Luz, câmera e um brinde!

A clássica harmonização entre cinema e vinho enche os olhos e o paladar. Descubra o que os astros têm em comum com as uvas e aceite a nossa sugestão de substituir a pipoca por uma taça de vinho

Marcelo Copello Publicado em 12/03/2007, às 06h05 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

O cinema descobriu o vinho e o vinho descobriu o cinema. Este flerte tem rendido bons casamentos. Nos últimos anos, o vinho transformou-se na telona em badaladas produções, como Sideways – Entre umas e outras (Sideways, EUA, 2004), Mondovino (Mondovino, França, 2004) e o recente Um bom ano (A good year, EUA, 2006). Enquanto isso, personalidades da sétima arte encontraram no vinho uma outra forma de expressão, agora como felizes proprietários de vinícolas, como Gerard Depardieu, Lorraine Bracco, Sam Neill e Francis Ford Coppola.

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Existe alguma analogia entre essas duas formas de arte? ADEGA propõe guardar nossos microscópios, usados em seções mais técnicas, e utilizar uma grande angular. Vamos articular a linguagem cinematográfica e relacioná-la com a linguagem do vinho, de modo a renovar e ampliar nossa visão sobre essas duas importantes formas de sermos humanos.

O cinema surgiu no final do século XIX como o “olho mecânico”, no qual o uso da energia elétrica e de um processo químico (de imprimir uma imagem em uma película) tinha papel central. Essa moderna máquina era capaz de capturar pedaços da realidade, a vida como ela é, uma arte objetiva e neutra, na qual o homem, segundo um determinismo rigoroso, não interfere. O vinho em seus primórdios também era relacionado ao “real”, a verdade em sua essência, visão bem expressa na célebre frase de Plínio: in vino veritas (em português, a verdade está no vinho). Para os antigos gregos o néctar dionisíaco, ao mesmo tempo em que embriaga, traz lucidez.

Hoje os papéis desempenhados por cinema e vinho mudaram radicalmente. O cinema deixou de ser a arte do real para, no nosso mundo contemporâneo, tornar-se a mais lúdica das artes. No momento em que as luzes se apagam, o espectador entra em um sonho. O acender das luzes é quase como um despertar deste mundo onírico. O vinho, por sua vez, nas últimas décadas deixou de ser a bebida alimentar popular para associar-se ao prazer hedonista (e também lúdico) da viagem dos sentidos.

Cena do filme Sideways

Os elementos do cinema também têm reflexos no vinho. Atores são como uvas, alguns chegam a ser divas. A Chardonnay seria uma Greta Garbo, que se impõe e em todos os filmes faz um mesmo personagem com pequenas nuanças. Outros conseguem imprimir talento com versatilidade. Um Cabernet Sauvignon seria um Laurence Olivier. Este mito britânico brilhou tanto em Shakespeare como em comédias contracenando com Marilyn Monroe. E claro, há os simpáticos canastrões. Clark Gable tem ares de Carménère, pois agrada, impressiona, mas raramente chega a complexidade e profundidade dos grandes intérpretes. A Tannat lembra Sylvester Stallone, ambos são mais marcados pela força rústica do que pela simpatia ou elegância, palavra mais associada a Pinot Noir na taça e a nomes como David Niven ou Audrey Hepburn, na tela.

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Podemos estender este raciocínio aos movimentos e períodos que marcaram o cinema. No Star System Hollywoodiano o nome do ator é o que conta. Nos vinhos do Novo Mundo também, o nome principal é o da uva. “Estrelando Sauvignon Blanc!”. Enquanto isso os vinhos de assemblage nos lembram mais filmes “de autor”, onde a maestria do diretor se compara à técnica do enólogo. A mistura dos vinhos de diferentes uvas para elaboração do corte final nos lembra a montagem de um filme por seu diretor. Enquanto um cinéfilo iniciante fica fã dos astros e estrelas e em um estágio mais sofisticado, dos diretores, roteiristas e diretores de fotografia, no vinho os neófitos costumam escolher seus vinhos pelo nome da uva, para, com o tempo, interessar-se por regiões, produtores e safras.

Efeitos visuais são inerentes a qualquer película, em maior ou menor grau, do mesmo modo que a manipulação das uvas é inevitável para a produção de vinho. Em alguns filmes, no entanto, tais artifícios são a atração principal. O que seria de Matrix ou da série Guerra nas Estrelas sem o trabalho de técnicos com seus computadores. E o que seria de alguns vinhos sem os barris de carvalho bem tostado, a correção de acidez, concentração de mosto, chaptalização e outros “efeitos especias”. Nem só com atores se faz um filme e nem só com uvas se faz um vinho, assim provaram George Lucas e Michel Rolland.

Não podemos omitir as figuras quase sempre esquecidas, os viticultores e os roteiristas, responsáveis por trabalhar a matéria-prima que será entregue aos enólogos e diretores. Eles usarão de toda técnica de extração de cor, iluminação, fermentação a frio, movimentos de câmera, leveduras, cenário e figurino, para que o produto final nos emocione.

Os movimentos da história do cinema também merecem sua metáfora no vinho. O Neo-Realismo italiano de Roberto Rosselini e Vittorio De Sica buscou sair dos estúdios para encontrar nas ruas seu cenário, no intuito de fazer filmes sem astros, protagonizados por pessoas comuns e anônimas. Esta condição de rostos sem nome pode ser encontrada em alguns vinhos de vinhas velhas, comuns em Portugal. Vinhedos como estes abrigam dezenas de tipos de uvas plantadas aleatoriamente, às vezes, incluindo espécies sem nome, perdidas no tempo. O Neo-Realismo italiano desembocou em várias correntes, como a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e o Cinema Novo de Glauber Rocha. “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” nada mais é do que a busca desta essência de simplicidade, dos vinhos orgânicos e dos ditos “vinhos de terroir”. A versão mais recente e aprofundada desta corrente cinematográfica é o “Dogma 95”, movimento encabeçado pelo diretor dinamarquês Lars von Trier (Dogville), onde certos preceitos, chamados de “voto de castidade”, foram estabelecidos. Essas regras, com direito a certificação, incluem: câmera na mão, proibição de cenografia, iluminação especial, filtros, assim como filmes de gênero e ações “superficiais” (homicídios, etc), filmagens sempre em locais externos, som/música reais, produzidos juntos com a imagem etc. Esta radicalização nos lembra os produtores de vinhos biodinâmicos, igualmente certificados, que buscam este “realismo” ao não usar agrotóxicos, tratores, nem quaisquer artifícios para a produção de vinho.

Cena do filme Um bom ano

Analogias como estas são leituras pessoais dos códigos de linguagem do vinho e do cinema. Você não precisa militar por minhas escolhas, mas sim criar as suas. Sócrates disse que a vida irrefletida não merece ser vivida, ao que um de seus discípulos respondeu: e a vida não vivida não merece ser analisada. Não pretendemos, portanto, comparar a teoria à prática. Sabemos que jamais a experiência de ler sobre vinho e cinema irá se comparar ao que se tem na taça e na tela. Boa degustação e bom filme!

Para assistir de taça na mão
Mondovino (Mondovino, França, 2004) – o polêmico filme do americano Jonathan Nossiter, já entrevistado por ADEGA, levou para a telona um tema que já vinha sendo discutido no mundo do vinho há alguns anos, a “globalização” do gosto. Assista com um vinho de Michel Rolland em uma taça e um bom Borgonha em outra.

Sideways – Entre umas e outras
(Sideways, EUA, 2004) – uma comédia deliciosa que tem como cenário os vinhedos da Califórnia. Imperdível. Assista com um Pinot Noir em uma taça e um Merlot em outra, ambos do Novo Mundo.

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Um bom ano
(A good year, EUA, 2006) – O galã Russel Crowe é um bem sucedido investisdor de Londres que muda de vida com a morte de um tio e vai produzir vinho no sul da França. Este filme gerou protestos entre os franceses por exagerar em alguns estereótipos. Assista com um vinho da Provence. Aberto, é claro.

A festa de Babette
(Babette Gaestebud, Dinamarca, 1987) – Um clássico absoluto quando o tema é gastronomia. O vinho é parte importante da festa. As opções de vinho para acompanhar esta película são várias, todas de alta classe e incluem um Amontillado, Champagne Veuve Cliquot ou um autêntico borgonha Clos Vougeot.

Surpresas do Coração
(French Kiss, EUA, Inglaterra, 1995) – Uma comédia romântica com Meg Ryan e Kevin Kline. Ele é um ladrão de jóias francês louco por vinhos, cujo sonho é produzir vinhos na Provence. Durante todo o filme ele carrega em sua bolsa uma videira envolta no colar de diamantes que roubou. A cepa e a jóia seriam as sementes que germinariam seu sonho. Quem tiver um kit de aromas do tipo “Le Nez du Vin”, deixe por perto ao alugar este DVD, você vai querer usar.

Muralhas do Pavor
(Tales of Terror, EUA, 1962) – O tema do filme não é vinho, mas há uma cena antológica de um desafio de degustação às cegas. Vincent Price é um especialista que bochecha ruidosamente cada vinho antes de cuspir e anunciar Château e safra, enquanto o bêbado Peter Lore sorve cada gota do que está em seu copo para, entre soluços, desbancar o mestre. Assista com várias garrafas servidas às cegas. Enquanto vê o filme tente acertar qual vinho está em cada taça.

O ator Gerard Depardieu

O Ano do Cometa
(The Year of the Comet, EUA, 1993) – O título se refere a uma garrafa de vinho da safra de 1811 (a ano da passagem de um cometa conhecido como O Grande Cometa de 1811). O vinho em questão nada mais é do que uma garrafa Jeroboam (4,5 litros) de Château Lafite desta histórica safra, que é leiloada no filme por meros cinco milhões de dólares. Fica difícil recomendar um vinho para acompanhar este filme.

Vinhos com gosto de cinema
A lista de personalidades do cinema que ingressaram no mundo do vinho aumenta a cada dia. O caso mais famoso e decano da turma é Francis Ford Coppola, que nos anos 1970 comprou uma vinícola na Califórnia, a outrora famosa e então decadente Inglenook. Hoje a empresa rebatizada de Niebaum-Coppola, representada no Brasil pela importadora Reloco, produz bons vinhos e seu top, Rubicon, chega a alcançar alto preço e qualidade.

Outro nome de peso do cinema com presença marcante no vinho é Gerard Depardieu. O talentoso e corpulento ator francês produz vinhos desde a década de 1980 e hoje possui propriedades em Bordeaux, Languedoc, Vale do Loire, Espanha, Argentina e Marrocos. Seu mais notório vinho chama-se Cuvée Cyrano, tinto produzido em sua propriedade no Loire, o Château Tigné. O nome é uma referência ao clássico personagem de Edmond Rostand, vivido por Depardieu nas telas.

Mais modesto, e aparentemente mais ligado a terra, é Sam Neill, astro de mega produções como Jurassic Park (EUA, 1993) e cult movies como O Piano (The Piano, Nova Zelândia / Austrália / França,1993). Neill descobriu um belo pedaço de terra em Central Otago, sua terra natal, a Nova Zelândia, e lá produz Pinot Noir na latitude 45º sul, um dos vinhedos mais ao sul do planeta. A vinícola chama-se Two Paddocks, especializada em Pinot Noirs, que ele descreve como frutados e de paladar sedoso.

As mulheres não poderiam ficar de fora. Lorraine Bracco, estrela da série da HBO Família Soprano. A estrela em questão não produz vinho, limita- se a selecionar os seus prediletos dentre clássicos italianos e lançálos com sua marca. Assim a Bracco Wines distribui Barolos, Brunellos, Amarones e Chiantis, por exemplo.

Engrossando a ala feminina contamos com uma Bond Girl, Carole Bouquet, que contracenou com Roger Moore em 007 - Somente Para Seus Olhos (For Your Eyes Only, EUA/ Inglaterra, 1981). Em 1994 ela adquiriu vinhedos na ilha de Panteleria, ao sul da Sicília e lá faz hoje um vinho passito, chamado Sangue d’Oro.

Os vinhos refletem seus donos. Basta dar uma olhada nas fotos do site do empreendimento de Olívia Newton John, Koala Blue Wine. A estrela australiana de Grease – nos tempos da brilhantina (EUA, 1978) aparece com ar (ainda) adolescente fazendo caras e bocas com o vinho, que aparenta trazer em seu sabor o mesmo caráter descompromissado.

A lista de eno-astros que emprestam suas imagens ao vinho poderia ser facilmente engrossada se colocássemos nomes de músicos com passagens pelo cinema, como Madonna, Sting e Mick Jagger, mas isso é outra história.