Degustar um dos principais vinhos de Saint-Émilion é tão solene quanto o momento dedicado ao Angelus
Arnaldo Grizzo Publicado em 30/06/2010, às 12h15 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h46
Para os católicos fervorosos, o Angelus faz parte do dia. Ele nada mais é do que três momentos de oração (6h, 12 e 18h) em memória da Anunciação de Maria pelo arcanjo Gabriel. Na antiguidade, o badalar dos sinos anunciando o Angelus era comum para alertar a população de que era hora para as preces em homenagem a Maria e até hoje esse costume é mantido por muitas igrejas.
Na França católica, os sinos obviamente sempre soavam o Angelus e foi daí que veio o nome de um famoso vinhedo de Saint-Émilion, de onde, diz-se, os trabalhadores podiam ouvir claramente as badalas do Angelus das três igrejas da região: a da capela de Mazerat, a de Saint-Martin de Mazerat e a de Saint-Émilion.
Apesar de a história da família Boüard de Laforest remeter aos anos de 1544 na região de Bordeaux, foi somente no século XVIII que Catherine Boüard de Laforest veio para o Château de Mazerat, na região de Saint-Émilion. Porém, foi o conde Maurice de Boüard que adquiriu as terras do Clos L'Angélus e depois alguns hectares do Château Beauséjour e denominou a propriedade (por fim com 26 hectares) como L'Angélus, por volta da década de 1920.
Angelus é o nome dado aos três momentos de oração diária em homenagem à anunciação da gravidez de Maria pelo anjo
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Devoção à Cabernet
Franc A região de Saint-Émilion só foi classificada em 1955, 100 anos depois da famosa classificação de Bordeaux. Lá, não é a Cabertnet Sauvignon a grande estrela, mas a Merlot e a Cabernet Franc que dividem a atenção. Em Angélus, esta última cepa recebe tratamento especial por Hubert de Boüard de Laforest e seu primo Jean-Bernard Grenié, que atualmente comandam o Château.
Hubert, que estudou com ninguém menos que Émile Peynaud - dito como pai da enologia moderna -, foi responsável por promover diversas mudanças no estilo do vinho da propriedade dos anos 1980 até 1990. O que antes era um vinho médio de Saint-Émilion tornou-se um grande ícone da região, ganhando, em 1996, o título de Premier Grand Cru Classé B. Ao contrário de Bordeaux, cuja classificação é quase imutável, em Saint-Émilion, de tempos em tempos, um corpo de jurados avalia os vinhos promovendo-os ou rebaixando-os de classe.
A uva
Muito do crédito do vinho de Angélus é dado à Cabernet Franc, que sequer é a mais plantada lá, com 47% da área (a Merlot tem 50% e a Cabernet Sauvignon tem 3%). Contudo, lá, as videiras de Franc possuem média de idade maior que 30 anos e são plantadas nos solos sul do monte de Saint-Émilion e nos terrenos de cascalho perto da fronteira de Pomerol. As vinhas desta variedade estão em terrenos quentes de calcário arenoso e subsolo com grande suprimento de água. A colheita é feita quando as uvas estão levemente sobremaduras. Diz-se que a Cabernet Franc atinge sua maior expressão somente depois de 20 anos e, nas antigas vinhas de lá, o rendimento é de menos de 30 hectolitros por hectare.
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O terroir
As videiras do Château Angélus são plantadas basicamente no sopé sul da montanha de SaintÉmilion, um local com verão quente, que aumenta a precocidade do amadurecimento. O solo é drenado naturalmente pelo declive. A composição é de uma mescla de calcário e argila, que fornece a quantia certa de água e minerais para as vinhas. A Merlot é cultivada mais acima na encosta (onde há maior concentração de argila) e a Cabernet mais no pé do morro.
Dos 26 hectares, 23,4 formam um único vinhedo. A densidade é de 6,5 a 7,5 mil plantas por hectare. A colheita é toda feita a mão. Os vinhos passam por barricas de carvalho novas de 18 a 24 meses. A produção anual é de cerca de 90 mil garrafas para seu vinho principal e cerca de 15 mil do seu segundo vinho: Carillon d'Angélus. O engarrafamento ocorre de 20 a 26 meses depois da colheita. O famoso enólogo Michel Rolland, amigo de Hubert, presta consultoria para o Château.
Não há como degustar o vinho do château e não lembrar do famoso quadro de Millet (acima) |
O vinho
Sofisticado, o Angélus é um símbolo de Saint-Émilion. Degustá-lo e não lembrar do famoso quadro de Millet (o Angelus, em que os trabalhadores do campo, com a torre de uma igreja ao fundo, param para rezar) é quase impossível. Aliás, abrir uma garrafa deste vinho talvez mereça mesmo uma oração solene. No entanto, mais recentemente, outra imagem se associou ao vinho, quando o mais célebre agente secreto do cinema apareceu em uma cena do filme "007 Cassino Royale" provando este néctar.
Diz-se que o Ângelus (antes L'Angélus - mas perdeu o "l" em 1990) é rico, denso e untuoso devido ao terroir de maturação precoce. Os aromas costumam ser de uma hortelã apimentada, chocolate e lápis, elegantes e refinados. Os taninos são densos, porém sedosos e contribuem para a boa evolução do Angélus em garrafa. As últimas grandes safras foram: 1988, 1989, 1990, 1994, 1998, 2000 e 2005.