No século XVIII, a autorização do príncipe-bispo para a colheita das uvas demorou a chegar em um mosteiro alemão. Foi o início do Late Harvest
Euclides Penedo Borges Publicado em 17/12/2007, às 14h41 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44
Na colheita tardia, as uvas murcham nos cachos, concentrando açúcar |
Mesmo sendo importante cultural e historicamente, a cidade alemã de Fulda, centro comercial com sessenta mil habitantes, é pouco ou nada conhecida entre nós. Marco do catolicismo alemão, sua catedral barroca é lugar de visitação, pois ali se encontra o túmulo de São Bonifácio, o apóstolo da antiga Germânia.
Em sua época áurea, Fulda era governada pelos chamados príncipes-bispos, ao mesmo tempo chefes espirituais e soberanos seculares, muito poderosos em sua época (1752 – 1802). Os viticultores do principado, por exemplo, eram obrigados a obter a autorização deles antes de colher as uvas em cada safra. Na época da colheita, mensageiros a cavalo chegavam à corte a toda hora, apressados, vindos dos quatro cantos, para obter a permissão e voltar a tempo de encontrar as uvas na condição ideal de maturidade.
O atraso do mensageiro
Os monges da colina de São João (Kloster Johannisberg), na Renânia, estavam entre os que se submetiam ao soberano de Fulda, distante 150 quilômetros do mosteiro. No outono de 1775, quando o príncipe-bispo Henrique von Bibra era o regente, o cavaleiro Babbert foi enviado de Johannisberg para obter a autorização. Possivelmente raptado ou assaltado em meio ao longo caminho, o mensageiro atrasou-se demais. Quando a autorização chegou, finalmente, as uvas Riesling supermaduras começavam a murchar nos cachos. Não tendo outro jeito, os monges colheram e vinificaram as uvas passificadas, desidratadas, prenhes de açúcar, para ver no que dava. O resultado foi encorajador. Era o início do processo de vinificação com uvas de colheita tardia.
Um vinho de colheita tardia
Deve-se agradecer ao acaso a documentação do fato. O favor nos foi feito por intermédio de Johan Engert, administrador do mosteiro de Johannisberg, ao anotar à margem dos anais conventuais, em 1776: “Nunca havia trazido à minha boca um vinho como esse”. Ele referia-se ao estranho e doce vinho da Riesling, colhida tardiamente no ano anterior. A partir de então, o processo passou a ser aperfeiçoado e a ser usado regularmente. Sua fama se estendeu primeiro pelo Rheingau, com o nome de Spätlese, em seguida para o Mosel e outras regiões do território germânico. No século dezenove chegou à Alsácia, na França, onde foi batizado de Vendange Tardive; para a Itália chegou como Vendimmia Tardiva; para a Espanha, Vendimia ou Cosecha Tardia, e assim sucessivamente. Mais tarde, no Novo Mundo, adotou-se a expressão Late Harvest.
Na Argentina, Tardío, simplesmente.
Nos dias de hoje
Hoje pode-se dizer que a presença dos vinhos de sobremesa de colheita tardia, sucedâneos dos Rieslings de Johannisberg, é universal.
Podemos citar desde os Tokaji Furmint Late Harvest, da Hungria, até os Navarra Vendimia Tardia, da Espanha. Do Gewürztraminer Vendange Tardive, da Alsácia, ao Moscadello Vendimmia Tardiva, da Toscana.
No Novo Mundo, os Sémillon Late Harvest, do Chile; os Moscatéis Late Harvest, do nordeste brasileiro, o Riesling Late Harvest, da África do Sul, e assim por diante, para ficarmos em poucos exemplos.
O antigo mosteiro de Johannisberg, no Rheingau, o berço dos vinhos de colheita tardia, é atualmente um palácio, o Schlosso Johannisberg, que domina, do alto da colina, os vinhedos que descem para o Rio Reno, entre Geisenheim e Winkel.
Pertence desde 1816 aos herdeiros do Príncipe Metternich, que o ganhou de presente do imperador da Áustria, em agradecimento aos seus serviços. A estátua erguida em homenagem ao cavaleiro Babbert, o mensageiro tardio, encontra-se em seu interior. Infelizmente não é fácil entrar lá para conferir o rastro da história.