"O amor é a asa veloz que Deus deu à alma voar até o céu" Michelangelo Buonarroti
Fábio Farah Publicado em 23/07/2007, às 16h05 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44
A criação do homem, no teto da capela Sistina, uma das obras-primas de Michelangelo |
Impiedoso, severo, vingativo. Ninguém ousaria atribuir essas características a Jesus Cristo, exceto uma pessoa. O genial e contraditório Michelangelo. Ele descendia de uma família aristocrática, mas, após semanas exaustivas de trabalho, em suas roupas sujas e rotas e com um terrível fedor, poderia facilmente ser confundido com um indigente. Era profundamente religioso, mas desdenhava da autoridade do Bispo de Roma. Certa vez, contrariado, fugiu do Vaticano à noite, cavalgando rumo a Florença. Retornou à Santa Sé após a insistência de Júlio II. Como um autêntico renascentista, dedicouse a diversas artes. Aventurou-se pela poesia e escreveu Coletânea de Rimas, porém sua maior inspiração não estava na pena de escritor, mas em blocos de mármore. "Eu vi um anjo no mármore e esculpi até libertá-lo", teria afirmado.
Baco esculpido por Michelangelo |
Quando o Papa quis transformá-lo em um pintor e lhe encomendou a Capela Sistina, Michelangelo extraiu dos pincéis uma das mais belas poesias que já contemplei. Com um livro de arte renascentista, um "Brunello de Montalcino Castelgiocondo 2001", duas taças e uma pergunta, aproximei-me do túmulo de Michelangelo, na basílica de Santa Croce, após um encontro com Dante Alighieri momentos antes ("O Paraíso de Dante", publicado na edição 21 de ADEGA).
Era noite e o interior da igreja estava escuro. Com meu candeeiro iluminei o esquife de Michelangelo, criado por Giorgio Vasari. Três lindas mulheres esculpidas em mármore, sobre a urna funerária, representavam a Arquitetura, a Escultura e a Pintura. Cabisbaixas, ostentavam uma expressão triste no rosto. A morte do genial artista deixou as Artes desamparadas. E isso era mais do que uma simples metáfora. Senteime no chão e abri o livro no Juízo Final. Desarrolhei a garrafa e servi o vinho. Rodei a taça com minha mão direita e a elevei para cima, como se estivesse saudando Michelangelo. O gesto era proposital e imitava uma de suas obras: a escultura de Baco, encomendada pelo banqueiro romano Jacopo Galli, em 1497. Apreciei os aromas complexos do vinho com os olhos na expressão impiedosa de Jesus Cristo. Logo abaixo do Filho de Deus estava São Bartolomeu, segurando a própria pele com a mão esquerda. Mesmo no Paraíso, parecia angustiado. Fitei o busto de Michelangelo. Eu sabia que o Santo - esfolado vivo e, então decapitado - era um auto-retrato do artista. Senti no paladar a estrutura e a maciez do vinho. Seus taninos pareciam contraditórios e instigantes como Michelangelo.
#Q#Túmulo de Michelangelo |
Risos. A Arquitetura, a Escultura e a Pintura não eram mais pedra triste. Deixaram o túmulo e estavam ao meu lado. Seus olhos brilhavam, contemplavam algo que eu não conseguia ver... Até que um homem com as roupas sujas de tinta e um odor fétido surgiu diante de nós. "Tanto tempo adormecido... o que você tem nessa taça?", questionoume. "Vinho", respondi, servindo-o na outra taça. "Mas que porcaria é essa?", cuspiu no chão. Fiquei assustado. Eu sabia que Michelangelo passara dias consumindo apenas pão e vinho. E que naquela época os vinhos eram transportados em recipientes de chumbo. Provavelmente o artista havia sido envenenado pela bebida. Talvez sua reação fosse instintiva, sem nenhuma relação com a qualidade, excepcional, daquele Brunello.