O famoso "gosto do terroir" nunca foi tão venerado. Hoje, os vinhos de vinhedos únicos são uma tendência mundial e servem para retratar a verdadeira tipicidade de um vinho. ADEGA traz exemplos de Single Vineyards ao redor do mundo
Luiz Gastão Bolonhez Publicado em 23/09/2010, às 11h46 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h47
A cada dia os vinhos de vinhedo único, ou Single Vineyard, ganham mais adeptos em todo mundo. O conceito de terroir já é difundido quando o assunto é a expressão máxima das características do vinhedo, das castas e do clima. Os Single Vineyards são amplamente difundidos no Velho Mundo (na Europa), mas existe um movimento muito interessante em nosso continente, especialmente na América do Sul, com destaque para alguns enólogos e empreendedores no Chile e Argentina. No Brasil, o conceito está começando e, em breve, teremos muitos Single Vineyards produzidos por aqui.
Antes de começar, contudo, é importante gastar um pouco de tempo para explicar os termos. Em primeiro lugar, é preciso definir o que é terroir. Terroir é o termo que descreve a interação do solo, clima, topografia e a variedade da uva, em um local específico. A palavra é derivada do termo francês "terre", que significa terra.
Sendo assim, existem varias perspectivas que podemos abordar para afirmar que um vinho é Single Vineyard. Porém, aqui vamos falar de pequenas e médias parcelas de terra que produzem vinhos singulares. E também do trabalho de investigação que alguns enólogos vêm realizando mundo afora com o intuito de desenvolver, a partir de parcelas únicas de vinhas, vinhos igualmente únicos.
Se nos aprofundarmos no tema de vinhos Single Vineyard temos algumas terminologias como Vineyard, Crus, Clos, Viña, Vigna,Vigneto, Quinta etc. A conclusão é que iremos perceber que, no fundo, estamos falando da mesma coisa, com pequenas nuances que as diferem (vide glossário no fim da matéria). Não há dúvida de que as menores e mais charmosas parcelas de vinhedos únicos do mundo estão na Borgonha e na Alsácia, na França, e no Piemonte, na Itália. A Alemanha também, com destaque para o Mosel, o Nahe e o Rheingau (Reno), apresenta parcelas muito especiais de vinhas, sempre nas margens desses três importantes rios. Portugal, mais especificamente nas margens do Douro e seus afluentes, tem um grande número de pequenas áreas com vinhas velhas, que produzem vinhos fascinantes, sejam Vinhos do Porto e, mais recentemente, tintos de mesa. Sob certo aspecto, temos vinhos de vinhedo único em todos os países e regiões do mundo, mas trataremos das mais destacadas regiões e projetos que fazem desse conceito uma tendência mundial.
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A tradição do Single Vineyard é antiga na Borgonha, que sempre teve seus vinhedos murados. No Piemonte, esse conceito também é antigo, o que faz com que se tenha inúmeros Barolos e Barbarescos, por exemplo |
Borgonha é uma das regiões que iniciou o conceito Single Vineyard |
Côte d'Or, Borgonha
Minúsculas parcelas, características únicas
Não há outro local no planeta com tanto charme e unicidade de suas vinhas quanto a Côte d'Or, na Borgonha, ao sudoeste de Paris. São poucos quilômetros que separam Fixin (ao norte) até Santenay (ao sul), mas do ponto de vista de diversidade de solos e microclimas, temos um enorme número de Crus que produzem desde tintos com força e pungência, passando por tintos mais leves e delicados e, por último, inúmeros brancos de alta gama.
Somente duas castas fazem dessa região o terroir mais único dentre todos. De um lado a Pinot Noir para os tintos e, de outro, a Chardonnay para os brancos. A Cote d'Or é a soma da Côte de Nuits e da Côte de Beaune. As parcelas (Crus ou Clos) da Borgonha são tão diminutas que temos, por exemplo, o total da área do Grand Cru de Gevrey-Chambertin, o Ruchottes-Chambertin com somente 3,3 hectares; de Morey-St-Denis , o Clos des Lambrays com 8,8 hectares; e de Vosne-Romanée , o mítico Romanée-Conti com apenas 1,75 hectare. O que mais impressiona é a diferença entre o terroir do próprio Romanée-Conti se comparado com seu vizinho, o Cru Romanée St-Vivant que, apesar de estarem a pouquíssimos metros um do outro, produzem, em uma mesma safra, vinhos muito distintos. Essa diversidade de terroir é, sem dúvida, o maior enigma dos vinhos dessa região.
Piemonte, norte da Itália
Barolos e Barbarescos de inúmeros vinhedos únicos
Ao lado da Borgonha, é no Piemonte, mais especificamente nos arredores de duas pequenas cidades, Barolo e Barbaresco, que temos um dos mais expressivos números de vinhos de vinhedo único no planeta. É incrível apreciar o mapa dessas duas pequenas regiões produtoras de vinhos e notar a tamanha diversidade entre vinhos produzidos pela excepcional casta Nebbiolo. Temos também excelentes e deliciosos vinhos produzidos a partir de Barbera, Freisa e Dolcetto, além de brancos muito interessantes, mas são os vinhos à base da enigmática Nebbiolo que dão o que falar.
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Todos os Barolos e Barbarescos são produzidos obrigatoriamente a partir de 100% dessa nobre casta. Os Barolos -os vinhos mais ricos e profundos produzidos na Itália - são divididos em quatro grandes áreas. Os vinhos de Barolo propriamente ditos, onde há inúmeros vinhedos únicos, tais como Brunate e Cannubi por exemplo; de Castiglione Falleto, com os incríveis Bric Del Fiasc, Monprivato, Rocche e Villero etc; de Monforte d'Alba, com os fascinantes Bussia, Gran Bussia, Santo Stefano di Perno e Ginestra; de La Morra, com os presentes Rocche, Marcenasco e Brunate (vinha que tem parcelas tanto em La Morra quanto em Barolo); e de Serralunga d'Alba, com os expressivos Lazzarito e Ornato.
Por último, os Barbarescos têm como destaque os sublimes vinhedos únicos de Rabajá, Asili e Il Bricco. Coincidentemente, são esses Single Vineyards de Barolo e Barbaresco, ao lado dos grandes vinhos da Borgonha, os mais elegantes, complexos e diferenciados vinhos do planeta.
Portugal, Douro
Tintos de Mesa e Vinhos do Porto
Não há como negar que uma das regiões vitivinícolas mais lindas do mundo é o Douro, no norte de Portugal. As uvas plantadas nas encostas do rio Douro e seus afluentes eram, até o meio da década de 1990, dedicadas, quase na sua maioria, à produção de Vinhos do Porto. Nessa época, os portugueses perceberam que era possível continuar mantendo foco no vinho fortificado mais famoso do mundo, mas também se dedicar a tintos de mesa que pudessem estar entre os melhores do mundo. Em poucos anos (menos de 15), os resultados já estão comprovados.
Uma verdadeira revolução aconteceu. Os Vinhos do Porto de vinhedo único ou "Single Quinta", continuam com a fama irretocável. A Quinta dos Malvedos, da família Symington, e a Quinta de Vargellas, do conglomerado Taylor's, continuam a produzir vinhos espetaculares e de extrema profundidade. O Vargellas 2004, recentemente lançado no mercado brasileiro, está talvez entre os melhores vinhos fortificados de todos os tempos.
Dos vinhos de mesa Single Vineyard temos duas grandes sensações produzidas na mesma quinta. O Vinha Maria Teresa e o Vinha da Ponte, da Quinta do Crasto, estão todo ano entre os melhores vinhos de Portugal. Somente são produzidos em anos considerados excelentes ou excepcionais e, apesar de uma vinha estar a poucos metros de distância da outra, sempre produzem vinhos diferentes e com uma unicidade incomum.
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O Chile surge com diversos empreendimentos que se focam no Single Vineyard. A Viu Manent (foto) é uma das empresas que apostam neste conceito |
Chile
Grandes empreendimentos no conceito Single Vineyard
Um dos maiores investigadores de novos terroirs no Chile é o vibrante Marcelo Retamal, enólogo chefe da Viña De Martino. Há 14 anos, seu dia-a-dia tem uma incessante rotina de percorrer milhares de quilômetros neste que é um dos países mais longos do mundo. Segundo estimativa do próprio Retamal, que se autointitula Reta, a distância percorrida por ano chega a 70 mil quilômetros.
Ele descobriu vinhedos únicos ao norte de Santiago, em Limarí, onde conseguiu criar uma marca chamada Quebrada Seca que, no início, foi desbravada por ele e hoje tem a presença de fortes conglomerados vitivinícolas. Seu Chardonnay de Quebrada Seca é um dos mais especiais vinhos brancos de nosso continente. Um Chardonnay elegante, fresco e mineral, que se diferencia de quase tudo que podemos encontrar na América do Sul. É o mais borgonhês Chardonnay de nosso continente.
"Reta" conta que, de tanto ir ao vale do Limarí supervisionar o projeto de seu consagrado Chardonnay, acabou mais uma vez desbravando uma nova área vinícola, no Vale de Elqui. Nesse caso, ele "descobriu" o vinhedo mais alto do Chile, com cerca de 2 mil metros de altitude, no meio das montanhas, com um solo muito diferenciado e onde, no inverno, neva muito. Como um profissional incansável e determinado, não parou e continua lançando mais e mais vinhos em uma espetacular linha denominada De Martino Single Vineyard.
Já em Colchagua, a impressionante Viña Viu Manent segue a mesma direção e lançou recentemente seus vinhos de vinhedos únicos. Uma linha de respeito que, logo nas primeiras safras, já produziu vinhos de excepcional qualidade. Dessa casa, o Malbec San Carlos Estate tem consistentemente colocado o Malbec chileno no mapa, deixando os rivais argentinos, especializados nessa casta, com a pulga atrás da orelha.
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O simpático e determinado entrepreneur do vinho, o visionário Eduardo Chadwick, tem dois grandes Single Vineyards que são de tirar o fôlego. O mais antigo Single Vineyard "de linha" do Chile é o extraordinário Seña, do Vale de Aconcágua, que teve sua primeira safra lançada em 1995. O Seña 2001 talvez seja um dos mais especiais vinhos que o Chile já produziu. Em 1999, Chadwick lançou a primeira safra do vinho que se tornaria o mais caro do Chile, o emblemático Viñedo Chadwick, que é um Single Vineyard produzido onde antes era o campo de golfe de sua família, em pleno Vale do Maipo.
O último e mais espetacular projeto de um vinho único no Chile é o Clos Apalta. Um vinhedo espetacular localizado no Vale de Colchagua, no coração da sub-região Apalta, onde a família Marnier-Lapostolle investiu algumas dezenas de milhões de dólares em um belíssimo vinhedo e em uma nova adega, incrustada nas pedras. O projeto Clos Apalta é dedicado a produzir um vinho do mesmo nome. Em 2008, a Casa Lapostolle, com o Clos Apalta 2005, deu ao Chile a honraria de ter um vinho eleito como o melhor do mundo pela renomada revista Wine Spectator.
O empreendimento da família Lapostolle no Chile pode ser comparado a investimentos como Opus One na Califórnia, provavelmente o mais milionário projeto vitivinícola de todos os tempos. Além de um vinhedo cinematográfico e uma adega impressionante, a casa chilena dispõe de quatro chalés nomeados pelas uvas que compõem o Clos Apalta e um restaurante sensacional. Instalações, serviços, comida e vinho, tudo "cinco estrelas".
Por fim, ainda no Vale de Apalta, a vinícola Ventisquero cultiva um de seus vinhos ícones, o Pangea, um Single Vineyard de Syrah nascido das mãos de Felipe Toso e John Duval, um dos papas do Syrah (ou Shiraz) no mundo.
Argentina
Vinhedo ou viticultor único?
Na Argentina, a tendência de vinhedos únicos também está com plena força. O enólogo Daniel Pi, da Bodega Trapiche, faz um trabalho semelhante ao de Marcelo Retamal, só que mais focado na grande Mendoza. Desde 2003, a Trapiche tem lançado espetaculares Malbecs de Single Vineyard com vinhas velhas que, às vezes, ultrapassam os 100 anos. A casa tem colocado em seus vinhos o nome do viticultor responsável pela produção das uvas no vinhedo. Não há duvida que essa revolução se tornará mais uma obsessão também em nosso vizinho.
Produtores do Velho Mundo e do Novo Mundo aderiram aos Single Vineyard e buscam cada vez mais a tipicidade de seus terroirs |
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Um projeto impressionante é o da casa Achaval Ferrer. Seus vinhedos únicos, Altamira e Mirador - também com vinhas muito velhas, têm produzido ano a ano Malbecs que podem estar entre os melhores vinhos do mundo. O genial enólogo norte- -americano Paul Hobbs escolheu a Argentina para dividir seu tempo. Hobbs gasta metade de seu tempo em nosso vizinho e a outra metade em seus projetos californianos, quase todos também com Single Vineyard. Depois de muita investigação, ele começou a produzir em Mendoza, com parceiros locais, Malbecs de exceção.
Recentemente no Brasil, Paul Hobbs comandou uma degustação com todas as safras de seu Viña Cobos e ficou claro que, a cada ano, ele faz com que a Malbec produza vinhos mais elegantes. Tanto os Achaval Ferrer Altamira e Mirador, quanto o Viña Cobos Marchiori Vineyard são exemplares elegantes, profundos e com marcante toque mineral, que só se consegue com vinhos de terroir.
Por último, talvez o mais lindo projeto de Mendoza seja o do conglomearado LVMH, denominado Cheval des Andes - ao redor de um lindo campo de pólo em plena Las Compuertas. Esse projeto é fruto da parceria da empresa Terrazas de los Andes com Château Cheval Blanc, de Saint-Émilion, na França. Sob o comando do competente Pierre Lurton, enólogo-chefe do Cheval Blanc, foi criado um tinto blend composto de vinhas velhas de Malbec (predominante), com média de 70 anos, com Cabernet Sauvignon e um toque de Petit Verdot. As últimas castas são de vinhas mais jovens, com pouco mais de 15 anos em média. Esse vinho, cuja primeira safra foi em 1999, está hoje entre os melhores do mundo. O Cheval des Andes 2006 é um dos mais imponentes e profundos vinhos que nosso continente já produziu.
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Single Vineyard everywhere
O catalão Miguel Torres comanda um verdadeiro império, que começou com seus ancestrais há 140 anos, e que foi catapultado recentemente por esse incansável empreendedor. Hoje, a família Torres, que possui empreendimentos em vários países, ainda tem nos seus vinhos espanhóis, mais especificamente da Catalunha, os mais expressivos resultados na produção de excelentes Single Vineyard.
Mas a família não para por aí. Além da Catalunha, os vinhos de vinhedo único do Chile e dos Estados Unidos têm dado também o que falar. Na Catalunha, seus projetos Mas La Plana, em Penedès, e Gran Muralles e Milmanda, em Conca de Barberá (denominação de origem que se localiza entre as províncias de Lleida e Tarragona), são espetaculares.
O Mas La Plana é um Cabernet Sauvignon puro atualmente - pois já teve em sua composição outras castas em safras mais antigas -, que está sempre entre os melhores tintos do país. Um vinho que tem um legado impressionante. O da safra 1970, em uma degustação às cegas (em 1979) comandada pela prestigiada revista francesa Gault Millau, derrotou o Château Latour da mesma safra e outros grandes ícones de Bordeaux. Um feito que marcou a história desse delicioso vinho.
O projeto Milmanda é espetacular. Uma vinha murada, com muita carga histórica, que, a partir de 1978, passou a ser dedicada unicamente à Chardonnay.
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Seguindo a tendência mundial, produtores do Vale dos Vinhedos (foto), como a Casa Valduga e a Miolo, têm investido nos vinhos de vinhedos únicos |
Talvez esse seja o vinho branco de maior prestígio na Espanha hoje. Já o Gran Muralles é impressionante, delicioso e profundo. Prestigia, em um vinhedo único, além das castas predominantes Garnacha, Monastrell e Mazuelo, as quase extintas Garro e Samsó.
No Chile, no Vale de Curicó, com uma linda vinha de mais de 100 anos, eles produzem um Cabernet Sauvignon espetacular, o Manso de Velasco. Hoje quem comanda a empresa no Chile é o filho de Miguel Torres, que também se chama Miguel. Na Califórnia, a irmã de Miguel (pai), Marimar Torres, construiu um projeto sensacional no Russian River Valley, com técnicas orgânicas e biodinâmicas. Marimar dedica toda sua energia aos vinhos Single Vineyard, que são realmente deliciosos. Miguel pai, em 1995, após a visita do Rei Juan Carlos, para o 125º aniversário da empresa, lançou o vinho Reserva Real. Esse ícone de vinhedo único - Santa Margarita de Agulladolç Single Vineyard - é produzido só em safras excepcionais, com apenas 500 caixas.
Brasil
A Casa Valduga, com uma visão muito interessante, lançou o projeto Identidade, que tem o conceito Single Vineyard como mola mestra. Aqui, os descendentes de italianos foram ainda mais visionários. O projeto localizado em Encruzilhada do Sul, além de ter o conceito de vinhedo único, foi baseado em castas pouco exploradas. A primeira cepa, a Ancelotta, é de origem italiana e tem certa influência no Brasil e na Argentina. A Arinarnoa nasceu em 1956 na Universidade de Bordeaux a partir do cruzamento das bordalesas Petit Verdot e Merlot. Hoje, tem maior presença na região sudoeste da França. Já a Marselan é uma cruza da Cabernet Sauvignon e da Grenache. Esta cepa nasceu em 1961 na pequena comuna francesa de Marseillan, no Languedoc Roussillon. Também no Vale dos Vinhedos, celeiro de muitos dos melhores vinhos do país, a vinícola Miolo produz seu ícone Lote 43, um Single Vineyard que já fez história nas degustações de vinhos brasileiros.
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GLOSSÁRIO
Clos: é como os franceses definem um vinhedo murado
Cru: o mesmo que Vineyard, ou seja, vinhedo
Quinta: em português "fazenda/sitio" - refere-se a um vinho produzido em uma vinha
específica. Muito utilizado o termo "single quinta", que é um vinho produzido em um
ano específico em um "Single Vineyard"
Vineyard: vinha ou vinhedo
Vigna: vinha
Vigneto: vinhedo