A vingança de Neruda

"O melhor poeta é o que entrega o pão de cada dia... a entrega da mercadoria: pão, verdade, vinho, sonhos...é uma ração de compromisso" Pablo Neruda

Fábio Farah Publicado em 16/04/2007, às 11h37 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

Aprecio a poesia de Pablo Neruda. Aprecio os vinhos de seu país. No mês passado, estive em Santiago do Chile e visitei a casa do escritor com um guia turístico. Em apenas quinze minutos percorri todos os cômodos, sem degustar nenhum detalhe de suas inúmeras coleções. No final do passeio, tomei um café morno, folheando o livro Veinte poemas de amor y una canción desesperada, e imaginei-me desarrolhando uma garrafa de vinho na sala de jantar daquela casa simpática. Pensei na coleção de copos: diabos, mulheres nuas... Eles me fariam cometer a heresia de dispensar a taça. Li e reli o Poema 20. Deixei o livro de lado e procurei o responsável pela manutenção do lugar. "Gostaria de visitar a casa à noite. E sozinho", disse-lhe. "Não é possível. As visitas são guiadas e realizadas em determinados horários", respondeu-me. Algumas regras existem para serem burladas. E eu estava disposto a gastar milhares de pesos chilenos para realizar meu desejo.

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Às 20h, pontualmente, estava diante de La Chascona (em português, A Descabelada, em homenagem à terceira esposa do poeta chileno, Matilde Urrutia). Maleta à mão. Esperei dez minutos. Um guarda surgiu do lado de fora. Olhou para mim, ressabido. Aproximou-se lentamente. A cerca de 10 metros, fitou-me e sussurrou: "Neftalí". Retruquei: "Reyes Basoalto". A senha e a contra-senha compunham o nome de batismo de Pablo Neruda. Paguei o restante da propina e passei pelo portão. Com lanterna na mão, ele conduziume até a entrada da cozinha. "Fique à vontade. Não precisa ter pressa. Estarei esperando do lado de fora", disse-me. Seis velas, em dois castiçais, criavam uma atmosfera lúgubre. Poética. Retirei de minha maleta um "Viñedo Chadwick 2000" e aproximei-me da coleção de copos coloridos. Um estrondo. Meu coração disparou. Alguém surgiu de dentro do armário da cozinha. Chapéu de marinheiro. Garrafa de vinho na mão. Sorriso no rosto. Poesia nos lábios: "Cuando a regiones, cuando a sacrificios manchas moradas como lluvias caen, el vino abre las puertas con asombro, y en el refugio de los meses vuela su cuerpo de empapadas alas rojas". Até o último verso de Estatuto del Vino, eu já havia me recuperado do susto. E reconhecido aquele homem.

Ele apanhou três copos e sentou-se ao meu lado. "Estou acostumado a beber sozinho, mas hoje espero a visita de uma pessoa", confidenciou Pablo Neruda. Poucos minutos depois, o poeta levantou-se para atender a porta. "Meu grande amigo brasileiro", saudou o visitante com um forte abraço. Era o escritor Jorge Amado. "Faz tempo que a gente não se encontra. Você se lembra da última vez?", meu conterrâneo questionou o chileno com um sorriso de deboche. Piscou para mim. Quando era vivo, ele me contara o episódio enquanto bebíamos água de coco.

Em algumas férias, Pablo costumava visitar o amigo na Bahia. Mas fazia questão de levar os vinhos de seu país. "São os melhores", repetia toda vez que uma garrafa era aberta durante o almoço - ou jantar -, preparado por Zélia Gattai. Certa vez, Jorge resolveu pregar uma peça no amigo. Comprou vinho brasileiro de garrafão e encheu garrafas com rótulos chilenos. "Quanto você quer apostar que ele nem vai perceber?", perguntou à esposa. Risadas. Na quarta taça, Pablo fez um brinde especial: "Aos vinhos chilenos. Isso sim é que é vinho. No Brasil, vocês deveriam produzir apenas cachaça". Zélia e Jorge se entreolharam. Caíram na gargalhada. "O que foi?", indagou o poeta, ressabiado. "Isso é vinho brasileiro... E dos piores", entregou Jorge. "Então, um brinde aos brasileiros", contornou Pablo, rindo com os anfitriões.

Apesar do tempo, que varre as lembranças, Pablo não se esquecera daquelas férias. Apenas sorriu com a pergunta do amigo, antes de indagá-lo: "Você sabia que nós estamos entre os maiores exportadores de vinho do mundo? Já ouviu falar dos Super Chilenos?". "Não, mas quero descobrir agora", respondeu Jorge. O poeta abriu um armário e retirou os mais prestigiados vinhos do país (retratados na matéria de capa dessa edição de ADEGA). Na sexta garrafa, Jorge cometeu a ousadia de interromper Pablo enquanto ele divagava sobre os mistérios do mar. "Esse negócio de Super Chilenos não está com nada", disse, fitando a ilustração da mulher nua em seu copo. "Por que não?", indagou o poeta, surpreso. "Você sabe que o Brasil é o criador dos mais belos rótulos do mundo? Já ouviu falar das Super Brasileiras?", indagou Jorge. Sorriso maroto. Pablo riu e improvisou uma poesia. Era a melhor descrição organoléptica de uma mulher que eu jamais ouvira. "Você está falando da minha Gabriela", brincou o baiano, colocando um garrafão sobre a mesa. E emendou: "Agora vamos tomar o meu". Fiz cara de espanto. Os dois caíram na gargalhada. "Um brinde às brasileiras", adiantou-se Pablo, elevando o copo.