degustação foi a safra 1955, o que serviu para provar que vinhos naturais podem sim se manter em perfeito estado por décadas. De fato, todos os vinhos estavam ótimos, uns mais exuberantes que outros, mas com certeza todos excelentes vinhos, acima de tudo elegantes e, porque não, delicados. Uma delicadeza que esconde intensidade, potência e profundidade ímpares.

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