"Nas vitórias é merecido, nas derrotas, necessário" (Napoleão Bonaparte, sobre o champagne)
Fábio Farah Publicado em 21/09/2006, às 12h07 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44
O imperador francês degolava as garrafas de champagne com um golpe de sabre |
Cometi um crime. Nunca o confessei a nenhum padre. Nem o confiei aos meus melhores amigos. Era um segredo muito bem guardado. Até este momento. Resolvi me entregar. Quero voltar a sentir as estrelas ao degustar um champagne, e louvar a Dom Pérignon pela descoberta divina (que não me censurem os historiadores!). Isso não acontece desde a virada do milênio. Antes de contar minha história, devo revelar: na rivalidade histórica entre franceses e ingleses, nunca fui isento. Nem poderia. Todo gourmet e enófilo que se preze reverencia a França. Por outro lado, ao passear pelas ruas londrinas, o amante da boa mesa assiste a um espetáculo disgusting. Enquanto aromas enjoativos da culinária indiana rústica empesteiam o ar, toneladas de kebabs são exibidos nas calçadas e disputam a atenção dos pedestres com indigestos fish and chips. Nos afamados PUBs, pints espumam cerveja pelas bordas e escarnecem da delicadeza e da elegância das taças de cristal.
Pode ser um exagero, mas é assim que "sinto" Londres. Apesar de tudo, resolvi passar dois meses na capital inglesa para apreciar as obras da National Gallery, conhecer os castelos da família real e me divertir com as peripécias de Henrique VIII. Então, após uma semana bem vivida, me despedi de Paris e embarquei no Eurostar cheio de nostalgie. Achei uma brincadeira de mal gosto ao chegar na fatídica ilha e deparar com uma estação chamada Waterloo. O deboche não combina com a ironia refinada atribuída aos ingleses. E certamente as qualidades aristocráticas dos súditos da realeza não estavam presentes quando Napoleão Bonaparte perdeu a guerra no campo de batalha de Waterloo, a julgar pela piada sobre a posição indecorosa. Sem nenhum decoro, meus pés pisaram em Londres, e pisotearam a memória do imperador francês.
Precisava me instalar na casa de Ms. Stocks o mais rápido possível para presenciar a "virada" na Trafalgar Square.
A julgar pela pontualidade britânica, nenhum lugar mais preciso para acompanhar a passagem do milênio do que com os olhos no Big Ben. Fui recebido pela minha anfitriã - uma atriz de destaque nos primeiros anos do musical Les Miserables - com uma xícara de chá na mão. "Aqui se bebe chá preto com um pouco de leite", ensinou-me Ms. Stocks, instilando em mim o desejo de conhecer mais sobre a bebida. Posso criticá-los à vontade, mas reconheço a arte inglesa de se apropriar do prazer alheio e apreciá- lo como ninguém. É uma herança imperialista que lhes confere uma aura de elegância impagável. Produzem um vinho de qualidade sofrível, mas degustam melhor do que qualquer outro povo os Grands Crus Classés de seu vizinho. E qual é a primeira pessoa que vem a mente ao se pensar em puros habanos? O primeiro-ministro Winston Churchill. Apreciador de champagne, talvez ele tenha parafraseado o imperador Napoleão Bonaparte inúmeras vezes durante o desarrolhar da Segunda Guerra Mundial: "Nas vitórias é merecido, nas derrotas, necessário".
Após alguns minutos de conversa com Ms. Stocks, parti para a Trafalgar em um clássico táxi preto. No percurso, constatei que havia me esquecido de um detalhe fundamental. Uma garrafa de champagne seria necessária para a comemoração. Me lembrei de uma loja de bebidas na estação de Waterloo e segui para lá. Tive a sorte de encontrar uma meia garrafa de "Moët & Chandon Brut Imperial", concebida em 1869 para comemorar os 100 anos do nas cimento de Napoleão Bonaparte. A ironia me acertou em cheio. Apesar de estar em "Waterloo", eu segurava em minhas mãos um tesouro francês. Era uma pequena vitória sobre a arrogância inglesa. Fui para a Trafalgar sorrindo de contentamento. Milhares de pessoas preenchiam as ruas em torno da praça.
Após minha retratação, quero voltar a sentir as estrelas ao degustar um champagne |
Aguardavam a meia-noite com garrafas de cerveja. Escondi minha pequena champagne no casaco e esperei os fogos de artifício. Achei estranho quando recebi "Happy New Year" de dezenas de pessoas. Apenas uma pequena luz vermelha atravessou o céu turvo. Só percebi que estava no século XXI quando olhei no relógio de pulso. Que decepção!!! Percebi alguém no pináculo central da praça sorrindo para mim.
Era Lord Nelson, o almirante inglês que "derrotou" Napoleão. Nunca o ditado: "Quem ri por último, ri melhor", tinha feito tanto sentido. Abri o champagne. Pela primeira vez, não senti as estrelas. É por isso que resolvi me retratar com o maior ofendido pelo episódio. Pardonnez-moi, Napoléon!!! Como sinal de reconciliação, abrirei meu próximo champagne com um sabre ao som da "Sinfonia Nº3", de Beethoven.