Quando e como surgiu a crítica de vinhos? O que há por trás desse fenômeno? Qual é o papel da crítica hoje no Brasil e no mundo? Como e por que se avaliam vinhos? Que critérios são comumente aceitos?
Marcelo Copello Publicado em 19/05/2006, às 11h54 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h43
Diariamente recebo releases destacando que esse ou aquele vinho foi agraciado com muitos pontos ou inúmeras estrelas de críticos e publicações importantes. Ironicamente, chego às vezes a receber emails de divulgação dizendo que eu mesmo dei notas altas para um ou outro caldo.
Uma pergunta recorrente de leitores é: qual minha opinião sobre tal ou qual rótulo, que teria ganhado "125 pontos da Wine Terminator", ou "14 copinhos do guia Naso Rosso", ou ainda "4,75 barris do guia Los Despachados?". Catálogos de importadoras ostentam ao lado do preço de cada produto suas principais cotações. Será que passamos a apreciar nossa bebida predileta através dos números?
Definição e origem da crítica
Criticar qualquer coisa é examiná-la racionalmente, tentando isentar-se de influências e preconceitos, atribuindo ao objeto da análise um conceito de valor. O ser humano é crítico por natureza, pois estamos permanentemente e de várias maneiras atribuindo valor a tudo, mesmo que inconscientemente. Criticar é humano e é saudável, faz parte do livre pensar e do exercício de questionar.
O vinho recebe por escrito seus julgamentos de valor desde a Antigüidade. Os cronistas de Roma atribuíram grande qualidade ao vinho Opimiano da safra de 121 aC. Esse fabuloso fermentado, cujo nome é uma homenagem ao então cônsul Opimius, foi um grand cru, produzido a partir de um vinhedo único chamado Falernum, na região da Campânia (onde é hoje Nápoles) e foi consumido até seus 125 anos de idade!
O termo 'provador' foi designado em 1793, pelos lexicógrafos franceses como "aquele cujo ofício é provar vinhos". Vinte anos depois, a palavra 'degustar' viria a surgir nos textos franceses. O primeiro livro a tentar analisar a ciência da degustação foi provavelmente 'The History of Ancient and Modern Wines', escrito em 1824 pelo Dr. Alexander Henderson. O século XIX registrou o florescimento de uma literatura voltada para as qualidades sensoriais do vinho, sua apreciação e, conseqüentemente, avaliação. Disseminava-se então crítica de vinhos.
O poder da crítica de vinhos
O século XX viu o mundo mudar sob vários aspectos: o capitalismo, a sociedade do consumo, a variedade de produtos, a possibilidade de escolha. Após a Segunda Guerra Mundial e mais acentuadamente a partir dos anos 70, o vinho tornou-se a bebida da classe média e as publicações especializadas viveram um verdadeiro boom; não por acaso em 1976 foi criada a revista Wine Spectator, por exemplo. O poderoso crítico americano Robert Parker Jr. também surgiu nesta época, com seu jornal The Wine Advocate, que alcançou notoriedade a partir da safra 1982, uma grande safra em Bordeaux.
No mesmo período, os vinhos do Novo Mundo surgiram como importantes players do mercado, o que trouxe em seu bojo uma nova maneira de degustar e apreciar o vinho, aumentando a importância da crítica. Explico: em uma simplificação, podemos abordar a apreciação de um vinho de duas maneiras: uma sensorial, que lê suas qualidades intrínsecas (seu aroma, sabor, etc), e outra, mais abrangente, que vê elementos que não estão diretamente no líquido, mas que fazem parte de sua identidade, como sua origem, sua tradição e sua história.
A então emergente indústria do vinho do dito Novo Mundo, carecendo da milenar história européia, enfatizou os prazeres sensoriais da bebida. Os críticos que ascenderam na época, apoiados nas provas cegas (onde o líquido fala por si) ressaltaram esse ponto, mostrando que era (e é) possível comprar vinhos de grande qualidade (intrínseca) pagando bem menos do que o necessário pa-ra adquirir os renomados vinhos clássicos europeus. Para descobrir tais vinhos, no entanto, é necessário provar as novidades aos milhares e militantemente: tarefa para profissionais.
Este contexto fez com que as últimas décadas dessem origem a uma nova e brilhante geração de críticos, cujos guias povoam as livrarias de todo o mundo, como os ingleses Hugh Johnson, Jancis Robinson, Michael Broadbent e Oz Clark; os americanos Robert Parker e James Suckling (Wine Spectator); o francês Michel Bettane; os italiano Luigi Veronelli, Luca Maroni e Danielle Cernilli (do guia Gambero Rosso); o espanhol José Peñin; os portugueses João Paulo Martins e João Afonso; o sul-africano John Platter, e os australianos James Halliday e John Beeston.
#Q#Mas quanto esses personagens e a precisão de seus palatos nos influenciam na escolha de um vinho? Certamente muito. Os principais guias do mundo chegam a vender milhões de exemplares a cada ano. A revista Wine Spectator, por exemplo, tem cerca de 2 milhões de leitores em todo o mundo. A verdade é que, de um lado temos um grande mercado em formação em todo o mundo, com milhões de novos apreciadores da bebida, ávidos por informação e sem tempo e recursos financeiros para provar muitos vinhos. Do outro lado, há uma variedade imensa (e incomensurável) de novos rótulos surgindo a cada dia. No centro dessa arena, estão os gurus báquicos, empunhando suas taças.
A função da crítica de vinhos
Criticar um vinho é degustá-lo, de preferência às cegas, sem preconceitos, seguindo padrões internacionalmente aceitos, à luz da experiência prática, atribuindolhe um conceito de valor. O bom crítico é aquele que não detém o conhecimento mas o dissemina, prestando um serviço a seu leitor, orientado-o e buscando uma capacitação crítica desse leitor, para que ele pense o vinho e desenvolva seu próprio gosto e seu próprio senso de julgamento.
Do ponto do vista prático, do consumidor, a crítica de vinho tem uma função talvez mais importante do que a crítica de cinema, por exemplo. O preço do ingresso no cinema é mais ou menos o mesmo independente do filme. O investimento em uma garrafa de vinho varia muito de um vinho para outro, o que significa um risco bem maior. O comprador casual quer reduzir suas chances de insucesso ao comprar, e não está disposto a gastar tempo e dinheiro para experimentar muitos vinhos (e errar muito) até achar o que procura. Nesse ponto, as notas dadas pela crítica ajudam tremendamente.
Não discordo totalmente dos que dizem: "o vinho, como a arte, é o absoluto, é incomensurável. Cada vinho é perfeito dentro de seu estilo, pois é a expressão de um local, de uma safra e do homem que o fez. Você não diria que Picasso é 95 e Dali é 97". É bem verdade, se falássemos apenas de vinhos como Romanée-Conti e Krug estaríamos nos aproximando dessa realidade, mas o fato é que a maioria do vinho que se produz no mundo é uma simples commodity, com níveis muito variáveis de preço e qualidade. E, convenhamos, muitos dos vinhos custam mais que merecem apenas por sua fama, enquanto outros têm qualidade e não custam tanto.
Como os vinhos são avaliados
Muitas são as maneiras de se avaliar tecnicamente um vinho e de atribuir valor a ele. Existem muitos métodos didáticos, e várias fichas oficiais. Mas embora cada profissional tenha seu modus operandi, suas preferências e seus segredos, os resultados convergem para pontos em comum.
Fala-se sempre de como o vinho interage com os órgãos dos sentidos, no caso: olhos, nariz e boca. Sempre comparando cada vinho com todos os vinhos que já degustamos na vida. Degustar é comparar. Avaliam-se cor, aromas, sabor, tato e equilíbrio geral. Alguns degustadores atribuem notas, por exemplo, à tipicidade, à evolução do vinho na taça ao longo da degustação, e à sua perspectiva de envelhecimento em adega.
As maneiras de contabilizar e apresentar os resultados variam bastante. Americanos preferem escalas de 100 pontos e europeus de 20, por exemplo. Adeptos mais notórios da escala de 100 pontos são a Wine Spectator, Robert Parker. A Revista de Vinhos, de Portugal, e a inglesa Jancis Robinson são dos que preferem os 0-20 pontos. A revista inglesa Decanter optou por uma simplificação, colocado estrelas, de 0 a 5, o mesmo sistema utilizado em ADEGA. Optamos por esse método por achálo mais justo e didático, pois um vinho de 86 pontos não é significativamente superior a um de 85 pontos, mas estão em um mesmo patamar de qualidade.
Existem muitas variações na maneira de expressar notas. Mais importante, no entanto, do que como são expressas as notas, é a coerência e consistência do avaliador, que será percebida pelo leitor ao longo do tempo. Parker faz tanto sucesso nos EUA (e no resto do mundo), pois o bebedor americano se identifica com seu gosto e pode comprovar na prática, ao longo de mais de 20 anos, a consistência de seus comentários.
#Q#Um método didático para avaliar vinhos
Para que nosso leitor possa se aprimorar na arte da degustação e se familiarizar com a avaliação de vinhos, sugerimos um método didático muito utilizado no Brasil, adotado pela ABS (Associação Brasileira de Sommeliers), o método Giancarlo Bossi.
Vamos descrever a ficha de degustação criada por este enólogo italiano, mas antes é bom lembrar que profissionais utilizam métodos bem mais simplificados e muitas vezes não utilizam nenhum tipo de ficha. Friso que mais importante que o método ou a ficha utilizada é a experiência do degustador, que saberá usar a técnica em seu favor e não ser usado por ela, não ficando preso a muitas regras que podem ser limitantes. Para iniciantes, no entanto, métodos didáticos podem servir de guia para uma degustação mais atenta. A ficha ao final é dividida em exame 'Visual', 'Olfativo', 'Gustativo' e 'Sensações Finais'. A parte de 'reconhecimento' não recebe notas:
I - exame visual
(16 pontos possíveis)
Reconhecimento: Incline a taça sobre um fundo branco e analise a tonalidade e a intensidade no meio (parte mais profunda) do líquido. A cor a que devemos nos referir é a cor do centro da taça inclinado. Verifique a fluidez, girando a taça sobre a mesa e vendo o tempo que o líquido leva para retornar ao repouso. Uma referência seria: muito escorregadio = água; escorregadio = a maioria dos vinhos de mesa; denso = vinhos de sobremesa, Porto, etc; xaroposo = licores; fiadeiro = azeite.
Na unha (parte final e mais fina da superfície do vinho na taça inclinada) e nas bordas do líquido, note eventuais reflexos - o reflexo nos fala do passado e do futuro do vinho, da sua ex ou futura cor. Um vinho vermelho rubi com reflexos alaranjados, por exemplo, é um vermelho rubi com sinais de idade. A ponta da unha é sempre incolor, revelando o álcool do vinho. A ponta de unha é tanto maior quanto mais envelhecido é o vinho.
Avaliação:
Limpidez: procure substâncias em suspensão; veja se o líquido está limpo. Brilhantes seriam os grandes vinhos, que chamam a atenção pela grande limpidez, chegando a brilhar. Muito límpido: a maioria. Límpido: seria um Porto sem decantar por exemplo. Velado e Turvo seriam os vinhos defeituosos.
Para julgar a transparência, tente ler através do líquido na taça inclinada. Muito transparente: vinhos com cor branco-papel. Transparente: lê-se através, a maioria dos vinhos. Regular: oferece dificuldade para lerse através. Opaco: vinhos de cor profunda. A nota que se dá pela qualidade da cor é um quesito de gosto pessoal. Siga seus instintos.
II - exame olfativo
(24 pontos possíveis)
Reconhecimento: Primeiramente, procure sentir os aromas do vinho logo que for servido, antes de examinar a cor. Você sentirá dessa maneira aromas muito voláteis e efêmeros, que não serão sentidos mais ao longo da degustação. Aromas como sulfa, cacau e café às vezes aparecem apenas no início da degustação.
Christian Burgos |
Depois do exame visual, analise com mais calma a parte olfativa. Esse momento exige concentração. Colocando-se o nariz na parte de baixo da abertura da taça você sentirá os aromas mais pesados, que se volatizam por esta parte da taça. Colocando-se o nariz na parte de cima, você sentirá aromas mais leves. No reconhecimento, um vinho Franco é um vinho são, opondo-se ao Defeituoso. Amplo é o vinho com variedade de aromas e Nítido é o vinho com apenas um aroma que domina (nesse caso indique qual o aroma).
Fragrantes são os aromas primários e secundários (originários da uva, da vinificação e do amadurecimento do vinho), trata-se normalmente de um vinho jovem. Fragrantes são os aromas que abrem as papilas olfativas, o melhor exemplo é o hortelã. Etéreos são os aromas terciários, aqueles originados do envelhecimento do vinho em garrafa - aromas como couro, pelica, pele de salame etc, que contraem as papilas olfativas. Um vinho pode ser fragrante, etéreo ou estar na transição entre uma coisa e outra.
Frutado se refere a vinhos com aromas de frutas, Floral a vinhos com aromas de flores, Vinoso a vinhos com aroma de uva ou mosto de uvas (geralmente vinhos de baixa qualidade como os vinhos ditos de garrafão), e Vegetal a vinhos com aromas de vegetais.
#Q#Em Outros Caracteres relacione os aromas que você identificou.
Avaliação:
Na Qualidade, observe a qualidade (bom x ruim), a variedade e a originalidade dos aromas. Na Intensidade, verifique o ataque aromático da bebida, a quantidade de aroma. Na Persistência, avalie por quanto tempo a intensidade se mantém. Um método é contar o tempo que leva para o aroma se dissipar depois de inspirado. Dez segundos representam um vinho de boa persistência.
III - exame gustativo
(60 pontos possíveis)
Reconhecimento: Finalmente coloque o vinho na boca, sem engolir, por enquanto. Deixe o vinho passear por sua boca, mastigue-o, verifique seu corpo, sua acidez, seu tanino, seu álcool e sua doçura. Deixe a saliva interagir com o vinho, ele esquentará e liberará mais aromas.
Uma experiência interessante é, fazendo um biquinho, deixe entrar ar na boca (ainda com o vinho nela, antes de engoli-lo). Com isso, o vinho se volatizará dentro da boca de forma mais intensa e você sentirá aromas mais intensamente, normalmente aromas mais pesados, por via oral, pela comunicação interna que existe entre boca e nariz.
Açúcares: verificam-se na ponta da língua. A maioria dos vinhos finos é de vinhos secos. Suaves e meio-doce seriam os vinhos com alguma doçura. Doces seriam os vinhos de sobremesa, os Sauternes, Portos, etc. Licorosos, os licores.
Acidez: verifica-se através da salivação que provoca no final da boca, nos cantos próximos ao fim do maxilar. Mole seria um vinho carente de acidez e Áspero um vinho com excesso de acidez.
Álcool: é a sensação de calor, queimação e pungência na língua. Maciez: sensação de redondez que o vinho provoca. Carente seria o vinagre e Pastoso, um xarope
Corpo: é o extrato seco do vinho, verifica-se na textura e consistência do vinho, mastigando- o.
Tanicidade: sensação de secura, aridez na língua. O oposto da acidez.
Avaliação:
Verifica-se o equilíbrio nos vinhos comparando os fatores reconhecidos, o vinho será tanto mais equilibrado quanto mais coerentes entre si forem açúcares, acidez, álcool etc.
A qualidade se refere à variedade, originalidade e qualidade da avaliação do vinho na boca.
A intensidade se refere à quantidade, ao ataque de gosto, aroma e tato avaliado na boca.
A persistência se refere à manutenção da intensidade no tempo. Ao engolir do vinho conte os segundos, menos de 10 é razoável, de 10 a 15 é persistente e mais de 15 muito persistente.
IV - sensações finais
Termina bem? A sensação final que o vinho deixou foi agradável?
Deixa a boca: Fresca para vinhos brancos mais acídulos (seja coerente - veja o que você marcou no reconhecimento do vinho no exame gustativo); Enxuta para vinhos brancos menos ácidos ou tintos não muito tânicos; Limpa para vinhos neutros (pouco ácidos para brancos ou pouco tânicos para tintos) e Árida para vinhos tintos tânicos.
O vinho deixou alguma sensação no final da língua (região onde se percebe o amargor) após ser engolido? Chamamos de fim-de-boca e, quando aparece normalmente, é amargo. Marque então: com fundo amargo.
V - evolução
Jovem: vinhos que ainda não atingiram seu patamar de maturidade. Pronto: atingiu seu patamar de maturidade.
Maduro: está no fim do patamar; daqui a diante decairá. Ligeiramente envelhecido: começou a decair, demonstra os primeiros sinais de idade.
Envelhecido: já decaiu e demonstra sinais claros de idade. Decrépito: já bastante envelhecido com seqüelas dessa senilidade.