O jardineiro e o vinho

"O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante..." Rubem Alves

Fábio Farah Publicado em 17/12/2007, às 15h12 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45

Acácia, rosa, violeta, tília, narciso, jasmim... Passear por um jardim repleto de flores é colher lembranças de vinhos. Se a alma da bebida está em seus aromas, como afirmaria Jean-Baptiste Grenouille (protagonista de O Perfume, de Patrick Süskind), um passeio por um jardim florido é, para um enófilo, mais do que percorrer reminiscências... É mergulhar no íntimo do universo e sentir o que ele tem de mais sublime. Há algumas semanas, estive no Amantikir Garden, em Campos do Jordão. Em uma área de 51 mil metros quadrados (de um total de 610 mil), o engenheiro Walter Vasconcellos, conhecido como Doctor Garden, criou dezessete jardins, inspirados em diversos países. “Há muito em comum entre jardinagem e enologia”, afirmou, no início do passeio, diante de arranjos de capim recém-irrigados, exalando Sauvignon Blanc. “As flores dizem quando estão felizes ou tristes. A arte da jardinagem é interpretar essa linguagem e fazer poesia com cores e aromas”, prosseguiu Walter. A comparação trouxe à minha memória uma entrevista com o enólogo argentino Ernesto Catena: “O enólogo é como um poeta, mas, em vez de montar versos com palavras, utiliza uvas”.

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Enquanto pensava nos melhores versos que já degustei, chegamos em um maze de cercas vivas, ao lado de um labirinto desenhado com grama. “No maze, as pessoas se perdem. A idéia do labirinto é o reencontro consigo mesmo. Ou a chegada ao Paraíso”, explicou-me. “Tenho a mesma sensação após beber a taça de um grande vinho”, disse-lhe. No “jardim inglês”, a melodia de uma pequena fonte cortejava uma alquimia de cores e perfumes. Um toque de violeta, Nebbiolo e Touriga Nacional. Os ingleses, reconhecidos pelo gosto refinado, cuidam dos jardins com o mesmo esmero com que cultivam as garrafas nas adegas. Alguns passos depois, estávamos no “jardim californiano”, uma profusão de cores desordenadas. “Eles plantam vários tipos de flores e esperam para ver as que se sobressaem. Por este motivo, a nativa de lá se dá melhor”, explicoume Doctor Garden. Era uma lição sobre terroir, a chave do sucesso de jardineiros e enólogos. Imaginei o português Luis Pato naquele cenário. Certa vez, em uma entrevista, ele me disse: “As castas autóctones não estão na região por acaso. Quando você leva estas castas para outra região, elas não são mais a mesma coisa”. Talvez a papoula dourada se tornasse sua metáfora floral na defesa das variedades regionais.

Certamente os enólogos californianos não compartilham a postura polêmica de Pato. Caso contrário, não teriam matéria-prima para produzir vinhos. Mas precisaram “conversar” com o terroir e com diversas variedades na busca dos pares ideais. Pares ideais... “Ao olhar para um jardim, as pessoas assistem a uma orgia da natureza. As flores são os órgãos sexuais das plantas”, observou Walter. Emprestando a metáfora, o vinho seria a relação sexual da uva com o terroir? E o enólogojardineiro? Em vez de mero voyeur, ele seria um importante ator de um ménage à trois, mas compartilharia o prazer com os amantes da bebida, em uma misteriosa orgia espiritual. O simbolismo sexual me fez divagar sobre a deusa egípcia Ísis, que teria engravidado de uma uva. Tentava imaginar o fruto dessa relação até ser surpreendido pelo “jardim alemão” e a métrica de suas flores. Aromas delicados, taças etéreas de Riesling derramadas no ar. Mais alguns metros e outra uva germânica, a Gewürztraminer, insinuou-se entre as roseiras. “É uma imitação dos jardins de nossas avós”, revelou Walter.

Infelizmente o “jardim Grand Cru Classé” (refiro-me ao francês), ainda não estava pronto para ser degustado. Mas não importava muito, no fim da peregrinação floral, eu já havia percorrido rótulos inesquecíveis e lembranças memoráveis. Por sugestão de Walter, li um texto de Rubem Alves, impresso em madeira, intitulado Jardim. Voltei ao labirinto e percorri, descalço, o caminho. Talvez em busca de iluminação, ou de um encontro intimista com a natureza. Chegando ao centro, porta do Paraíso para os cristãos medievais, um trecho de Jardim sobressaltou-se em minha mente: “A natureza revela (...) a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!”. Havia muito em comum entre jardinagem e enologia. Passear por um jardim repleto de flores, ou sorver a taça de um grande vinho, é mergulhar no íntimo do universo. E degustar a fonte da vida.