As técnicas e tecnologias que mudaram a vitivinicultura
Arnaldo Grizzo Publicado em 28/03/2022, às 16h00
Diz-se que o vinho surgiu por acidente. Alguém teria esquecido uvas que fermentaram e, voilà, criou-se o vinho. Os povos antigos, porém, acreditavam que a bebida era um presente dos deuses. Desde então, contudo, sabe-se que o vinho é fruto, não somente da terra, mas também da técnica do homem. E graças à evolução dessas técnicas e à tecnologia, temos hoje vinhos cada vez melhores e mais diversificados.
Apesar de algumas técnicas ancestrais terem permanecido – algumas quase imutáveis desde sua origem –, muitas evoluíram e outras novas apareceram para revolucionar a forma como vinho é feito. Os primeiros manuais de vitivinicultura da antiguidade, como o “De Re Rustica”, de Lucius Junius Moderatus Columella, da época do Império Romano, por exemplo, ainda possuem as principais bases da produção de vinho, mas o que vemos hoje é um universo de técnicas e tecnologias com as quais os romanos nunca sonharam.
Durante os séculos de história do vinho e da humanidade, diversas novidades e descobertas influenciaram decisivamente na produção do vinho, desde o manejo da vinha, passando pelo processo de fermentação, comércio e até chegar à degustação. Vamos então elencar aqui algumas das técnicas e tecnologias que mudaram ou têm mudado a forma como o vinho é feito.
Muita gente desconhece, mas o processo de pasteurização, criado na década de 1860 pelo francês Louis Pasteur, teve origem em uma demanda de produtores de vinho. Eles queriam saber por que suas bebidas estragavam rapidamente e como fazer para evitar esse problema. Pasteur então aqueceu o vinho a 60o C por alguns minutos e depois o resfriou. Com isso, notou que os microrganismos presentes na bebida não se proliferavam mais e, assim, o vinho se mantinha íntegro por mais tempo. O processo observado e criado por Pasteur foi revolucionário na época e influenciou não somente a indústria do vinho, mas diversas áreas. A principal talvez tenha sido a medicina, pois descobriu-se a importância da higiene – até então, acreditava-se na teoria da “geração espontânea” – para a não proliferação de doenças. Com o tempo, contudo, descobriram-se outras formas de preservar o vinho sem necessariamente precisar pasteurizá-lo.
Atualmente pensamos na barrica de carvalho apenas como modo de armazenagem do vinho durante um período de estágio desejado pelo produtor. No entanto, o surgimento das barricas de carvalho foi um dos grandes marcos de desenvolvimento da história do vinho. Acredita-se que os primeiros a fabricarem barricas em larga escala tenham sido os romanos, poucos séculos depois de Cristo graças ao contato que tiveram com os gauleses. Até então, transporte e armazenagem de vinho (e outros líquidos) eram feitos nas frágeis ânforas de barro. Maiores e mais resistentes, as barricas revolucionaram a logística. Além disso, com o tempo, descobriu-se também o efeito da passagem do vinho pela madeira e, mesmo após a aparição das garrafas de vidro para a estocagem, os produtores continuaram (e continuam) usando as barricas seja para fermentar, seja para amadurecer o vinho, dependendo do estilo que pretendem obter.
A seleção manual das uvas é algo muito antigo. Desde o princípio dos tempos, os produtores cuidadosos selecionam um a um os cachos e grãos em perfeito estado para obter o melhor vinho possível. No entanto, mais recentemente, esse processo pôde ser aprimorado e agilizado graças à tecnologia. Se antes uma boa seleção dependia de vários funcionários bem treinados, agora basta uma máquina de leitura ótica. Há diversas no mercado que fazem esse serviço muito melhor e mais rapidamente do que um humano. Basta o produtor informar o exato tipo de grão a ser selecionado – levando em consideração formato, cor etc. – para que a máquina em milésimos de segundo reconheça quais estão de acordo e quais não, descartando o que não interessa. Com isso, a produção tem sido cada vez mais qualitativa, com uvas “perfeitas”, já que esses sistemas não somente separam as uvas, como ainda podem desengaçar e remover outros materiais estranhos (sujeiras e afins).
Diz-se que a inventora da mesa de remuage (técnica de girar as garrafas de Champagne para que, com o tempo, as leveduras mortas se acumulem no gargalo e possam ser removidas) teria sido Nicole Barbe Ponsardin, a famosa Veuve Clicquot, em 1816. Essa invenção de pouco mais de 200 anos mudou completamente a produção de espumantes na época, sendo copiada por todos os produtores desde então. Todavia, é muito mais recente, da segunda metade do século passado, o surgimento dos giropallets. Eles nada mais são do que máquinas com grandes caixas metálicas que podem abrigar centenas de garrafas de espumante e, graças à sua programação, de tempos em tempos, fazem o mesmo movimento que um ser humano demoraria horas, ou talvez dias, para realizar na mesma quantidade de garrafas. Com os giropallets, a indústria de Champagne e espumantes de segunda fermentação em garrafa em geral tem sido capaz de diminuir custos e, mais que isso, ganhar agilidade na produção.
O oxigênio pode tanto ser o herói quanto o vilão na história de um vinho. Quando escasso, pode trazer problemas (como retardar a fermentação ou dar ao vinho tons redutivos, por exemplo), assim como quando em excesso, podendo causar oxidação. O bom manejo do oxigênio é essencial em cada etapa da vida de um vinho. Nos anos 1990, a técnica de micro-oxigenação mudou o panorama dos vinhos no mundo. Ela consiste em introduzir oxigênio em quantidades pequenas e de forma controlada durante os primeiros estágios da fermentação e/ou durante a maturação. Esse processo ajuda a emular períodos mais longos de estágio do vinho, fazendo com que ele ganhe cor, aromas, tenha uma melhor sensação em boca etc. Desde que surgiu e foi aceita no processo de vinificação pela União Europeia (em 1996), até hoje, a micro-oxigenação é um tema controverso, gerando longos debates entre “tradicionalistas” e “modernistas”.
Poucas invenções causaram tamanha revolução na vitivinicultura quanto o surgimento dos tanques de aço inoxidável. Diferentemente dos recipientes de concreto e madeira até então utilizados na vinificação, as cubas de inox – uma inovação “emprestada” da indústria de laticínios – eram práticas, fáceis de limpar e manusear, fazendo com que o vinho, depois de séculos, enfim ganhasse um local quase que completamente estéril para ser produzido. Mais que isso, esses tanques deram ao produtor muito mais controle sobre as diversas fases de vinificação, pois, entre outras coisas, facilitaram o controle de temperatura. Se antes os enólogos viviam aflitos durante a fermentação quando a temperatura subia demasiadamente, especialmente em locais quentes, agora é possível fazer ajustes finos sem precisar colocar pedras de gelo sobre o mosto. Os tanques de inox tornaram-se mais comuns na vitivinicultura a partir dos anos 1960.
Onde e quais uvas plantar? Para muitos, essa pergunta talvez não faça sentido. Ninguém questiona o fato de um Grand Cru borgonhês estar cultivado com Pinot Noir, por exemplo. Mas “descobrir” que a Pinot é a variedade ideal para essa região levou alguns séculos de observação por parte dos pacientes monges beneditinos. Atualmente, porém, esse tipo de análise pode ser feita em alguns poucos dias, ou até mesmo em segundos. Entre as diversas tecnologias que vêm mudando a vitivinicultura recente, algumas das mais relevantes estão ligadas à análise do solo. Hoje, antes de cultivar, todo produtor tem feito estudos aprofundados em suas propriedades, com avaliação de condutividade elétrica (que, entre outras coisas, vai informar a salinidade da terra), composição mineral, densidade etc. Com isso, cada milímetro do vinhedo é mapeado para que se obtenha a melhor resposta possível com as uvas plantadas.
O processo de osmose (quando duas soluções de concentrações diferentes são separadas por uma membrana semipermeável, o solvente tende a se mover na direção do local mais concentrado para poder, assim, encontrar um equilíbrio químico) é conhecido a muito tempo apesar de só ter sido observado no século XVIII. O processo de osmose reversa, contudo, é mais recente. Ele foi inicialmente pensado para dessalinizar a água do mar. E como esse processo foi capaz de entrar e inovar a vitivinicultura? Diz-se que um dos primeiros a usar o método foi Clarck Smith, um controverso cientista fascinado por vinhos, no começo dos anos 1990. Ele também teria sido o pioneiro da micro-oxigenação. Com a osmose reversa, produtores cujos vinhos que tendem a ser mais alcoólicos, por exemplo, podem diminuir a teor de álcool sem dano às outras propriedades da bebida – cores, sabores e aromas. Ao aplicar pressão, apenas água e álcool separam-se do vinho, são destilados e depois acrescentados novamente à parte restante.
O aparecimento das tampas de rosca (ou screwcaps) na indústria do vinho ocorreu somente no final dos anos 1950. No entanto, esse método de fechamento de garrafas já tinha patente reconhecida há mais de um século. Apesar da inovação, que trouxe muito mais praticidade na hora de servir e conservar o vinho, as tampas de rosca não dominaram o mercado como alguns poderiam supor. Ainda assim, elas foram um marco evolutivo singular na indústria do vinho, pois foram capazes de influenciar não somente os consumidores, mas também seus concorrentes, os produtores das tradicionais rolha de cortiça, que, desde então vêm desenvolvendo tecnologias para eliminar os defeitos (o famoso TCA, ou bouchonné) que deixavam produtores e consumidores com receio na hora de abrir uma garrafa. Apesar de cada vez mais comuns, tampas de rosca e rolhas de cortiça parecem fadadas a coexistir e a discussão sobre suas eficácias também deve perdurar por mais algum tempo.
A videira é uma planta “sobrevivente”. Ela é capaz de se adaptar aos locais mais adversos. São necessários poucos nutrientes e pouca água para que ela cresça, floresça e dê frutos. Desde a antiguidade o homem criou meios de irrigação para poder cultivar vinhas em locais muito áridos, onde nada mais era possível de ser plantado. No entanto, foi muito mais recentemente que se descobriu que, ao se controlar o déficit de água da videira, era possível criar um ambiente ideal para que a planta pudesse dar o melhor de si, gerando as melhores uvas possíveis. Assim, o controle de irrigação tornou-se cada vez mais específico, minimalista, para que a videira esteja sempre com o estresse hídrico perfeito para o seu crescimento e florescimento. Graças a sistemas como o de irrigação por gotejo, implementado na década de 1950 em Israel, hoje é possível manejar a água para produzir um vinho de qualidade.
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