As lendas em torno do Châteauneuf-du-Pape são muitas. Uma das regiões com as normas mais rígidas do mundo produz excelentes vinhos, mas é bom saber que alguns produtores pegam carona no nome.
Marcello Copello Publicado em 19/05/2006, às 07h18 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h43
Fundador em Bordeaux de um vinhedo que leva seu nome, o Château Pape Clement, o sumo pontífice faleceu em 1314 por ingerir esmeraldas em pó, seguindo prescrições médicas. Seu sucessor, Jacques Duèse, assumiu o trono de São Pedro com o nome de João XXII e foi o líder da igreja de 1316 a 1334. Apesar de Clemente V ter ordenado a plantação de parreirais, é João XXII, um apaixonado por vinhos, quem detém o crédito do desenvolvimento dos vinhedos e de ter construído o lendário castelo, hoje a ruína mais famosa da região.
O 'Châteauneuf-du-Pape', literalmente 'castelo novo do Papa', foi a residência de Verão deste e de outros quatro papas que reinaram oficialmente em Avignon até 1378, ano do retorno a Roma, além de dois 'antipapas', pontífices dissidentes, eleitos em oposição ao poder romano.
A meio caminho entre Avignon e Orange, na margem esquerda do rio Ródano (Rhône), a cidade de Châteauneuf-du-Pape se chamava naquela época Calcernier. Sede do mítico castelo, até o século XVIII seu vinho era conhecido apenas como 'vin d'Avignon'. No século XIX, passou a ser chamado de Châteauneuf-du-Pape- Calcernier, e hoje, apenas Châteauneufdu- Pape, a AOC (Appellation d'Origine Contrôlée) mais notória das Côtes du Rhône Meridionales.
O nome típico e as lendas em torno desse vinho, que sempre exerceram grande apelo junto ao público, voltaram à baila há poucos anos, quando o Châteauneuf-du-Pape 1999 do produtor Guigal, um dos nomes importantes da região, ganhou o prêmio de Vinho do Ano de 2002, da renomada revista americana Wine Spectator.
Os produtores locais se vangloriam das normas e controles da região - as mais rígidas do mundo -, tendo sido precursoras da lei de Appellations d'Origine francesa. O Barão Le Roy, dono do Château Fortia, em 1923, descreveu o solo mais adequado a cada uma das castas plantadas. Também estudou a importância de práticas como a poda, o rendimento máximo (litros por hectare), a maturidade ideal das uvas e o modo de plantá-las e colhê-las. Pode-se dizer que as propostas desse vinhateiro colocaram a região na vanguarda da produção vinícola do início do século passado e deram origem à noção de terroir (conjunto de solo, clima e vegetação) que foi a base da lei de Appellations d'Origine adotada em toda a França em 1935.
São treze as uvas permitidas, as tintas: Grenache, Syrah, Cinsaut, Mourvèdre, Counoise, Picpoul, Terret Noir, Vaccarèse, Picardan, e Muscardin. E as brancas: Bourboulenc, Roussanne, Clairette. Se incluir as brancas Grenache Blanc e Picpoul Blanc, também permitidas, o total chega a quinze.
Atualmente, a região produz 94% de vinhos tintos e 6% de brancos; os rosados não são permitidos. Os brancos, embora em minoria, são interessantes, principalmente os da uva Roussanne, que são secos, com baixa acidez, aromáticos e alcoólicos. Os tintos, teoricamente, podem ser feitos de qualquer ou de todas as treze castas, misturando-se tintas e brancas.
Na prática, a base desses vinhos é quase sempre a Grenache (60% a 80%), que é a segunda variedade mais plantada do mundo (a primeira é a branca e espanhola Airén). A Grenache, disseminada na Espanha, ondeé chamada de Garnacha, e na Sardenha, sob o nome de Cannonau, amadurece precocemente e concentra muito açúcar e, normalmente, pouca cor. Em locais de solo pobre como Châteauneuf-du-Pape, alcança boa maturidade, gerando líquidos densos e encorpados, mas normalmente de pouca longevidade. A Syrah, embora não alcance a mesma complexidade que no norte das Côtes du Rhône, onde rende as jóias como os Côte Rôtie e os Hermitage, é o complemento ideal da Grenache, contribuindo com longevidade, cor, elegância, taninos finos e aromas de frutas e especiarias.
Embora existam grandes Châteauneufdu- Pape, a produção da região é muito irregular, com vários vinhos medíocres que pegam carona no nome e custam mais do que merecem. Os produtos variam muito, os bons são ricos, encorpados, bem equilibrados e com aromas de especiarias, terra molhada e frutas vermelhas maduras. Outros podem ser tânicos demais ou macios demais. Por lei possuem um mínimo de 12,5% de álcool, sem chaptalização (acréscimo de açúcar), é o maior limite mínimo da França, alguns podem chegar a 14,5%. Se esse teor alcoólico elevado não for contrabalanceado com taninos e boa acidez, o vinho fica desequilibrado, com excesso de álcool no paladar.
#Q#ADEGA testou dez dos Châteauneuf-du- Pape disponíveis no mercado, confira o resultado:
CDP Closerie de Vaudieu 1999 do Château de Vaudieu (Terroir, R$ 170). Cor granada clara, com reflexos alaranjados. Intenso no nariz, já com aromas da evolução, couro, especiarias (baunilha, noz moscada), musgo e muitas frutas (groselhas, framboesas, ameixas). Paladar mais leve, elegante, taninos macios e quentes (13,5%).
CDP Domaine de Villeneuve 2001 (World Wine, R$ 189). Um vinho elaborado a partir de agricultura biodinâmica. Vermelho granada entre claro e escuro, com bom ataque no nariz, com muita fruta madura, tostados, toques vegetais (musgo, menta) e violetas.
Médio a bom corpo, evoluiu bastante na taça, macio e longo.
CDP Château de La Gardine 2002 (Decanter, US$ 62,70). 70% Grenache, 20% Syrah, 5% Mouvèdre, 5% Muscardin. Vermelho rubi claro com reflexos granada. Elegante nos aromas, mostrando chocolate, café, terra molhada, junto com frutas negras e especiarias. No palato falta um pouco de estrutura, embora não de equilíbrio e elegância., com médio corpo, taninos prepresentes e 13,5% de álcool.
CDP Domaine du Vieux Mas des Papes 2000 (Expand, R$ 198). Elaborado com 70% Grenache e 30% Mourvèdre. Vermelho granada com reflexos alaranjados. Bom ataque no nariz, com muitas frutas (ameixas dominam) e pimenta do reino, canela, couro, minerais, musgo, violetas e caramelo. No palato é quente (14%) e macio, com bom corpo e fácil de beber, pronto.
CDP Lês Cailloux 2001, André Brunel (World Wine, R$ 180). Vermelho granada entre claro e escuro com reflexos alaranjados. Ótimo ataque no nariz, com muitas especiarias picantes e doces, madeiras, ameixa madura, café e outros tostados, toque vegetal de tabaco. Paladar envolvente quente e macio, com 14% de álcool, elegante, bons taninos, longo.
Châteauneu-du-Pape Élise 2001, Domaine Saint Benoit (Casa do Vinho R$ 139). Cor granada entre claro e escuro com reflexos alaranjados. Boa complexidade aromática, na transição entre fragrante e etéreo, mostrando couro, especiarias, musgo, frutas maduras e madeiras. Paladar com bom corpo, macio presentes, longo.
CDP 2001, Domaine E. Guigal (Expand, R$ 254,15). Outro clássico da região, elaborado com 50% Grenache e 50% de Mourvèdre e Syrah. Cor escura, entre rubi e granada. Ótimo ataque no nariz, excelente trabalho de madeira, com notas de evolução, couro, caça, frutas maduras (cassis, ameixa), pimenta do reino e toques de frescor (menta). Encorpado, taninos finos e macios, boa profundidade e complexidade, longo.
CDP 2001 Château de Beaucastel (Terroir, R$ 475). Um clássico. Vermelho granada escuro. Nariz impressiona com ataque e complexidade, com florais, frutas maduras (ameixas, cerejas preta), baunilha, alcaçuz, e toques de ervas. Paladar encorpado e macio, taninos muito finos bem equilibrados com uma acidez acima da média dos Châteauneufs em geral, final longo, o mais elegante da prova.
CDP Tardieu-Laurent 2001 (Terroir, R$ 350). Joint venture entre dois produtores, Dominique Laurent, da Borgonha, e Michel Tardieu, do Rhône. Com produção de apenas 40 mil garrafas, este é um vinho moderno e elegante. A madeira presente mas bem integrada. Perfil complexo e estruturado, com muita torrefação, especiarias em profusão, fruta maduras, toque de evolução (caça e defumados). Encorpado, 14,5% álcool, com taninos presentes. Impressiona bastante. Convém deixar respirar em um decanter.