A incrível história de um napolitano na Toscana

Simpático - até um pouco bonachão - e contador de histórias como todo bom italiano, Giampaolo Motta vive o mundo do vinho como em um filme de Fellini

Christian Burgos Publicado em 07/12/2009, às 09h18 - Atualizado em 21/05/2019, às 15h05

Giampaolo Motta deixou o trabalho no curtume da família para realizar seu sonho no mundo do vinho

"Partono 'e bastimente pe' terre assaje luntane... Cántano a buordo: só' Napulitane! Cantano pe' tramente 'o golfo giá scumpare, e 'a luna, 'a miez'ô mare, nu poco 'e Napule lle fa vedé...

Santa Lucia! Luntano 'a te, quanta malincunia! Se gira 'o munno sano, se va a cercá furtuna... ma, quanno sponta 'a luna, luntano 'a Napule nun se pò stá!"

(trecho de Santa Lucia, música tradicional napolitana)

Giampaolo tem dois filhos, um menino com seis anos e uma menina com três. Começou o papel de pai, aos 40, após "aproveitar a vida, como especialista em saltos de relacionamento". Hoje, aos 46, é apaixonado pela família, vinhos e carros. "Meu coração é vermelho por causa do vinho e da Ferrari". Sua vinícola não é uma vinícola familiar, é a sua vinícola. Na verdade, mais do banco do que qualquer um.

Giampaolo Motta seguramente não é um vinicultor típico, muito embora descenda de uma família tradicional na Itália. Mas foi justamente deixando o negócio da família que iniciou do zero seu sonho de produzir vinhos. Conversando com este simpático e falante napolitano, foi impossível não ser envolvido por sua aura. Ele poderia escrever um livro com fábulas da vida baseado em fatos reais de sua vida de produtor, mas que talvez não vendesse por ser fantasioso demais.

Nosso personagem - e vocês nos darão razão mais à frente por chamá-lo assim - nasceu em Nápoles, no sul da Itália, membro de uma família tradicional da indústria do couro. Dentro da tradição familiar, todo jovem homem trabalhava braçalmente no curtume por um ano, "para ver se resistia", e depois era enviado para estudar. Sobrevivente, Giampaolo parte de Nápoles enviado para estudar química na França, e isso se demonstrou "o grande erro da família". Era obrigação dos jovens estudantes, durante as férias, voltar para trabalhar no curtume, mas, na França, o "ragazzo" se apaixona pelo mundo do vinho e, após o primeiro ano trabalhando ainda com couro, passa todas as férias em Bordeaux, degustando, colhendo, podando e vinificando.

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Sua família o enviou para estudar química na França, mas lá ele se apaixonou pelos vinhos de Bordeaux e desistiu de trabalhar com couro na tradiconal empresa familiar

Em 1986, formado, volta a Nápoles, que por sorte não estava preparada para este maníaco por vinhos. Os vinhos que se consumia não eram especiais e havia apenas duas lojas com boa seleção de Bordeaux na cidade. Outra sorte, pois como o consumo se via restrito a vinhos básicos, os grandes Bordeaux das lojas eram liquidados a preços muito baixos, possibilitando a Giampaolo formar uma bela adega que formataria seu paladar - tendo os vinhos de Bordeaux entre 1980 e 1990 como suas referências e a orientação de sua futura vinícola para o padrão bordalês. Sua família não compreendia aquele jovem maluco, que gastava tanto dinheiro em vinhos, mas não os bebia. Havia algo errado...

Nesse ponto, já era claro que Giampaolo não encontrava a felicidade na empresa familiar. Finalmente, em 1989, aos 25 anos, e sentindo que "o último trem para mudar de vida estava passando", o rapaz decide virar a mesa, muda-se para Toscana com uma mão na frente e outra atrás a fim de trabalhar como empregado em uma vinícola. A partir desse momento, foi rebatizado pelos familiares maternos como "aquele que faz vinho..."

Daquele que "faz vinho" para "o napolitano"
Certamente abandonar uma existência segura, embora não riquíssima ou poderosa - pois sendo a sua mãe, uma mulher, não participaria do controle efetivo da empresa - era um salto no escuro para realizar um sonho.

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Mesmo sem dinheiro, o napolitano foi ao banco para negociar a compra de uma propriedade. Chegando lá, foi recebido por um senhor, velho conhecido de sua família, que convenceu o presidente do banco a selar o negócio, mesmo sem muitas garantias

Seu lema era: "Conseguirei fazer vinho, ninguém em minha família faz, mas posso ser o primeiro de uma longa geração de produtores."
Em 1989, só havia duas regiões na Itália fazendo grandes vinhos tintos, Piemonte e Toscana, e "até hoje é assim", brinca Giampaolo, que visitou ambas as regiões e decidiu-se pela Toscana. As razões foram o clima e o suporte de um casal de tios queridos que são donos de um dos mais belos hotéis da Itália, o Excelsior Vittoria, e que tinham muitos amigos em Chianti.

Com os tios, Giampaolo faz uma grande lista de vinícolas para visitar e, na região, ele encontra muitas pessoas em vinícolas top que não nasceram entre vinhedos, vinham de outros negócios e decidiram mudar de vinha. Os campos de Chianti o conquistaram e ele pensou: "Se eles podem, por que eu não?".
Após visitar a região por um mês, ele volta a Nápoles e reflete: "É agora ou nunca".

Ligou para o proprietário de uma pequena vinícola de dois hectares que havia visitado em Gaiole e pegou um emprego em que ganharia apenas o salário e uma cama para dormir. "Minha família sempre me ensinou a começar de baixo e decidi aprender de verdade a fazer vinho." A idéia era trabalhar na vinícola e ao mesmo tempo procurar um lugar para comprar uma pequena casa com um pequeno terreno e grande potencial.

Esse período durou quatro anos, e "o napolitano", como era identificado, trabalhava manualmente e aprendia, na prática, o cultivo da vinha e do vinho em uma das mais belas regiões do mundo. Após um ano na pequena vinícola inicial, trabalhou outros dois em uma grande vinícola de 150 hectares, conduzindo tratores até ir trabalhar como o responsável da cantina na vinícola Castello dei Rampolla. Nesse momento, a Fattoria La Massa é tomada de seu proprietário num processo falimentar por um banco, que após dois anos decide colocá-la à venda.

Na Itália, há uma lei, que vem de Mussolini, dando aos vizinhos a preferência de compra de qualquer terra colocada à venda. Assim, La Massa foi oferecida a seu empregador em Rampolla, e juntos planejam comprá-la. Afinal, La Massa tinha terras e uma cantina que não interessava a Rampolla.
Iniciam-se as reuniões com o banco, mas, no meio da negociação, o patriarca dos Rampolla morre e a família decide não fazer investimentos para guardar dinheiro e pagar os altíssimos impostos de transmissão de herança.

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Aí, Giampaolo encontra-se frente ao banco sem sócios, sem dinheiro e sem garantias. Viaja para uma reunião no norte da Itália em Bolzano perto da Áustria - "mais perto da Áustria que da Itália" - a fim de dizer que Rampolla estava fora do negócio, e apresentando um plano para pegar a bela vinícola de 58 hectares financiada, manter para si a vinícola e a parte central dos vinhedos e vender os dois terços restantes para pagar a dívida que seria contraída.

O "napolitano maluco" serrou as antigas pipas para instalar novos equipamentos. Isso fez com que os funcionários pedissem demissão e o deixassem só com a colheita chegando

O napolitano tinha um pouco de dinheiro que a mãe havia lhe dado e o que juntara em 10 anos como empregado. O encarregado do banco mostrou- se muito cético, afinal, estava à sua frente um pretendente sem dinheiro, sem garantia e sem experiência empresarial na condução de uma vinícola.

Mas, sendo o único interessado, o conduziram para uma reunião com o responsável da área, que por sorte era um senhor de Sorrento que conhecia os pais de Giampaolo desde criança e o recebeu emocionado. Este senhor trancou-se com o presidente do banco por uma hora e o convenceu da boa reputação da família de Giampaolo, muito embora ele continuasse sendo para a família apenas "aquele que faz vinho".

Era mágico. Durante dois anos, o banco cobraria apenas os juros e Giampaolo venderia pedaços de terra, cujo pagamento era imediatamente tomado pelo banco para reduzir sua dívida.
Quando voltou triunfante e endividado, Giampaolo ainda trabalhava em Rampola, que no momento arrendava La Massa. Pronto para por as mãos na massa, Giampaolo dirige-se ao encarregado dos empregados e diz: "Comprei La Massa, por favor, dê-me as chaves." Ao que ouve com desdém "Não... Você comprou La Massa? Volte para o trabalho..." "Sim, eu comprei, por favor, as chaves." "Você? O napolitano... Fique quieto e vai trabalhar." Após as tentativas infrutíferas de convencimento só resta a Giampaolo esperar por um fax do banco no dia seguinte a fim de provar que realmente era o novo proprietário da Fattoria La Massa.

Treinamento em Recursos Humanos
A partir de então Giampaolo começava a dar forma a seu sonho, instruía os empregados como queria que a poda fosse realizada, estes balançavam a cabeça afirmativamente e iam ao campo fazer o trabalho como sempre fizeram, simplesmente ignorando as novidades do novo patrão.

Entre as ordens impossíveis de compreender aos tradicionais toscano, estava a necessidade de desmontar e retirar as antigas pipas de madeira da cantina, para substituição por equipamentos modernos. Num fim de tarde tem lugar uma acalorada, e tipicamente italiana, discussão entre o patrão e empregados, em que todos falam simultaneamente até que os empregados partem para seu descanso noturno. Inconformado, o furioso vinicultor pega uma serra elétrica e passa a noite cortando as pipas em picadinhos.

De manhã, um sorridente patrão está à porta esperando para dar as boas vindas aos empregados e dizer que havia um pouco de entulho para tirarem da vinícola. Ao entrarem na cantina, Giampaolo seria novamente rebatizado, agora como "o napolitano maluco", e finalmente mostrando quem manda na vinícola diz: "Sobre minha mesa há uma carta de demissão com o nome de cada um de vocês, aquele que não concordar em trabalhar nos meus termos só precisa assinar e partir."

Ao final do dia, Giampaolo iniciaria uma nova fase laboral, todos os empregados haviam ido embora. Naquela noite, pegou o telefone e ligou a seu amigo e consultor, o genial Carlo Ferrini, disse que a safra ia muito bem e estaria pronta para colheita nos próximos 15 dias, mas que havia um pequeno percalço, pois a equipe da vinícola estava reduzida a "eu e você, Carlo", e depois apelava: "Carlo, você é toscano. Eles vão te ouvir! Por favor venha para cá e nos consiga alguns pares de braços."

Carlo Ferrini e Giampaolo se conheceram enquanto o primeiro era o consultor do consórcio de Chianti Classico e o segundo um empregado de vinícola que buscava uma pequena propriedade para iniciar-se como produtor. Desde o princípio, Ferrini assessoraria Giampaolo na busca do local ideal e, após desqualificar de dezenas opções, finalmente diz sim para La Massa.

Finalmente Giampaolo tinha sua vinícola e Carlo deixara sua função como consultor do consórcio e podia trabalhar como consultor privado. Juntos desenvolveram Giampaolo como produtor e seus vinhos para serem reconhecidos em todo o mundo como alguns dos melhores da Toscana, ideais para serem saboreados enquanto este intrépido napolitano conta dezenas de aventuras que ainda viveria até os dias de hoje.