Matrimônio à La Baco

"Uma refeição sem vinho é como um dia sem sol" Brillat-Savarin

Marcelo Copello Publicado em 25/07/2006, às 07h41 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

O crescimento do interesse pelo vinho, fenômeno que contagiou os brasileiros nos últimos anos, trouxe consigo novos hábitos à mesa. Há 10 anos, se via em cada mesa de restaurante garrafas de whisky e refrigerantes e, na sobremesa, o indefectível licorzinho. Hoje, sem dúvida, o vinho reina. Multiplicamse em todo o país os eventos em torno do fascinante e inesgotável tema "como unir vinho com comida", são os ditos "jantares harmonizados", "wine dinners", "menus compatibilizados" etc. A razão é simples, nenhuma outra bebida acompanha tão bem as refeições. Enquanto a cerveja e os destilados se prestam mais a degustações, digamos, solteiras - sem acompanhar alimentos -, ou escoltando petiscos, o nobre fermentado, por seu teor alcoólico médio e suas muitas nuanças, é um casadoiro por natureza. Enquanto outras bebidas são celibatárias, o nobre fermentado é um verdadeiro Don Giovanni (também conhecido como Don Juan) da gastronomia, conquistando sempre a companhia de novos pratos. Em mesas civilizadas, a única outra bebida admitida seria a água, que cumpriria o papel de Leporello, fiel criado de Don Giovanni, que na ópera de Mozart, sempre prepara o terreno para as seduções de seu mestre.

#R#

Mas como proceder a compatibilização ou harmonização de vinhos com alimentos? Estas núpcias já deram muito o que falar, mas a discussão quase sempre se restringe a uma abordagem cartesiana e simplificadora. O usual "o que vai bem com o que" não educa e limita um tema de complexidade fascinante.

Inicialmente, o que é "casar" vinhos e alimentos? Neste, como em qualquer matrimônio, busca-se um encontro sinérgico, onde as partes se completem, em equilíbrio e harmonia. Este é um equilíbrio delicado, dinâmico, e, por vezes, efêmero. Nas relações amorosas, quando a balança pende para um lado é inevitável magoar a quem se ama. No conúbio gustativo, a vítima é o paladar.

Se os riscos são tantos, por que então se pratica este esporte? Porque ele pode transformar um ato cotidiano, como uma simples refeição, numa fonte inesgotável de prazer sensorial e intelectual. E quais são as regras deste jogo? O preceito geral é renovar o prazer a cada gole e a cada garfada. Ao longo de uma refeição, nossos sentidos tendem a perder a sensibilidade.

Em uma degustação solteira, o segundo gole do mesmo vinho já não será mais uma surpresa, o décimo poderá ser monotonia. Se interpusermos garfadas de um prato com características que se combinem às do vinho, este quebrará o marasmo e cada porção será um prazer renovado. Para tal, alimento e bebida precisam ter personalidades compatíveis e se equivaler em sabor. Por exemplo, associar um Amarone (tinto de grande corpo) a um linguado grelhado com ervas frescas, significa oprimir o peixe e banalizar o vinho. Do mesmo modo, escoltar um Chablis (vinho branco delicado) com javali assado ao molho de pimenta verde tornará o vinho irrelevante e a caça pedante. Já se fizermos um sábio swing nestes casais...

Mas como achar o par ideal? Existem duas normas básicas para isso: similaridade e contraste (este o mais eficaz). A primeira combina, por exemplo, vinhos doces com alimentos doces. No mesmo exemplo, o contraste indicaria vinhos doces para alimentos bastante salgados ou picantes. Como em casais que têm muitas afinidades, mas também aspectos "opostos que se atraem", ou que se completam. No vinho, uma combinação clássica, por exemplo, é o Vinho do Porto (doce) com queijos azuis, como o Roquefort, que têm sabor pronunciado ou, se estivermos em Portugal, com o inigualável queijo da Serra da Estrela.

Para fazer este enlace com ciência precisamos proceder como numa agência matrimonial e analisar a personalidade de cada um dos candidatos. Quem nunca bancou o cupido, apresentando amigos solteiros que julgamos ter "tudo a ver"? Harmonizar é o ápice de uma educação em vinhos e em gastronomia, pois cada característica da bebida e do alimento deve ser cuidadosamente estuda. Assim como existem infinitos tipos de pessoas, com diferentes aparências e personalidades, existem incontáveis tipos de vinhos e de alimentos, e maneiras de prepará- los. As possibilidades de combinação entre pessoas ou alimentos e bebidas é tão complexa quanto fascinante, e o par-perfeito, em ambos os casos, é um nirvana que se deve sempre buscar.

Algumas dicas de como funciona

A tanicidade dos tintos, aspereza que nos seca a boca, requer a suculência (um bife sangrento, por exemplo) para umedecer o palato - esta é a base teórica da típica combinação: "carne vermelha com vinho tinto". Qualquer prato com alto nível de sabor implora por vinhos encorpados e de igual porte. A maciez ou redondez nos vinhos (sensação tátil dada pela doçura e pelo álcool) se contrapõe à aspereza da acidez dos alimentos. Logo, alimentos ácidos pedem vinhos doces ou alcoólicos.

A intensidade de aromas de um vinho exige que o alimento também seja aromático. Lembrando que pratos aromáticos, por suas especiarias, normalmente causam sensações tácteis. Exemplo: pimenta. Para tal, recomenda- se que além de aromático o vinho também seja macio (com bom teor de álcool e/ou açúcar). Para pratos orientais, como comida Tailandesa, picantes e aromáticos, recomenda-se brancos perfumados e macios, como um Gewürztraminer da Alsácia ou um Sauvignon Blanc da Nova Zelândia.

O teor de álcool na bebida, que se exprime em sua fluidez, sugere untuosidade ou cremosidade no alimento. Para uma entrada de sopa cremosa, que tal um Jerez seco?

Pratos gordurosos são enfrentados com vinhos acídulos ou efervescentes. É o caso de um Vinho Verde (da região do Minho - norte de Portugal), que permite toda a untuosidade de uma receita típica de bacalhau. A doçura no alimento pede igualmente vinhos de boa acidez ou efervescentes. Nesta linha, um espumante ameniza a doçura do bolo da noiva.

Alimentos com sensações amargosas - alcachofra, chocolate - são noivados difíceis. Estas personalidades fortes tendem a dominar a relação e, portanto, para não "arrumar briga", o ideal é conceder um vinho macio e não tânico. Uma maneira de formar casais felizes seria usar um nobre vinho do Porto, do tipo LBV, para galantear uma sobremesa de chocolate e um branco macio, mas sem muita personalidade, para fazer as vontades da alcachofra.

Algumas dicas são importantes: lembre-se de observar todos os ingredientes do prato (molhos, acompanhamentos etc); com alguns alimentos simplesmente há casório com vinho, ou as bodas são atribuladas podendo resultar em litígio, como uvas, frutas cítricas, vinagre, picles, aspargos, sorvete; a tradição é uma grande guia - combine pratos da região com vinhos da região, são clássicos que os séculos se encarregaram de aperfeiçoar.

Algumas Harmonizações Clássicas de Vinhos e Queijos
por Guilherme Corrêa
- Camembert - tintos pouco tânicos como os crus de Beaujolais
- Emmental - tintos de média estrutura, Pinot Noir
- Fondue (queijo) - brancos estruturados e com boa acidez
- Gruyère - tintos de média estrutura, Pinot Noir
- Queijo da Serra da Estrela - Porto Vintage
- Queijo de cabra fresco - Sancerre ou outros Sauvignon Blancs
- Queijos curados - Amarone della Valpolicella
- Roquefort - brancos de sobremesa ou tintos fortificados

Costuma-se dizer que o Champagne e outros vinhos espumantes são curingas que vão bem com tudo, é verdade? Neste contexto, onde o vinho seria o Don Juan das bebidas, o Champagne seria o próprio deus Príapo, fruto da união de Afrodite com Dionísio. Por ser um "branco com alma tinta", com boa estrutura e ótima acidez, o nobre espumante se liga com desenvoltura a uma gama abrangente de receitas. Mas para ter toda uma refeição escoltada por perlage, o indicado é utilizar mais de um tipo de espumante. Que tal um blanc de blanc para a entrada, um brut para o primeiro prato, um rosé para o prato de resistência e um demisec para o doce?

Lista de sugestões são cansativas e poderiam se estender à exaustão. É impossível limitar-se a fórmulas em uma realidade tão complexa e de caráter profundamente pessoal. Portanto, vale uma dica importante: crie suas próprias harmonizações, faça experiências, afinal, os clássicos começaram assim. E a dica fundamental: jamais beba o que você não gosta ou coma o que você não quer só para fazer a combinação ideal. Antes de lembrar as regras, lembre-se do motivo delas.

#Q#

Como montar um "queijos e vinhos"

Assim como nos vinhos, a temperatura dos queijos é importante, sendo que o ideal é servi-los a cerca de 18oC. Os de massa mole devem ser retirados da geladeira com meia hora de antecedência, enquanto os duros, com no mínimo duas horas.

Devem ser levados à mesa sem as embalagens e sobre madeira ou porcelana, proporcionais a seus tamanhos e, de preferência, separados. Os que tiverem casca devem ser servidos com ela. Não os corte demais, em pedaços miúdos. Deixe os pequenos inteiros e, no caso dos exemplares de tamanho médio, insinue o corte, ou seja, deixe a primeira fatia cortada.

Cada fatia deve conter todas as partes da peça em cada porção, da casca (as comestíveis) ao centro. Cada queijo deve estar acompanhado de sua própria faca e, se possível, ser identificado com um rótulo ou bandeirinha. Evite os fortes demais ou apimentados, pois embotam o paladar - uma opção é reservá-los para o final do evento. Quanto à variedade, procure escolher ao menos cinco tipos, variando a matéria-prima (leite de vaca, cabra, ovelha e búfala), a consistência (dura, branda e mole) e o estágio de maturação (frescos, meia-cura e curados).

Quanto aos vinhos, uma sugestão é usar ao menos quatro tipos: um branco seco - entre eles um Sauvignon Blanc seria uma boa pedida -, um tinto leve, como um Pinot Noir, um tinto mais encorpado, como um Shiraz australiano ou um bom Bordeaux, e um doce, como um Porto, para o encerramento.

No que diz respeito à compatibilização, serei franco e pouco ortodoxo. Numa recepção de "queijos e vinhos" é raro que os comensais degustem ordenadamente cada queijo com o vinho mais adequado a ele. Para amenizar os efeitos de misturas sem critério, a dica é evitar extremos, como servir queijos muito condimentados e vinhos ultra-encorpados ou doces. Reserve-os para o final.

Os pães são fundamentais. Eles consolidam a união entre vinho e queijo. Sirva uma boa variedade: italiano, alemão, francês, de centeio, com nozes. Evite apenas os muito condimentados, que comprometem o paladar. NUNCA SIRVA UVAS ou frutas muito ácidas, como abacaxi e morango, não as use nem mesmo para decorar, pois podem ser consumidas. Frutas carnudas são bem-vindas, como pêra, pêssego e maçã vermelha.

Para encerrar em grande estilo, que tal um Sauternes (branco doce) acompanhado do foie gras chaud - fígado de ganso ou pato servido quente? Uma opção não tão sofisticada seria um gorgonzola inteiro, escavado no meio e embebido em Porto Ruby, acompanhado pelo mesmo Ruby ou por um Vintage jovem.

Acompanhe tudo com frutas secas ou cristalizadas, nozes e amêndoas. Aos chocólatras, a sugestão de encerramento é um suflê quente de chocolate, que pode ser acompanhado de generosa quantidade de calda. Este vai bem com um Porto LBV, um bom conhaque ou um simples café expresso.

Algumas Harmonizações Clássicas
por Guilherme Corrêa
PEIXES

- Arenque - Sancerre ou Riesling Kabinett
- Atum mal passado com molho agridoce - Riesling halbtrocken ou Pinot Noir do Novo Mundo
- Bacalhau (cremoso) - Encruzado ou outro branco com carvalho
- Bacalhau (em úmido) - tinto jovem pouco tânico
- Bouillabaisse - rosés da Côtes-de-Provence, de Tavel ou Lirac
- Caviar - Champagne
- Ceviche - Sauvignon Blanc do Chile ou da Nova Zelândia
- Lagosta - Bordeaux branco
- Lagostins - branco jovem sem carvalho ou espumante seco
- Ostras ao natural - Muscadet ou Chablis da categoria Villages
- Ovas de salmão - espumante rosé seco
- Paella (de mariscos) - rosé de Navarra ou da Catalunha
- Paella (valenciana) - tintos macios do Levante espanhol
- Plateau de frutos do mar - branco jovem, fresco e com leve toque mineral
- Salmão defumado - Chablis ou espumante seco
- Salmão fresco - Sauvignon Blanc
- Sardinha na brasa - Vinho Verde
- Spaghetti con le Vongole - Verdicchio dei Castelli di Jesi
- Truta - Riesling da Alsácia, Chardonnay de média estrutura
- Vieiras gratinadas - Chardonnay levemente barricado

CARNES E AVES

- Faisão - grandes tintos da Borgonha maduros
- Codornas assadas - Pinot Noir
- Coq au Vin - Tinto jovem da Borgonha ou cru de Beaujolais
- Boeuf Bourguignon - tintos de média estrutura da Borgonha
- Cabrito assado - Taurasi
- Carpaccio - Dolcetto
- Churrasco - Malbec argentino
- Filet Mignon - tintos estruturados
- Cordeiro (costeletas) - Tintos do sul da França
- Cordeiro (lombinho com molho agridoce) - Merlot do Novo Mundo
- Cordeiro (paleta ou pernil assado) - Bordeaux estruturado e equivalentes do Novo Mundo
- Coelho com mostarda - tinto jovem do Loire
- Costela assada - Cabernet Sauvignon estruturado ou Tannat uruguaio
- Couscous com Cordeiro - Syrah
- Fondue (carne) - tintos frutados e macios como um Syrah do Novo Mundo
- Costata alla Fiorentina - Chianti Classico
- Daube Provençale - Coteaux d'Aix en Provence tinto
- Javali (assado) - Châteauneuf-du-Pape
- Javali (estufado) - Brunello di Montalcino
- Lebre (em civet) - Corton ou outros grandes tintos da Borgonha
- Lebre (em salmì) - Barolo
- Leitão assado - Espumante ou tinto da Bairrada
- Pato (assado) - grandes tintos de Pinot Noir
- Pato (confit) - Cahors ou Malbec argentino
- Pato (magret) - tinto do sul da França, Syrah do Novo Mundo
- Pato com laranja - Gewurztraminer
- Porco (assado) - Tempranillo de média estrutura
- Porco (costelinhas glaçadas) - Carménère frutado e macio
- Presunto cru San Daniele - Collio Tocai Friulano
- Rabada - Ribera del Duero Reserva
- Rãs - Chardonnay sem carvalho ou Riesling Ris de veau - Pouilly-fumé ou tinto de média estrutura da Borgonha
- Vitela (blanquette) - Pinot Blanc
- Vitela (costeletas) - Bordeaux de média estrutura

DOCES
- Chocolate (amargo) - Banyuls Rancio ou Porto Tawny
- Chocolate e café - Rasteau Doré ou Porto LBV
- Chocolate e frutas vermelhas - Banyuls Rimage ou Porto Ruby
- Chocolate e laranja - Rivesaltes Ambré ou Porto 20 anos
- Chocolate e praliné - Maury ou Porto Colheita
- Crème brûlée - vinhos brancos botrytisados
- Morango com creme - Champagne demi-sec
- Panettone ou Pandoro - Moscato d'Asti
- Sobremesas de frutas assadas com mel - vinhos brancos botrytisados
OUTRAS
- Amêndoas torradas - Jerez fino
- Aspargos - Moscato ou Pinot Blanc da Alsácia, Sauvignon Blanc do Chile
- Azeitonas - Jerez manzanilla
- Cassoulet - Madiran
- Feijoada - Bairrada tinto
- Dobradinha - vinhos jovens do Douro
- Choucroute garnie - Riesling ou Sylvaner da Alsácia
- Cozinha chinesa - Viognier ou Riesling halbtrocken
- Cozinha japonesa (crua) - Sauvignon Blanc e espumantes secos
- Cozinha tailandesa - Gewurztraminer da Alsácia, brancos do Loire
- Curries - Gewurztraminer ou Viognier do Novo Mundo
- Empanadas - Syrah argentino
- Escargots - Mâcon ou chardonnays frescos e sem carvalho
- Foie Gras (escalope fresco) - Borgonha branco
- Foie Gras (terrine) - Pinot Gris e Gewurztraminer da Alsácia
- Frutas secas - Porto Tawny
- Funghi - tintos envelhecidos de Sangiovese
- Maccheroni alla Chitarra con Ragù - Montepulciano d'Abruzzo
- Risotto (com trufas) - Barbaresco maduro
- Risotto (milanesa) - Collio Pinot Bianco
- Saladas - Sauvignon Blanc de média estrutura
- Terrines de campagne - Crus de Beaujolais ou tinto jovem do sul da França
- Trenette al pesto - Sauvignon Blanc ou outro branco rico olfativamente
- Trufas brancas - grandes tintos de Nebbiolo