Um safári com Baco

Com produção de vinhos iniciada há 400 anos, a África do Sul despontou recentemente como uma potência do Novo Mundo. Descubra seus melhores vinhos e safras

Luis Gastão Bolonhez Publicado em 29/08/2007, às 11h54 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

Diversidade e contraste são palavras que definem a África do Sul. O país, banhado pelo Oceano Atlântico de um lado e pelo Oceano Índico do outro, tem 11 línguas oficiais (entre elas, o africâner, originário da colonização holandesa), diversas religiões e imigrantes de várias origens. São quase dois mil quilômetros de costa e 44 milhões de habitantes.

A nação de Biko e Mandela ostenta, ao mesmo tempo, jazidas incalculáveis de diamantes e ouro e uma pobreza indecente. A boa notícia é que desde o fim do Apartheid, em 1994, a democracia impulsionou a reconciliação racial, permitindo eleições multirraciais. A seqüela de governos ditatoriais de minoria branca ainda é grande, mas exemplos de luta e coragem dão nova cara à África do Sul. É o caso do admirado líder Nelson Mandela, que após 29 anos de prisão assumiu o governo, mudou a imagem do País em todo mundo e foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz.

A maioria dos apreciadores de vinho pensa que a África do Sul é novata na produção da bebida. Estão enganados. Lá, existem vinícolas com mais de 300 anos de história. Apesar disso, apenas nos últimos 15 anos elas mostraram ao mundo vinhos de qualidade ascendente. A história da vitivinicultura local é repleta de altos e baixos. No início do século XIX, a produção de vinhos era centrada em pequenos produtores. No começo do século seguinte, eles foram dominados por cooperativas que devastaram o conceito de qualidade, estabelecendo cotas aos produtores. Esta iniciativa mudou o foco das vinícolas para o aumento da produção de uvas: metade era usada para produzir vinhos de qualidade duvidosa e a outra, para destilados que visavam mais o consumo interno. Essa estratégia estagnou o mundo vitivinícola sul-africano até o início dos anos 70. Em meados da década seguinte, iniciou-se uma verdadeira revolução na produção de vinhos no país. Alguns produtores passaram a produzir vinhos de qualidade e a competir, em qualidade, com os melhores do mundo.

A mudança mais notória começou a se mostrar na década de 90, na qual os melhores vinhos da África do Sul aterrissaram no mercado internacional. Hoje em dia a área plantada de uvas viníferas ultrapassa 100.000 hectares, numa extensão de cerca de 800 quilômetros que contorna o Cabo da Boa Esperança, entre o Oceano Atlântico e o Índico. Hoje, há quatro grandes regiões vinícolas, englobando 18 distritos com 53 denominações de produção: Breede River Valley, Coastal, Little Karoo e Olifants River.

Uma retrospectiva histórica
O cultivo uvas na região remonta há cerca de 400 anos, quando um médico holandês, chamado Jan Van Riebeeck, levou ao país as primeiras videiras. Seu objetivo era desenvolver medicamentos para o escorbuto. Os imigrantes holandeses não tinham conhecimento em viticultura. Ele só foi desembarcar lá em 1645, por intermédio dos huguenotes franceses. O vinho que trouxe fama para a região foi o doce Constantia, elaborado a partir de uvas Muscat. Ele encantou ilustres personalidades históricas, como Napoleão Bonaparte e vários membros da corte Européia, que preferiam os sul-africanos aos Sauternes, Tokay e Madeira. No século XIX, o Constantia declinou e só voltou ao reconhecimento internacional no século XX, após forte intervenção do governo do país. As medidas beneficiaram não apenas o lendário vinho doce, mas toda a produção local.

Terroir
Seus longos e quentes verões, invernos frios, raras geadas tardias e quase sempre ausência de chuvas fortes de verão, além da influência dos ventos úmidos sudoeste nas regiões sul e oeste que equilibram o calor, fazem desse terroir um grande presente para os viticultores. As denominações de Stellenbosch e Paarl são consideradas o coração da indústria vinícola do país, que recentemente tem a companhia da remodelada região de Constantia, nas cercanias da cidade do Cabo. Além dessas regiões que estão consolidadas, há novas emergentes, evoluindo de maneira impactante. Entre elas, destacam-se Hermanus, mais ao leste da cidade do Cabo, e Franschhoeck, emendada a Stellenbosch.

Vinhos Brancos
A produção de brancos desse país é de alta qualidade. Os brancos, na maioria Sauvignon Blanc e Chardonnay, inserem o país como um importante player no cenário internacional. Nesse sentido, os Sauvignons Blancs sul-africanos rivalizam com os da Nova Zelândia. Seus Chardonnays são exuberantes e, em alguns casos, têm suficiente elegância para entrar no roll do que há de melhor no mundo. Alguns produtores da região de Constantia produzem também sensacionais Semillons, que só têm similares na França. Dos vinhos brancos, ainda há uma vasta quantidade de hectares plantados de Chenin Blanc, que produz vinhos mais simples, comparados com os originários das uvas Chardonnay, Sauvignon Blanc e Semillon.

Pinotage
A Pinotage se destaca como a uva local (Pinotage é a cruza entre a Pinot Noir e Cinsaut, antes denominada Hermitage Rouge). Ela produz ótimos exemplares, mas que jamais conseguirão atingir os níveis de qualidade da Cabernet Sauvignon e da Merlot em terras africanas. A Pinotage foi criada em 1925 pelo professor Pernold, da Universidade de Stellenbosch. Ela tinha o objetivo de produzir vinhos clássicos que pudessem competir com europeus. Com o passar dos anos, essa uva exibiu aromas inexistentes nas variedades européias, estabelecendose como uva emblemática da África do Sul. Nos últimos anos, a Pinotage tem sido vítima de críticas, a maioria da região em que foi criada. Controvérsias à parte, essa uva pode produzir alguns vinhos de boa qualidade, envelhecidos, ou não, em madeira, frescos ou mais intensos, quase sempre com toques de amoras, ameixas negras e cassis. De maneira geral, são vinhos com certa rusticidade que devem ser apreciados levando-se em conta sua incomparável originalidade.

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Cabernet Sauvignon e Merlot
Não há dúvida de que os mais clássicos vinhos da África do Sul são produzidos a partir do corte de Cabernet Sauvignon com Merlot, além do acréscimo da Cabernet Franc. Essa composição é a espinha dorsal dos grandes blends de estilo bordalês. Na África do Sul, o blend também pode receber toques de outras uvas, como Shiraz, Tempranillo e Nebbiolo. Os mais especiais Merlot são de Constancia e Paarl, enquanto a Cabernet Sauvignon reina em Stellenbosch.

Recentemente a Syrah despontou como sensação do país. Tem-se ainda bons Pinot Noir em específicas regiões, como Walker Bay, que fica incrustada na macro-região de Hermanus.

Mercado
Os vinhos da África do Sul têm presença marcante no Reino Unido, o mercado mais complexo e competitivo de vinhos do planeta. Recentemente também tem melhorado seu posicionamento em países como Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Bélgica. Para a sorte dos enófilos brasileiros, o país apresenta hoje uma oferta muito seleta e especial de vinhos de várias regiões desse intrigante país. Vale ressaltar que os vinhos provenientes da África do Sul estão entre os mais competitivos do mercado, quando o quesito é a relação custo x benefício. Eles podem competir com chilenos e argentinos em faixas de preço médio, entre 30 e 80 reais. Seus vinhos TOP são, na maioria das vezes, mais baratos que os de nossos vizinhos.

Gastronomia
Além de maravilhosos vinhos, a África do Sul tem uma culinária muito especial. O javali e o avestruz, por exemplo, marcam presença nas mesas dos restaurantes do país. Lá, também podem ser apreciados peixes e frutos do mar de excepcional qualidade. Uma culinária bastante condimentada que tem o toque europeu das mais refinadas escolas. Capetown (Cidade do Cabo), por exemplo, oferece inúmeras alternativas de restaurantes de classe mundial, alguns inseridos dentro de vinícolas. A Constantia Uitsig é o endereço de um dos mais renomados restaurantes de toda a África do Sul.

SAFRAS 2000 A 2006
Para facilitar sua análise, segue abaixo um breve resumo das últimas sete safras da África do Sul.

2006 – Inverno variável, mais úmido que as três últimas safras anteriores. Na colheita, tempo quente e seco. Boa maturação de uvas. As variedades que mais se destacaram foram Sauvignon Blanc, Chenin e Pinotage. Não foi um grande ano para a nova estrela do país: a Syrah.

2005 – Safra que teve uma colheita rápida, com muito calor e bem seca. Uvas maduras com pele (casca) fina prometem vinhos tintos de longa guarda. A maioria dos grandes vinhos é rica, tânica e muito potente. O total da safra alcançou 1,2 milhão de tonelada, sendo 12% menor que sua antecessora, a safra de 2004.

2004 – Uma das safras mais abundantes. Frio na medida certa na época da floração. A maioria dos produtores efetuou poda verde para obter melhor concentração nas uvas. Ano quente, com vinhos acima da média. Vinhos tintos intensos, especialmente Shiraz e Pinotage. Os produtores que tiveram paciência para colher a Cabernet Sauvignon no final da colheita alcançaram excelentes resultados.

2003 – Uma safra excepcional. Sem dúvida a melhor safra dos últimos 20 anos. Resultados muito bons em todas as regiões do país. Safra quente, seca e quase sem nenhuma doença. Os tintos são concentrados e para longa guarda. As condições climáticas originaram vinhos brancos com características tropicais. Os brancos devem ser consumidos rapidamente. Estão passando de seu pico de maturação.

2002 – Clima muito variável. As chuvas prolongadas no inverno e um mês de fevereiro muito quente fez com que os produtores acelerassem a colheita. Um ano em que os enólogos trabalharam muito. A uva tinta que mais resistiu a todas essas intempéries foi a Syrah.

2001 – Excelente safra, similar a 2003 em relação às condições climáticas. Os produtores de vinhos de alta gama agradeceram e talvez tenham produzido os melhores vinhos de todos os tempos da África do Sul. As uvas que foram colhidas tardiamente apresentaram fruta intensa e taninos muito maduros.

2000 – Uma safra cheia de emoções. No meio de janeiro um grande incêndio destruiu mais de 60% das uvas Chardonnay, Sauvignon Blanc e Chenin. A colheita foi mais cedo que o planejado devido ao grande calor. A safra também foi seca. Bons tintos, porém brancos com muita variação.

Copa do Mundo 2010
Pela primeira vez a Copa do Mundo será realizada no continente africano, mais precisamente na África do Sul. Cinco novos estádios de futebol estão sendo construídos para a ocasião. Será a primeira vez na história que o País terá estádios dedicados ao futebol. No governo do Apartheid, construíam-se apenas estádios dedicados ao rugby e ao críquete. A anfitriã de 2010 tem pouca tradição no futebol, mas a próxima Copa será uma ótima oportunidade para se conhecer melhor a história de luta e perseverança de um povo alegre e acolhedor.

Vinhos em destaque
A revista ADEGA degustou 38 vinhos desse intrigante país. Os 16 que mais se destacaram estão comentados na seção Cave dessa edição.