Entre as pequenas cidades de Encruzilhada do Sul e Pinheiro Machado está a nova região de produção de vinhos brasileiros
Sílvia Mascella Rosa* Publicado em 24/09/2008, às 07h45 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45
Percorrer os caminhos do vinho brasileiro é sempre surpreendente. Neste ano de 2008, ADEGA já esteve no semi-árido nordestino, nas regiões altas e frias de Santa Catarina e agora chega até alguns novos municípios produtores da Serra Gaúcha e da Serra do Sudeste, local onde algumas das grandes vinícolas brasileiras estão formando enormes vinhedos para oferecer ao mercado produtos diferenciados e de qualidade certificada.
Nossa mais famosa região vinícola é, sem dúvida alguma, a Serra Gaúcha, da qual faz parte a primeira área de Indicação de Procedência brasileira, o Vale dos Vinhedos. De dentro para fora, sabemos que o Vale está chegando ao seu limite de plantio. Como área de procedência certificada, as regras que controlam sua existência são rígidas e hoje sobram poucas terras de qualidade às vinícolas para que plantem suas uvas. Ele não deixa de ser, no entanto, o pólo para onde convergem as atrações turísticas e as grandes instalações produtoras das vinícolas, incluindo suas adegas.
Ainda no inverno, as videiras são podadas para direcionar os galhos. As gotas de seiva que aparecem (o "choro da videira") anunciam a chegada da primavera e o despertar da planta |
Os outros municípios que compõem a região da Serra Gaúcha vêm se desenvolvendo com constância como Garibaldi, Flores da Cunha e Farroupilha. Mas algumas novidades interessantes estão aparecendo em cidades a noroeste de Bento Gonçalves, como Guaporé, na linha Pinheiro Machado (onde está a vinícola Gheller) e Casca, na direção de Passo Fundo (onde está a vinícola Don Abel) que tem seus vinhedos na pequena cidade de David Canabarro, ainda mais ao norte.
As duas vinícolas são frutos de projetos pessoais de empresários que estavam ou ainda estão em outros setores da economia, como os dois irmãos Gheller, proprietários de uma empresa de jóias folheadas que se dedica à exportação. Eles fundaram a vinícola em 2004, em terras pertencentes ao avô, com três hectares de Cabernet Sauvignon em mudas importadas da França. O vinhedo foi cuidadosamente implantado em espaldeiras para extrair o máximo da qualidade de cada variedade, cuja produção não ultrapassa os oito mil quilos por hectare.
Hoje, as terras já produzem Merlot, Chardonnay, Tannat (que apareceu em CAVE na edição anterior), Carménère e Trebbianno, além de uma nova parcela de Pinot Noir nos quase 20 hectares implantados. O terreno da propriedade forma um pequeno vale, com declives interessantes e orientação solar lestenorte. Em fase de conclusão, a vinícola abriga maquinários italianos modernos e cave climatizada com capacidade para 300 mil garrafas. “Eu viajo muito e conheço vinícolas ao redor do mundo. Como empresário, eu não ficaria contente se não estivesse tentando fazer o melhor vinho possível”, explica José Antonio Gheller.
Mais ao norte está a vinícola Don Abel, de Sérgio Luiz de Bastiani e mais dois sócios. Ele deixou para trás um alto cargo de executivo no ramo de tintas para seguir uma antiga paixão e implantou, em 1999, 20 hectares com cinco varietais no município de David Canabarro a 800 metros acima do nível do mar. A primeira safra, com dois varietais, só chegou ao mercado em 2004, quando também foi construída a vinícola às margens da rodovia. O projeto da Don Abel tem diferenciais interessantes, uma vez que nenhum de seus cinco varietais (ainda raros no mercado) passa por madeira. “Acreditamos que é preciso fortalecer a marca do vinho nacional também com vinhos mais acessíveis e mais fáceis de beber e não somente com vinhos caros. Quero fazer bons vinhos a bom preço”, conta Sérgio Bastiani. O projeto vai até 2009 quando devem estar totalmente concluídas as instalações do varejo, do restaurante tradicionalmente gaúcho e da cave subterrânea.
Propriedade da Angheben em Encruzilhada do Sul: colinas suaves e pouca chuva |
De volta à estrada, o caminho que sai de Bento Gonçalves nos leva ao sul, ligeiramente a oeste de Porto Alegre. A região conhecida como Serra do Sudeste forma uma espécie de ferradura virada para o mar, ligando os municípios de Encruzilhada do Sul e Pinheiro Machado, separados ao meio pelo rio Camaquã, que deságua na Lagoa dos Patos. Essa região faz divisa com outra importante área vinícola brasileira, a Campanha Gaúcha, dividida entre Campanha Meridional (que começa na cidade de Candiota) e Campanha Oriental, que segue a linha da fronteira com o Uruguai.
A Serra do Sudeste tem colinas suaves, que facilitam o plantio e a mecanização, tornando-a um terroir mais simples de trabalhar. Aliadas a isso, estão as condições climáticas, mais favoráveis do que no Vale dos Vinhedos. Essa região tem o menor índice de chuvas do Estado do Rio Grande do Sul, além de noites frias mesmo no verão, justamente a época da maturação das uvas. “Essas condições naturais, além de um solo mais pobre e de origem granítica, nos ajudam a ter maior concentração de cor, estrutura e potencial de envelhecimento de nossos vinhos”, explica Idalêncio Angheben, um dos pioneiros da região, que conheceu estas terras quando trabalhava para Chandon na década de 1990.
A estrada que leva até a propriedade da Chandon serpenteia elegante entre campos de soja e de trigo, mas logo se avistam os vinhedos ordenados com cuidado nos quase 300 hectares da empresa. Nesse campo, que segue até onde a vista alcança, estão plantados 42 hectares das variedades Chadonnay, Pinot Noir e Riesling, todas irrigadas por gotejamento. De lá saem as uvas que vão compor alguns dos espumantes mais apreciados no Brasil, vinificados na sede da empresa em Garibaldi (veja o Brut Resérve em CAVE).
Angheben foi o responsável pela compra dessas terras para Chandon e não deixou passar a oportunidade de comprar também para si. Ele e seu filho Eduardo, um jovem enólogo, começaram a plantar em sua propriedade no ano de 2001 e tiveram a primeira safra comercial em 2004. Hoje são 90 hectares plantados com variedades como Teroldego, Nebiolo, Barbera e Touriga Nacional entre outras. Quase dois terços da produção de altíssima qualidade são vendidos para outros vinhateiros. O que fica é rigorosamente controlado por Angheben e Eduardo e compõe o portfólio da empresa, que tem um espumante brut (já avaliado em CAVE), além de tintos encorpados como o Teroldego e o Touriga Nacional, comercializados pela Mistral.
Chandon na Serra do Sudeste: vinhedos a perder de vista |
A produção de castas que vão muito além das tradicionais Cabernet e Merlot parece ser uma vocação da região, onde também estão vinícolas importantes como a Lídio Carraro e a Casa Valduga. Os dois produtores têm em suas terras uvas diferenciadas, cuja produção seria dificultada no Vale dos Vinhedos, local de suas sedes, como a Marsellan, a Arinarnoa e a Periquita da Casa Valduga e a Tempranillo, a Tannat e a Nebiolo da Lídio Carraro.
Os planos dos irmãos Valduga para seus 140 hectares plantados são ambiciosos, embora existam alguns problemas, como a distância para o transporte da colheita (são mais de 250 quilômetros até o Vale dos Vinhedos para levar, por exemplo, as uvas Malbec dos vinhos Amante rosé e Brut Amante) e a compra de insumos, uma vez que a região estava mais preparada para atender a outros cultivares que não as uvas finas. “A grande vantagem é o clima, o solo mais pobre e a facilidade nos cuidados com a terra”, explica Juarez Valduga. Seu irmão João acrescenta que a região quase virgem de pragas possibilitou a implantação de material geneticamente sadio e certificado, o que produz uvas de melhor qualidade. “Temos planos de montar uma cantina por lá, pois a região vai crescer muito”, conta João Valduga.
Vinícola Gheller ao norte da Serra Gaúcha: terreno promissor |
A expansão para a Serra do Sudeste é sinal claro da busca por qualidade dos produtores brasileiros e da diversidade que nossos vinhos estão, finalmente, abraçando. “Escolhemos as terras de lá após exaustivas pesquisas da equipe técnica por todo o Estado e da compilação de dados muito favoráveis à região”, relata Patrícia Carraro. Dos 200 hectares da família, 30 deles estão em produção, divididos em dez parcelas distintas. A Lídio Carraro fez da região um enorme laboratório, de onde pretendem continuar tirando uvas para produzir vinhos com a mais pura expressão do terroir. Até o momento, somente o vinho premium Quorum (que já apareceu em CAVE) não vem de Encruzilhada, os outros todos são de lá, como o Singular Tempranillo publicado na última edição. “Eventualmente, em uma safra podemos não produzir um determinado vinho, mas sempre que ele for ao mercado, será expressivo e não comum”, finaliza Patrícia. A Serra do Sudeste, como nova fronteira, tem a chance de percorrer um longo caminho de excelência para os vinhos brasileiros.
* de Encruzilhada do Sul