História de um dos maiores produtores da Alsácia remonta ao tempo em que França e Alemanha sequer pensavam em disputar a região
Arnaldo Grizzo Publicado em 07/12/2011, às 09h08 - Atualizado em 10/02/2021, às 16h44
Na história da ópera wagneriana (O Ouro do Reno), é preciso renegar o amor para poder forjar um anel mágico, que transformará seu dono em soberano do mundo, com o "Ouro do Reno". Por mais improvável que parecesse, um ser decidiu deixar o amor de lado para ter essa recompensa. Contudo, o anel lhe é tomado e ele joga uma maldição sobre quem o possuir, acarretando uma série de tragédias.
No mundo real, a "maldição" do Reno talvez tenha influenciado a história da Alsácia, uma região que trocou de mãos diversas vezes no decorrer da história. Em meados de 1600, ela, que pertencia ao Sacro-Império Romano-Germânico, passou para a França. Por volta de 1870, ela retornou ao domínio alemão. Depois da I Guerra Mundial, os franceses a tomaram novamente. Durante a II Guerra, a Alemanha a anexou, porém, com o fim dos conflitos, ela voltou para a França.
No entanto, há quem resista à "maldição" e, mais do que isso, tenha triunfado independentemente de qual nação tivesse o domínio sobre a Alsácia. Não à toa, alguns dos melhores vinhos brancos do mundo vêm de lá. Foi com o vinho que alguns bravos produtores superaram as crises. Um deles é a família Hugel.
O vinho antes dos conflitos
As primeiras informações que se tem dos Hugel vêm do século XV, mas foi durante a Guerra dos Trinta Anos - conflito que envolveu inúmeras nações e, segundo historiadores, foi um dos marcos da transição do feudalismo para a Idade Moderna -, em 1639, que Hans Ulrich Hugel se assentou em Riquewihr, atualmente uma das regiões mais importantes da Alsácia, mas que, na época, estava devastada pela guerra. Na ocasião, Hans assumiu o controle de uma corporação de viticultores.
Em 1672, ele construiu uma casa na Rue des Cordiers e colocou o brasão da família sobre a porta. Durante os séculos XVIII e XIX, a família ganhou fama. No começo dos anos 1900, Frédéric Emile Hugel decidiu mudar a sede da empresa para seu local atual, no centro de Riquewihr. A importância e influência dos Hugel na vitivinicultura alsaciana se tornou tão grande que, na segunda metade do século XX, Jean Frédéric Hugel, filho de Frédéric Emile, coordenou uma renovação na legislação das denominações de origem na região, assim como fez renascer os vinhos de colheita tardia, que atingiram o auge com seus filhos, Georges, Jean e André. Atualmente, a Hugel & Fils é gerida por cinco membros da 11a e 12a gerações da família.
Rio de ouro
Como se sabe, para fazer um vinho excepcional é necessário um grande terroir. Em Riquewihr, a proximidade com o Reno certamente influencia a produção local. Seria herança do "Ouro do Reno"? A localização geográfica é privilegiada. A Alsácia, como um todo, é a região vinícola mais seca da França, sem influência marítima e ainda protegida pelos Vosges, cadeia montanhosa à oeste do vale do Reno.
As propriedades da família Hugel somam 65 acres exclusivamente em Riquewihr, sendo metade deles de vinhedos Grand Cru. A vinhas plantadas - 40% Gewürztraminer, 40% Riesling, 15% Tokay Pinot Gris, 5% Pinot Noir - possuem, em média, 30 anos de idade, com algumas superando os 70 anos.
Em seus vinhedos próprios - eles ainda compram uvas de cerca de 350 produtores, sempre com contratos de longo prazo -, a Hugel não usa fertilizantes e mantém um rendimento baixo, dois terços abaixo da média alsaciana. A colheita é toda feita à mão e as prensas só usam a força da gravidade. Depois do primeiro esmagamento, apenas a primeira porção do líquido é usada para os vinhos. Assim, a produção anual é, em média, 110 mil caixas.
Todos os vinhos envelhecem em garrafa (não em madeira) antes de irem para o mercado, seja por alguns meses, ou, em alguns casos, por até seis anos. Seus principais vinhos, o Jubilee, o Vendage Tardive e o Sélection de Grains Nobles só são produzidos em anos excepcionais com uvas de vinhedos Grand Cru pertencentes à família.
Quase 80% dos vinhos de Hugel são exportados, até mesmo para o Brasil
Para fora
As uvas dos principais vinhos de Hugel vêm de dois vinhedos Grand Cru, Schoenenbourg e Sporen. Quase todo o processo vinícola se passa em prédios preservados que datam do século XVI. Na adega, há tonéis de mais de 100 anos, sendo o mais famoso, o Ste Caterine, de 1715, que está registrado no Guinness Book, o Livro dos Recordes.
A fama dos vinhos é tanta que quase 80% deles é exportado, com clientes em mais de 100 países (já há exportação para o Brasil, por exemplo, desde meados do século XX). Seus Riesling secos possuem uma característica mineral extraordinária, além de poder envelhecer por quase uma década. O Gewürztraminer não fica atrás com seus aromas de especiarias.
Os doces de Vendage Tardive e Seléction de Grains Nobles são intensos, profundos, com buquês complexos típicos da ação da Botritys cinerea. São produzidos somente em anos excepcionais e a linha S tem uma seleção ainda mais estrita de grãos que estejam totalmente atacados pelo fungo. Assim como na lenda wagneriana, quem prova desse ouro líquido do Reno acaba encantado, mas sem maldições.