Redação Publicado em 14/08/2020, às 19h18 - Atualizado em 15/08/2020, às 12h40
Nos anos 1980, a vinícola do século 18 começou a chamar a atenção do mundo, e incomodar os vizinhos alsacianos como os métodos nada ortodoxos de Jean-Michel Deiss, que quebrou a hegemonia dos varietais e fez vinhos sedutores 'fora da caixa'
No minúsculo vilarejo de Bergheim, Alsácia, a família Deiss cultiva uvas desde 1744. Mas foi Marcel, jovem de carreira militar que decidiu voltar à sua terra natal após a II Guerra Mundial e criar o Domaine que levaria seu nome. Ele e seu filho André, aos poucos, foram aumentando a propriedade, que chega aos 27 hectares atualmente.
No entanto, a grande revolução veio com Jean-Michel Deiss, neto do fundador, na década de 1980, quando a vinícola passou a chamar a atenção do mundo. No começo, contudo, chamou a atenção dos vizinhos, sendo que muitos não gostaram da forma como Jean-Michel gerenciava as vinhas e tampouco gostavam de suas propostas pouco ortodoxas.
Ele acreditava que, por sua história, o terroir da região se expressava melhor com blends e não com varietais, dominantes na época. Devido a esse pensamento, por muito tempo seus vinhos “sofreram”, pois, mesmo produzidos em alguns dos principais terroirs da Alsácia, não podiam ostentar as denominações Grand Cru alsacianas, por não serem varietais. Somente a partir de 2005 o Instituto de Denominações de Origem da França, o INAO, permitiu que os Grand Cru alsacianos pudessem ser feitos de blends de castas.
Jean-Michel e o filho Mathieu estão à frente do domaine com 27 hectares de videiras divididas em 220 lotes. Deiss também produz varietais, mas seus grandes ícones são as mesclas encontradas no vinhedo de Altenberg de Bergheim
Mas os entreveros de Jean-Michel não se resumiram a isso. Ele é um fervoroso defensor da agricultura biodinâmica (seus vinhedos foram convertidos em 1997) e, mais que isso, de vinificações sem absolutamente nenhuma intervenção. Ele nunca chaptaliza, acidifica ou desacidifica, só usa leveduras indígenas, não filtra etc., têm um método de produção extremamente focado em tentar mostrar o que existe no terroir.
“Comecei minha carreira seguindo receitas culinárias. E este vinho não me fez feliz. A ideia de fazer infinitamente a mesma coisa que meu vizinho era insuportável para mim”, afirma Jean-Michel Deiss.
Ao defender os blends, Deiss costuma dizer que está dando “à videira todas as letras do alfabeto para lhe dar a ambição de escrever seus sonhos”.
O terroir é um ser vivo que exige se expressar em múltiplas interpretações. “O vinho moderno é
feito de caos. A boca e o nariz são dissociados. Eu preciso de um condutor para juntar tudo e o terroir é o meu condutor”, afirma.
A biodinâmica é um ponto crucial da filosofia de Deiss, e ele resume o conceito em “uma concepção total do mundo, onde cada pedra, cada videira, cada ser vivo tem seu próprio pano de fundo, onde estamos todos conectados a um cosmos interno e externo, onde o visível é apenas a espuma das coisas…”
E segue filosofando: “Para nós, não é tanto a questão do que fazer e por que fazê-lo todas as manhãs, como a questão de ‘sentir’ todos esses outros mundos além da vista. A agricultura é frequentemente apenas uma sucessão de receitas culinárias, sujeitas a modas, gurus e interesses. Preferimos o ponto de vista do céu, o humor da terra e a infinita ladainha de plantas divididas entre o determinismo absoluto da genética e o desejo de livre arbítrio, esse apetite por ‘terroir’. Tornar-se tão humano quanto uma planta que busca, no fundo de suas raízes, a verdade do mundo, sua lógica incompreensível, o sagrado”.
Jean-Michel Deiss não chaptaliza, acidifica ou retira acidez, não filtra os vinhos e só usa leveduras indígenas. Seu método de produção é extremamente focado em tentar mostrar o que existe no terroir
A propriedade opera 27 hectares de videiras espalhadas por nove municípios. O domaine divide essas terras em 220 lotes. Apesar da defesa do blend, Deiss também produz varietais, mas seus grandes ícones são as mesclas encontradas em seus principais vinhedos, especialmente no Altenberg de Bergheim, seu ponto culminante.
Ele ainda possui terras em outros expoentes vinhedos da região, como Schoenenbourg e Mambourg, mas também em alguns que estariam em processo de ingressar na hierarquia dos vinhedos alsacianos (Premier Cru, classificação que ele questiona).
Ele usa altas densidades de plantio (8.000 a 12.000 videiras por hectare) e isso, “por si só, permite expressar todas as finas nuances do terroir, seu temperamento, seus tiques, sua... loucura”.
Em seus principais vinhedos, não usa a indicação da variedade de uva, segundo ele, “tão redutora e estéril”, e apenas nomeia com “o gênio do lugar, essa energia que sai do fundo como um grito”. Hoje, ele divide a gestão do domaine com seu filho, Mathieu. Apesar de ainda produzir varietais, afirma que deseja abandoná-los futuramente. “Se a denominação Alsácia tivesse peso, não estaríamos vendendo Moscatel”, diz.
Recentemente, pai e filho criaram o Domaine du Rêveur, com 7 hectares, onde estão testando novas técnicas de vinificação. “Uma espécie de serviço de pesquisa e desenvolvimento em que Mathieu pode questionar as coisas que fiz”, conta.
Inquieto, ele criou um curso de degustação geosensorial na Universidade de Estrasburgo. Esse tipo de degustação é uma prova baseada no que acontece na boca do degustador, em oposição à degustação analítica tradicional, relacionada a aromas distintos. Nela, os vinhos são servidos às cegas em taças negras, para que nenhuma informação relacionada ao aspecto possa interferir na interpretação.
Enfim, Jean-Michel Deiss é visto como um “rebelde”, “catequizador”, “dogmático”, mas define-se: “dirão que sou subjetivo, responderei que estou apaixonado”. Paixão que, segundo ele, o faz acordar pensando que é uma vinha.
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