Um brinde ao aniversário de ADEGA

O ato de brindar está fortemente ligado ao vinho e traz rica carga simbólica

Marcelo Copello Publicado em 21/09/2006, às 08h49 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

O que é o brinde? Por que se brinda? Qual é a origem deste ato, seu simbolismo, história e lendas?

Como na máxima anônima: "as águas separam os povos do mundo, o vinho os une." E o momento síntese desta comunhão é o momento do brinde, quando, após algumas palavras de louvor, batemos os copos, olhos nos olhos e bebemos à saúde de alguém, como voto de êxito, em comemoração a algum acontecimento ou simplesmente celebrando a vida.

A intolerância entre os povos, agravada por barreiras culturais, tem na mesa seu mais antigo e eficiente campo de entendimento e aproximação. E nela as bebidas cumprem papel fundamental. Historicamente gregárias, são responsáveis pela união entre os homens. Da missa aos bares, ao elevar dos copos a comunhão se estabelece.

O poder místico do vinho Para entender o significado e a origem do brinde é necessário voltar no tempo e rever o papel místico da bebida mais entranhada na história do homem.

O nobre fermentado possui uma densa carga simbólica acumulada através de sua longa e rica história. O vinho teve papel importante na evolução das tradições, valores intelectuais, morais e espirituais do homem. A videira e o vinho estiveram presentes nos principais rituais, sagrados ou profanos, e em quase todas as celebrações, desde os primórdios da civilização. Dos deuses egípcios e greco-romanos ao Extremo Oriente; da Bíblia dos judeus e cristãos ao Islamismo; do protestantismo à Santa Inquisição; da Revolução Francesa à Lei Seca, o vinho sempre esteve em evidência quando o assunto foi religião. Mas como e por que este suco de uva fermentado se transformou em símbolo messiânico para alguns, em instrumento de Satã para outros, ou até, em alguns casos, em uma crença em si mesmo?

Para entender a raiz deste fenômeno é preciso analisar o ciclo da videira, a elaboração do vinho e como os dois eram vistos pelos antigos. A cada inverno as vinhas minguam, perdem suas folhas e, aparentemente, morrem, para renascer esplendorosamente na primavera, enquanto o vinho sobrevive à aparente morte da árvore que lhe deu origem. No Egito, este fato era reforçado pela cheia anual do Nilo, quando suas águas ficavam avermelhadas, como vinho, por causa do aluvião ferroso que corria por um de seus afluentes. Tais fatos tornaram a videira e o vinho símbolos da imortalidade e da ressurreição, representada pela renovação anual de seus frutos.

Outro aspecto é a fermentação. O mosto da uva passa por um processo totalmente desconhecido, só definido por Louis Pasteur no século XIX. A fermentação alcoólica é aparentemente violenta, exala calor e o líquido borbulha, como se estivesse possuído por algo do outro mundo. Para completar, o fator mais importante, tão inexplicável quanto surpreendente, era o efeito psicotrópico do fermentado. Esperavase, no êxtase provocado pelo vinho, uma aproximação com os deuses.

O vinho é também o símbolo da revelação, da verdade. A embriaguez era considerada, ao mesmo tempo, um delírio inebriante que paradoxalmente trazia lucidez. Não por acaso, o dramaturgo grego Aristófanes disse: "Rápido! Tragam-me vinho para que eu umedeça a minha mente e diga algo inteligente". A máxima enófila "in vino veritas" (no vinho a verdade), ilustra esta crença e a de que, ao beber do cálice de outra pessoa, descobrimos seus segredos, a verdade.

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Outra conotação, mais mundana, foi assumida pelo vinho foi como símbolo da fertilidade. Como afrodisíaco, relaxando as barreiras morais, a ligação entre vinho e sexo acabou tornando-se uma associação entre vinho e fertilidade. A mitologia egípcia conta, por exemplo, que a deusa Ísis teria engravidado simplesmente por ter comido uma uva. Em algumas civilizações da Antigüidade, as moças, ao namorar, ofereciam ao futuro marido uma taça de vinho, considerando-se, a partir daí, firmemente comprometidas.

Outras plantas têm ciclos semelhantes ao da videira, assim como outras bebidas provocam igual embriaguez. Não está claro o porquê do fermentado de uvas ter recebido maior status. Talvez por seu teor alcoólico, superior ao da cerveja e de outras bebidas da época, ou por suas qualidades como bebida, ou, ainda, por suas propriedades terapêuticas, já reconhecidas desde então.

O vinho tornou-se, assim, um dos principais símbolos de quase todas as religiões pagãs da era pré-cristã. Era o sangue da terra, o elixir da vida e a bebida da imortalidade. Foram erguidos templos, criadas festas e cunhadas moedas com imagens de uvas ou parras. Sacrifícios, libações e oferendas em vinho incorporaram-se à cultura.

Algumas das principais divindades da Antigüidade eram deuses do vinho, como Baco (latino), Dionísio (helênico), Osíris (egípcio), Soma (védico), Spandaramet (armênio), Sabazios (trácio e frígio), Moloch (sírio), Amon (líbio) e Orotal (árabe). Esses deuses se destacavam dos demais, pois não eram meros mitos, mas bastante palpáveis. Bebia-se efetivamente seu sangue e o efeito de tê-los dentro de si era bem real, trazendo tranqüilidade e contentamento.

O cultivo da vinha era uma atividade sagrada. Muitos dos vinhateiros eram os próprios sacerdotes, que determinavam, todos os anos, o dia sagrado da colheita e o dia em que se poderia beber o vinho novo. Juramentos feitos com uma taça na mão tinham caráter divino. Bebia-se vinho à saúde dos amigos ou ao êxito nos combates. Ao sorver a bebida sagrada com um inimigo, ele se tornava inatacável. Na China antiga, o vinho era usado como remédio, assim como em rituais de sacrifício durante as dinastias Chang e Chou, cerca de 1100 anos a.C. Os chineses conheciam o fermentado da uva antes do saquê, e no taoísmo o elixir da imortalidade levava, entre outras coisas, ouro e vinho. Escritos ancestrais da Índia, de 2000 a.C., mencionam que o vinho era louvado tanto como deus como remédio.

A origem e o ritual do Brinde O brinde teria se originado na Antigüidade durante os acordos de paz entre impérios belingerantes. O mediador do acordo deveria se levantar, proclamar sua conclusão e tomar o primeiro gole da bebida (normalmente vinho, a mais mística das bebidas) para mostrar que ela não estava envenenada e demonstrar, assim, a boa vontade entre as partes.

O caráter sobrenatural que nosso fermentado teve desde os primórdios, quando lhe eram atribuídos poderes transcendentes, levava muitos homens a dedicarem goles desta poção mágica à saúde dos amigos ou ao êxito dos combates. Celtas e gauleses, por exemplo, punham a circular um vaso cheio de vinho, de mão em mão, bebendo-se à pessoa que se queria honrar. Cada conviva dizia, olhando-a: "a ti bebo".

O ato do brinde com toque de copos nasceu, segundo Alfredo Saramago, em seu livro O Vinho do Porto na Cozinha, em uma época na qual se utilizavam recipientes de metal ou vidro fosco que não transpareciam a quantidade de vinho servida. "Para que não houvesse enganos, durante as saúdes os copos deviam tocar-se para os dois oficiantes da saúde saberem que o copo que tocavam estava tão cheio como o seu. Tratava-se de uma oferenda e ao mesmo tempo de um gesto de delicadeza, para que ninguém ficasse mal servido". Também se elevava, como ainda hoje, o copo à altura do coração, ou da fronte, para imprimir mais intensidade ao bonito gesto do brinde.

Existe uma outra versão, esta mais poética, para o ato de tilintar as taças ao se brindar. Dionísio, o deus grego do vinho e da fertilidade, teria iniciado a prática de fazer o som percutindo as taças umas nas outras para tornar completa a experiência sensorial da degustação do vinho. Esta, até então, só evocava quatro dos cinco sentidos: visão, olfato, tato (na boca) e paladar.
A audição estava ausente.

O primeiro registro da palavra "brinde" na língua portuguesa data de 1651, no livro História Universal dos Impérios, Monarchias, Reyno & Províncias do Mundo, do padre Manoel dos Anjos. Sua origem etimológica seria alemã, vindo da expressão: "ich bring dir's", algo como "bebo por ti". Algumas fontes atribuem, ainda, a origem dessa palavra à cidade de Brindisi, bem no sul da Itália.

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Apesar de sua origem ancestral, o ato de brindar só se popularizou no século XVI, quando começou a virar moda na Inglaterra. Em inglês, a tradução de brinde é "toast" (torrada), e deriva do costume de colocar pão torrado num cálice para lhe dar sabor de vinho. Quando se bebia à saúde de alguém, era preciso esgotar o cálice para chegar na torrada embebida.

Apesar de sua origem ancestral, o ato de brindar só se popularizou no século XVI, quando começou a virar moda na Inglaterra. Em inglês, a tradução de brinde é "toast" (torrada), e deriva do costume de colocar pão torrado num cálice para lhe dar sabor de vinho. Quando se bebia à saúde de alguém, era preciso esgotar o cálice para chegar na torrada embebida.

Segue uma ritualística: pode-se chamar a atenção dos convidados batendo com um talher na taça ou copo, diz-se o brinde, que pode ser apenas o clássico: "saúde". Só depois se bebe. No entanto, todos devem beber, de preferência bebidas alcoólicas. Bate-se levemente com o copo no copo de cada um dos bebedores, olhando-os, olhos nos olhos, mesmo que à distância.

Brindando em diversos idiomas
Brindes já fazem parte até da mais tradicional etiqueta, como retrata O Livro de Etiqueta de Amy Vanderbilt, no qual a autora americana chega a oferecer ao leitor uma prática lista de brindes em diversos idiomas, que cito e comento:

Os franceses dizem "santé" ou "salut", o que já deixa a boca no formato ideal para receber pequenas quantidades de bebida. Os espanhós erguem suas taças dizendo "salud", enquanto os italianos gesticulam ao som de "salute". O universal "tin-tin", ou "chin-chin", não é apenas uma onomatopéia para os chineses. Lá, "chin" significa "felicidade", e "chinchin", "muita felicidade". Não confunda: em japonês o brinde é outro, diz-se "kampai", que quer dizer "copo vazio".

Alemães dizem "prosit" se a ocasião for informal, e "zum wohl" se for a sério. Para os holandeses, um "proost" fará o serviço. Os russos dizem, sem enrolar a língua, "na zdorov", ou "felicidade", semelhantes aos poloneses e búlgaros que gastam menos letras para dizer "na zdrve". Entre os árabes que bebem se diz baixinho "fi sihitaek". Em ídiche, toda a família diz junta "l´chayim!", "à vida". Na língua de Platão, pode-se dizer "steniyasas" (à saúde), enquanto na de Ghandi brinda-se "aapki sehat".

O mais curioso, contudo, vem dos nórdicos da Suécia, Dinamarca e Noruega. Ao levantar suas taças, dizem "skäl", que significa, singelamente, "caveira". A origem vem do costume viking de beber cerveja nos crânios de seus inimigos, esvaziados e limpos como se fossem canecas.

Enaltecer a bebida ou as circunstâncias de seu consumo faz parte de um ritual de comunhão que todo bebedor conhece. Aguça o paladar dos presentes, torna as qualidades do líquido ainda mais extraordinárias e transforma cada ocasião em um evento único e especial.

Peço licença "poética" para encerrar com um brinde ao aniversário de ADEGA: "Que ADEGA reflita sempre o vinho, que melhora a vida, para que nossas leitoras e leitores encontrem, aqui, entusiasmo para melhorar o mundo". Saúde!