Marcelo Copello Publicado em 23/07/2008, às 13h46 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45
Admitamos, nós brasileiros temos a tendência a dar mais valor ao que vem de fora e desprezar nossas raízes. Fomos colonizados, é verdade. Coq au vin é chic, Tagliatelle ai frutti di maré é puro glamour. Esquecemos, no entanto, que estas receitas são de origem popular em seus países. Deixemos de lado então os preconceitos e vamos nos deliciar com um pouco da "baixa gastronomia" carioca ao lado de vinhos altamente sofisticados, de "alta enologia". Um crime para os ortodoxos, que cometemos com deleite e em honorável companhia.
O local desta "heresia" foi o Instituto Cultural Cravo Albin, um dos lugares mais bonitos da cidade maravilhosa. Localizado em um casarão antigo, na Urca, o ICCA guarda em seu acervo inúmeras obras de arte e um verdadeiro museu da música popular brasileira. Seus jardins encravados na pedra, com cachoeiras naturais e inebriante vista da cidade, são frequentemente requisitados por fotógrafos profissionais. O ICCA foi criado em 2001 por Ricardo Cravo Albin com a finalidade de promover e incentivar atividades de caráter cultural (em especial da música) visando a divulgação, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro.
Improvável encontrar um local mais apropriado para o Enogourmet deste mês e impossível reunir um grupo mais expressivo à mesa: o anfitrião Ricardo Cravo Albin; o casal Cléa e Mário Mendonça - ele o mais importante pintor sacro brasileiro contemporâneo, com obras expostas no museu do Vaticano; Dorival Bruni - geólogo da indústria petrolífera; Ciça Roxo - chefe de cozinha e consultora gastronômica; e o casal Márcia Martins e Ziraldo - ela produtora artística e ele escritor e cartunista que dispensa apresentações.
As escolhas e os pratos
O ICCA procura preservar a culinária popular carioca por meio de encontros batizados de "carioquices", que reúnem personalidades em torno de receitas especialíssimas. Em um destes encontros, o jornalista Villas-Boas Correia, o publicitário Lula Vieira, o ex-presidente da confraria Companheiros da Boa Mesa, Reinaldo Paes Barreto, e a Tia Sunica, da velha guarda da Portela, elegeram a melhor farofa do Rio.
Pois esta famosa farofa, da chef Selma, juntamente com a não menos famosa carne assada da Zica, formam o prato principal de nosso enogourmet deste mês. Falecida aos 89 anos, em 2002, Dona Zica foi viúva de Cartola e um dos baluartes da Mangueira, tradicional escola de samba do Rio. Dona Zica também era cozinheira de mão cheia, como pudemos comprovar na receita preservada pelo ICCA, que foi acompanhada por três belos tintos europeus sem deixar saudade de nenhum boeuf à la bourguignonne.
Em um encontro com a "baixa gastronomia" carioca, não poderiam faltar os petiscos, como pastéis, empadinhas, bolinhos de bacalhau etc, aqueles que normalmente são acompanhados com um chope gelado. Pois escolhemos as empadinhas, de queijo e de camarão, testadas com um rosé bem brasileiro e com dois nobres brancos franceses, da Borgonha e da Alsacia.
A Prática
Empadinhas
Provamos antes os vinhos. Foi unânime que o rosé é uma boa surpresa, pois esta categoria ainda sofre preconceitos, principalmente trazendo a bandeira verde-amarela. O rosé agradou bastante, mas o exemplar mais votado na prova antes das empadas foi o Riesling, com quatro votos, seguido do Borgonha com três.
A empadinhas de queijo e camarão se mostraram mais leves e delicadas, menos amanteigadas do que poderia se esperar e sem a azeitona, que muitas vezes muda o foco do paladar. Neste contexto, o antes predileto Riesling não ganhou nenhum voto com a empada e o campeão foi o Borgonha, eleito por Cléa, Márcia, Ciça, Mário e Dorival como a melhor harmonização por sua boa acidez. Ziraldo e Ricardo comeriam suas empadinhas com o rosado nacional. Eu faço uma ressalva: escolhi o rosé para a mais saborosa empada de camarão e o chardonnay francês para mais untuosa empada de queijo.
Carne assada da Zica com farofa |
"Carne assada da Zica com farofa"
Os três tintos agradaram muito e a diversidade de estilo foi muito bem percebida. A carne assada (que derretia na boca), preparada pela própria chef Selma, levava vinho em seu cozimento e suco de beterraba em seu molho, e a farofa tinha muita cebola quase queimada na manteiga. Vale a nota de que a farofa roubou a cena e confirmou o título d e "melhor da cidade"
O tinto da Puglia agradou a todos puro, mas foi descartado com a carne em decisão unânime, pois ficou abaixo do nível de paladar do prato, faltou-lhe estrutura e sobrou maciez. O caldo espanhol impressionou muito por sua potência e estilo, tinha muitas afinidades aromáticas com a receita e estava em nível de sabor ligeiramente acima do prato, o que considero o ideal. A Espanha levou meu voto e os de Dorival e Márcia.
O campeão, no entanto, foi o representante luso, por seu equilíbrio e elegância, sem deixar de ter boa estrutura, necessária a saborosidade do prato. O Pedro & Inês levou o voto de Cléa, Ciça, Ricardo, Mário e Ziraldo.
Como conclusão geral, posso dizer que o encontro da "baixa gastronomia" com a "alta enologia" foi muito natural, as harmonizações fluíram e nada pareceu forçado ou fora do lugar.
Ao ver vinhos sofisticados casarem tão bem com receitas "de morro" carioca, lembrei de Chica da Silva, a "escrava que se fez rainha", personagem histórica que por sua beleza invulgar seduziu um riquíssimo nobre português.