"O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante..." Rubem Alves
Fábio Farah Publicado em 17/12/2007, às 15h12 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45
Enquanto pensava nos melhores versos que já degustei, chegamos em um maze de cercas vivas, ao lado de um labirinto desenhado com grama. “No maze, as pessoas se perdem. A idéia do labirinto é o reencontro consigo mesmo. Ou a chegada ao Paraíso”, explicou-me. “Tenho a mesma sensação após beber a taça de um grande vinho”, disse-lhe. No “jardim inglês”, a melodia de uma pequena fonte cortejava uma alquimia de cores e perfumes. Um toque de violeta, Nebbiolo e Touriga Nacional. Os ingleses, reconhecidos pelo gosto refinado, cuidam dos jardins com o mesmo esmero com que cultivam as garrafas nas adegas. Alguns passos depois, estávamos no “jardim californiano”, uma profusão de cores desordenadas. “Eles plantam vários tipos de flores e esperam para ver as que se sobressaem. Por este motivo, a nativa de lá se dá melhor”, explicoume Doctor Garden. Era uma lição sobre terroir, a chave do sucesso de jardineiros e enólogos. Imaginei o português Luis Pato naquele cenário. Certa vez, em uma entrevista, ele me disse: “As castas autóctones não estão na região por acaso. Quando você leva estas castas para outra região, elas não são mais a mesma coisa”. Talvez a papoula dourada se tornasse sua metáfora floral na defesa das variedades regionais.
Certamente os enólogos californianos não compartilham a postura polêmica de Pato. Caso contrário, não teriam matéria-prima para produzir vinhos. Mas precisaram “conversar” com o terroir e com diversas variedades na busca dos pares ideais. Pares ideais... “Ao olhar para um jardim, as pessoas assistem a uma orgia da natureza. As flores são os órgãos sexuais das plantas”, observou Walter. Emprestando a metáfora, o vinho seria a relação sexual da uva com o terroir? E o enólogojardineiro? Em vez de mero voyeur, ele seria um importante ator de um ménage à trois, mas compartilharia o prazer com os amantes da bebida, em uma misteriosa orgia espiritual. O simbolismo sexual me fez divagar sobre a deusa egípcia Ísis, que teria engravidado de uma uva. Tentava imaginar o fruto dessa relação até ser surpreendido pelo “jardim alemão” e a métrica de suas flores. Aromas delicados, taças etéreas de Riesling derramadas no ar. Mais alguns metros e outra uva germânica, a Gewürztraminer, insinuou-se entre as roseiras. “É uma imitação dos jardins de nossas avós”, revelou Walter.
Infelizmente o “jardim Grand Cru Classé” (refiro-me ao francês), ainda não estava pronto para ser degustado. Mas não importava muito, no fim da peregrinação floral, eu já havia percorrido rótulos inesquecíveis e lembranças memoráveis. Por sugestão de Walter, li um texto de Rubem Alves, impresso em madeira, intitulado Jardim. Voltei ao labirinto e percorri, descalço, o caminho. Talvez em busca de iluminação, ou de um encontro intimista com a natureza. Chegando ao centro, porta do Paraíso para os cristãos medievais, um trecho de Jardim sobressaltou-se em minha mente: “A natureza revela (...) a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!”. Havia muito em comum entre jardinagem e enologia. Passear por um jardim repleto de flores, ou sorver a taça de um grande vinho, é mergulhar no íntimo do universo. E degustar a fonte da vida.