A busca do equilíbrio em grande estilo

A China não tem tradição em vinho, mas sua gastronomia revela ótimas surpresas aos adeptos de Baco

Marcelo Copello Publicado em 21/08/2006, às 13h41 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

A milenar culinária chinesa se baseia no princípio do yin e yang, forças complementares que compõem tudo o que existe. Do equilíbrio entre elas surge a dinâmica da vida. Como contraposição, o yin seria o passivo, feminino, noturno, escuro e frio, enquanto o yang seria o ativo, masculino, diurno, luminoso e quente. Os chineses buscam equilibrar as duas forças dentro do corpo humano. Para eles, as doenças resultam da desarmonia entre elas. Na gastronomia, estes ensinamentos são condensados no seguinte provérbio: "um alimento balanceado deve conter os cinco sabores: doce, salgado, ácido, amargo e picante". Com todos estes elementos em um mesmo prato, o mestre Kung- Fu-Tzu (551 a.C. - 479 a.C.), conhecido como Confúcio, deve ter passado por muitas incertezas na hora de escolher os vinhos de suas refeições.

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Para redimir o filósofo, ADEGA foi a mais nova sensação da gastronomia carioca, o Mr Lam (Rua Maria Angélica, 21, Lagoa, tel. 21 2286-6661). A casa ostenta uma fachada imponente e vista deslumbrante e pertence ao empresário Eike Baptista, que importou de Nova Iorque o chef chinês Lam.

Para esta viagem aos sabores do Oriente, ADEGA convidou: Maria Paula (atriz e apresentadora do programa Casseta e Planeta Urgente!), Cinira Fidalgo (psicóloga e irmã de Maria Paula), Vanessa Bueno (da H2M Comunicação, assessora de imprensa da casa), Alex Lerner (apresentador do programa Por Traz da Fama, do Multishow), Marcos Bittencourt (diretor de ADEGA) e o Dr. Alexandros Botsaris (médico acupunturista, com muitas idas a China em seu currículo).

A esquerda, o chef Lam prepara o menu-degustação

Impossível abordar a culinária de um país geograficamente tão extenso e de história tão rica em apenas uma matéria. Para montar o jantar foram escolhidos dois pratos representativos que guardam o conceito fundamental da mistura de sabores. Primeiro, um que tendesse para os vinhos brancos e rosados, e outro que levasse aos tintos. A estréia gastronômica foi com o "Frango Satay" (espetinhos de peito de frango grelhado servidos com um molho de alho, gengibre, coentro, shoyu, óleo, cebola, pimenta vermelha, leite de coco, amendoim e limão). Para os tintos, o prato foi o "Pato Laqueado", maior ícone da culinária chinesa. A ave é temperada com pimenta do reino, gengibre e sal e assada por cerca de duas horas, sendo pincelada, de tempos em tempos, com molho de mel e shoyu para deixar a pele dourada e crocante. A iguaria é servida em fatias finas, apreciadas sobre uma pequena panqueca junto com tirinhas de pepino.

A composição é untada pelo comensal com o molho de mel e shoyu.

Os comensais a postos para um grande e delicioso jantar

Os vinhos selecionados tentavam aliar estrutura e maciez. Para o frango, as escolhas foram um Gewurztraminer suave, muito perfumado e com certo açúcar residual, e um rosado de muita personalidade, um Tavel macio e com várias frutas frescas e especiarias nos aromas. Para o pato, as sugestões foram tintos de grande estrutura, com o equilíbrio tendendo para a maciez e não para a aspereza dos taninos. Portanto, vinhos alcoólicos e de taninos doces.

Antes de partir para a prática solicitei a Guilherme Corrêa, um especialista em harmonização, que fizesse uma explanação sobre o assunto.


A TEORIA por Guilherme Corrêa*

"Frango Satay"
"Pato Laqueado"

O método de harmonização da Associazione Italiana Sommeliers apresenta uma clara distinção entre tendência ao doce e doçura, propriamente dita, em um alimento. A transgressão do limiar de uma doçura sutil para uma doçura evidente é muito importante para nos guiar na escolha do vinho, principalmente quando o assunto é cozinha chinesa. Muitos pratos tradicionais apresentam um contraponto acentuado entre elementos doces e acres, dificultando a eleição de um vinho para a compatibilização. Nos dois pratos selecionados para este evento enogourmet, o lado doce é mais importante do que o acre.

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A tendência ao doce é uma sensação gustativa agradável e delicada. Alimentos de origem vegetal e animal têm apenas uma tendência adocicada. Exemplos do primeiro grupo são cenouras, cebolas e abóboras, que contêm pequenas quantidades de açúcares simples, e produtos ricos em amido, como todos os cereais e seus derivados (arroz, massas e pães), além de legumes como feijões, ervilhas e batatas. O amido em si não é doce, mas é parcialmente demolido pela enzima salivar ptialina, liberando açúcares mais simples, como a maltose, responsável por uma sensação adocicada. Entre os alimentos de origem animal, os crustáceos e moluscos, em geral, as carnes mal passadas, os embutidos e o presunto cozido produzem o estímulo de uma ligeira doçura. Sob o ângulo da harmonização, temos que confrontar uma sensação de maciez do prato com uma sensação de dureza do vinho, a saber com o frescor de sua acidez, sua sapidez mineral ou sua efervescência.

Um prato é mais ou menos doce dependendo da quantidade de açúcares adicionados, ou dos elementos ricos em açúcar (mel, melaço, vinhos fortificados, licores, etc.). Para fins enogastronômicos, a diferença entre um prato verdadeiramente doce e um tendente ao doce é enorme. Os caminhos que devemos seguir são distintos na escolha de um vinho, pois a regra básica a ser respeitada é a de que o nível de doçura real percebido no prato deve concordar com o nível de doçura percebido no vinho. Ou seja, pratos doces devem ser escoltados por vinhos doces no mesmo grau de intensidade de percepção desta sensação de sabor.

Tanto o "Frango Satay" como o "Pato Laqueado" devem estar na transição entre a tendência ao doce e a doçura, e por isso elegemos vinhos que ao mesmo tempo apresentam um bom suporte dos elementos de dureza (acidez e sapidez) e uma boa maciez (álcool, glicerina e, em alguns casos, um pouco de açúcar residual). É justamente a mão do cozinheiro que vai determinar os vinhos vencedores, e se a balança pender mais para o lado da doçura, o Gewurztraminer alsaciano e o Amarone terão mais chances de triunfar, pois são os vinhos que tendem mais para a untuo-sa maciez.

A PRÁTICA Frango Satay
Provamos os vinhos solo, antes do prato chegar. O Gewurtraminer impressionou por seu perfume, enquanto o rosado causou certa estranheza. O "Frango Satay" veio menos temperado do que se supunha pela receita. O resultado, como quase sempre, não foi unânime, embora a maioria compartilhasse a mesma opinião: o rosado cresceu com o prato. Maria Paula, Cinira, Alex Lerner e eu elegemos o Tavel, por seu perfil aromático, contendo especiarias, e sua estrutura, com toques de taninos no fim de boca. A quase doçura do Gewurtraminer sobrou e seu perfil floral destoou. Para Marcos e Vanessa nenhum dos casamentos foi harmônico, já que o rosado soou exótico a seus paladares e o branco pareceu enjoativo. O único a fechar com o vinho alsaciano foi quem estava mais habituado ao gosto chinês, o Dr. Alexandros Botsaris, que confessou ter caprichado ao temperar seu prato com o molho cremoso, de modo que a maciez do Gewurztramier, excessiva para os outros, lhe caiu perfeita.

Pato Laqueado
Os tintos foram provados antes do prato. Puro, o Malbec foi o que mais impressionou a todos. Quando o pato chegou se pode ouvir o "uau!" da platéia diante do brilho e da imponência da ave. Após alguns minutos de silêncio, prazer e concentração as opiniões surgiram.

Os três vinhos renderam boa harmonização. Mas as escolhas foram decididas conforme a quantidade de molho colocada por cada um. Quanto mais molho, maior a tendência à maciez/doçura de taninos necessária no vinho. Para o Dr. Alexandros, Vanessa, Cinira e eu, o grande vinho italiano foi o melhor, conquistou por seu equilíbrio, perfil aromático mais evoluído (combinando melhor com as especiarias do pato) e maciez, sem o toque frutado dos demais. Alex e Marcos optaram pelo Malbec, com bastante molho. Maria Paula ficou com o Shiraz, que também mostrou fim de boca macio, com muitos tostados da madeira.

A primeira constatação do banquete foi o lado bom globalização. Vinhos e pratos de locais e culturas distantes podem render ótimos casamentos. Além disso, quem inicialmente decidiu qual seria a melhor combinação foi a mão do cozinheiro ao dosar o mel, especiarias etc. Já na mesa, o gosto ficou por conta dos comensais, regulado pela quantidade de molho. O Oriente tem uma rica culinária, porém sem tradição em vinho e harmonizações clássicas. Um universo a ser explorado e prazerosamente experimentado pelos adeptos de Baco.

Os vinhos que harmonizaram com os pratos do chef Lam Tin-tin!

OS VINHOS DA NOITE
Gewurztraminer 2004,
Domaine Hugel, Alsacia-França (World Wine, R$ 87). Este branco suave (com algum açúcar residual) da uva Gewurztraminer é um clássico. Encanta ou espanta, já que seu perfume intenso de rosas e lichias é bem marcante. O paladar é macio, com 13% de álcool, untuoso, quase oleoso, com final adocicado.

Tavel l'Espiègle 2004, Paul Jaboulet Aîné, Côtes-du-Rhône-França (Mistral, US$ 31,50). Vinho rosado de personalidade, elaborado com 40% Syrah, 40% Grenache e 20% Cinsault. Cor de casca de cebola, aromas com boa complexidade, mesclando frutas frescas, como framboesa e morango, com especiarias exóticas, florais, amêndoas. Paladar de bom corpo, macio, 14% de álcool, boa acidez e longo. Belo vinho, versátil à mesa.

Shiraz 2003, Elderton, Barossa Valley- Austrália (Expand, R$ 128). 100% Shiraz, amadurecido 14 meses em barris americanos e franceses. Rubi violáceo muito escuro, aromas nos quais a madeira vem na frente, com muitos tostados e baunilha seguidos de frutas negras muito maduras (ameixas, cassis, amoras), especiarias, defumados, café e chocolate. Paladar estruturado, 14% de álcool, com taninos presentes, porém a sensação de maciez domina.

Malbec Single Vineyard Viña Pedro Gonzalez 2003, Bodegas Trapiche, Mendoza-Argentina (Impexco, R$ 135). Cor púrpura impenetrável. Ótimo ataque aromático, com o característico aroma de violetas da uva Malbec, seguido de frutas ultra maduras (ameixas, amoras), toques de ervas aromáticas como menta e estragão. Paladar muito encorpado, 14,5% de álcool, apesar dos taninos doces ainda presentes, a maciez domina.

Amarone della Valpolicella Classico I Castei 2000, Michele Castellani (Decanter, US$ 53,20). Vermelho granada com reflexos alaranjados. Bom ataque e complexidade no nariz, mostrando evolução, couro, muitas especiarias, ameixa-passa, alcaçuz e baunilha. Paladar encorpado, equilibrado e envolvente, enchendo a boca, alcoólico (15%) e macio, boa persistência.