Por que apreciamos música? Por que bebemos vinho? Certamente pelas suas belezas
Ricardo Peruchi Publicado em 10/08/2009, às 07h22 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h46
Poderíamos invocar todos os benefícios já bem sabidos para a saúde em defesa do álcool, quando consumido moderadamente. No entanto, como não me parece que este seja o motivo principal porque o ingerimos - não como remédio -, então, vamos apelar para um argumento, por assim dizer, antropológico.
A razão de o álcool existir nos inspirará melhor para extirpar a culpa, se porventura ela existir, ou resistir a seus efeitos. Na pré-história, sempre em bandos, nossos ancestrais deixaram de ser nômades com a descoberta da agriculessentura. A água, consideradas as péssimas ou inexistentes condições de higiene da época, era facilmente contaminada.
Os primeiros gêneros alimentícios cultivados foram os cereais. Acidentalmente, alguém os derramou sobre algum pote que armazenava o líquido necessário à vida e houve fermentação! Ou seja, aquele sujeito pouco refinado da préhistória bebia cerveja. Tudo bem! A sobrevivência da espécie talvez não seja o melhor argumento para a defesa do álcool.
Então, já que a vitória da cultura sobre a natureza nos tirou das cavernas e nos sentou à mesa, com um intelecto mais ou menos razoável, dependendo do sujeito, e alguma capacidade de escolha, que tal tributarmos ao prazer a maior defesa possível do álcool? O jornalista inglês Tom Standage, em seu livro "História do Mundo em 6 Copos" (Jorge Zahar, R$ 35, em média), defende a importância civilizatória do vinho.
"A próspera cultura que se desenvolveu dentro das cidades-estados na Grécia antiga no primeiro milênio a.C. gerou avanços em filosofia, política, ciência e literatura que ainda servem de base para o pensamento ocidental moderno.
O vinho foi a fonte essencial dessa civilização mediterrânea e a base de um vasto comércio marítimo que ajudou a espalhar as ideias dos gregos por toda parte. A política, a poesia e a filosofia eram discutidas em festas formais com bebidas - os simpósios (symposia) -, nas quais os participantes partilhavam uma grande taça de vinho diluído.
O costume de beber vinho prosseguiu com os romanos, cuja sociedade hierarquizada tinha uma estrutura que se refletia numa ordenação social de vinhos e estilos de vinhos detalhadamente regulada." Está aí defendido por seu papel social o rito de beber. Em tempos politicamente corretos, prazeres como comer e beber estão sofrendo uma patrulha ideológica insuportável.
Comer engorda. Calorias, calorias, calorias... Colesterol... Etc. Beber embriaga. Uma taça de vinho é suficiente para uma multa. Raios! Onde está o prazer? Que espaço sobra para ele? Por isso ouvimos música, por isso bebemos vinho!
A fermentação e a civilização são inseparáveis", John Ciardi (1916-1986), poeta americano
Montesquieu e o bom e o belo
Brincadeiras à parte, deixemos alguém bem mais sabido falar sobre o prazer. Montesquieu foi convidado por D'Alembert e Diderot a colaborar com a Encyclopédie, escrevendo sobre a Democracia e o Despotismo.
Recusou-se e pediu para redigir uma reflexão sobre o gosto, contrariando a máxima de que gosto não se discute Com sua morte, deixou o texto inacabado, o que não impediu que o verbete fosse publicado no tomo VII da grande obra do Iluminismo, em 1757. No Brasil, a Iluminuras o publicou em 2005 com tradução e pósfacio impecáveis de Teixeira Coelho.
#Q#O filósofo inicialmente define o gosto, afirmando que "nada mais é senão a vantagem de descobrir com sutileza e presteza a medida do prazer que cada coisa deve dar às pessoas". Toda questão sobre gosto, portanto, é, em última instância, sobre o prazer. Esse prazer é apenas físico ou há algo no intelecto que se relaciona a ele? próprio Montesquieu responde, quando se atém mais detalhadamente a definir seu tema central.
"A definição mais geral do gosto, sem considerar que se trata de um bom gosto ou de um mau gosto, um gosto adequado ou não, é que gosto é aquilo que nos liga a uma coisa por meio do sentimento, o que não impede que ele possa aplicar-se às coisas do intelecto, cujo conhecimento dá tanto prazer à alma que essa é mesma a única felicidade que certos filósofos conseguem compreender."
Para Montesquieu, o bom pertence à esfera do útil, enquanto o belo se relaciona com aquilo que não tem uma real utilidade. O prazer pode advir das duas coisas. O vinho, nesse sentido, é bom e belo, ao mesmo tempo. Certamente o prazer que obtemos dele tanto está associado à sua utilidade (seus benefícios ao corpo) quanto à sua beleza (o deleite da alma).
Mas é irresistível afirmar que o prazer advindo do vinho está muito mais associado à sua beleza (o gozo dos sentidos) que à sua utilidade. Ouvir uma música ou degustar uma bebida são experiências não apenas sinestésicas, mas emocionais. Passeiam nas dimensões espaçotempo e se tornam memória, esta constante reinvenção que fazemos, ao lembrar e esquecer, que ninguém sabe do que é feita e muito menos como funciona.
Há quem beba para esquecer. Mas, os verdadeiros apreciadores, bebem para lembrar. Armazenar essas experiências e discuti-las é conhecimento. Por isso nos dedicamos não apenas a beber, mas a estudar e até mesmo a escrever sobre os vinhos. Afinal, o conhecimento é o único antídoto contra a ignorância. E o gosto, como exercício pleno do prazer, é a maior sacanagem contra quem adora proibir tudo porque é incapaz de entender nada. Um brinde ao Iluminismo!