Água de beber

O ciclo das águas une rios, mares, vulcões e inunda restaurantes e lojas

Sílvia Mascella Rosa Publicado em 18/10/2007, às 14h45 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

Seu terroir está nas nuvens, nas geleiras ou ainda embaixo da terra, protegido por camadas de pedras e sedimentos. Sua história é anterior a todos nós. A maioria das religiões acredita que, de alguma forma, somos filhos dessa substância. Inundações causam fome e doenças, secas significam morte em potencial. É um líquido extraordinário e embora seja utilizado para beber, limpar, nadar, pescar e cozinhar, raramente damos a devida atenção a ela em nossas vidas. Água. O corpo humano é composto por 70% dela, os oceanos formam mais de 70% da superfície da Terra, a placenta que nos protege no ventre é quase somente constituída de água, o leite materno tem a quantidade suficiente de água para que o bebê não precise de complemento algum por meses. A vida não pode evoluir nem continuar sem ela.

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Como a maioria dos humanos, tendemos a não dar atenção a algumas coisas até que elas nos faltem ou virem moda. A água nunca saiu de moda, mas há alguns anos os europeus, que parecem entender de água muito mais do que qualquer outro povo, conseguiram despertar o interesse de muitas pessoas com seu natural apreço aos detalhes. Designers renomados passaram a aplicar seus conhecimentos no desenho da singular transparência de uma garrafa d’água. Sommeliers passaram a dar mais atenção aos tipos de água que serviam para acompanhar os vinhos, além dos pratos nos restaurantes. As empresas resolveram aproveitarse desse renascimento e lançar novos produtos, com caras ainda mais novas, e reforçar marcas consagradas fora de seus mercados habituais.

Não é à toa que ultimamente se fala de água por todos os lados. Superficialidade? Longe disso. Há muito a se falar e a se descobrir sobre as águas. E, ao se parar para pensar, é fácil lembrar que, entre as várias opções, você também tem uma preferência, nem que seja aquela do antigo filtro de barro da casa da vovó.

Antes de mais nada, é bom lembrar de algumas coisas que ficaram em nossos cérebros desde a época em que não existia internet e os professores faziam chamada oral: inodora, insípida e incolor. Certo? Guarde somente o incolor. O resto é praticamente falso. A água que todos bebem não é simplesmente H2O (duas moléculas de hidrogênio ligadas por uma de oxigênio), nem poderia ser. Para ser "bebível" (ou potável), a água precisa conter minerais, provenientes de sua origem e capazes de prevenir a contaminação. “A água que é somente H2O é chamada água desmineralizada, utilizada para a manipulação de medicamentos e várias aplicações industriais, como solvente ou reagente, por exemplo”, explica a engenheira química e especialista em cosmetologia, Sônia Corazza.

Água: Muito longe da simplicidade na qual acreditamos. Muito mais antiga do que as fontes medicinais freqüentadas por nossas tias no interior dos estados. Pinturas egípcias do século XV antes de Cristo já mostravam o povo tratando a água e utilizando sifões para coletá-la. Hipócrates, o pai da medicina, inventou um aparato para armazenar a água da chuva, isso no século V antes de Cristo. O general Aníbal, logo após derrotar os romanos no ano 218 antes de Cristo, parou com suas tropas ao sul da França em uma fonte conhecida como Perrier. Os romanos têm uma longa e bem preservada história sobre as águas, criaram os aquedutos, 400 antes de Cristo. Esse sistema abastecia cidades inteiras até evoluir para a primeira rede de águas públicas do mundo, no século III depois de Cristo. De Roma esse sistema foi parar na Grécia, em Cartago e no Egito. Os banhos romanos eram locais de reuniões políticas, e as fontes eram guardadas como locais sagrados. Durante os séculos seguintes houve poucas mudanças no mundo das águas, exceto pelo fato de que o crescimento exagerado de algumas cidades e a falta de saneamento básico favoreceram epidemias (como a peste negra). Mas, em 1804, na Escócia, surgiu o primeiro sistema para se levar água potável a uma cidade inteira. Três anos depois, a cidade de Glasgow já tinha água em suas torneiras. Em Paris, o tratamento das águas começou em 1806, utilizando filtros de carvão e areia. Cavalos eram usados para mover as bombas. Um século depois, nos EUA, a cidade de Jersey foi a primeira no mundo a utilizar cloro para desinfetar as águas, o que acabou tornando-se um padrão internacional, além do uso de iodo para evitar a doença conhecida como bócio endêmico. Aliás, é nos EUA que se realiza anualmente o maior concurso de águas do mundo, na estância hidromineral de Berkeley, na Virginia, reunindo especialistas, curiosos e engarrafadores. Essa estância americana é considerada o primeiro SPA do país, sendo que até mesmo os nativos americanos já se beneficiavam do uso medicinal de suas águas.

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Originária de Bergamo, a S. Pellegrino é rica em minerais

Através dos séculos as águas não deixaram de seguir seu rigoroso ciclo. Elas estão sempre em movimento, acima, abaixo e sobre a superfície da terra. Sem começo e sem fim. As professoras acertaram ao ensinar que a água muda de estado físico em seu ciclo, ela é líquida, é vapor e é gelo, quer esse processo dure segundos, quer dure milhões de anos. A água da chuva pode parar em uma geleira que ainda guarde dinossauros em seu interior, pode ser absorvida pela terra e ficar armazenada em um aquífero a muitos metros da superfície, pode encher rios e depois evaporar a caminho das nuvens, condensando-se novamente como chuva. Dessa forma, ela pode ser captada diretamente das chuvas, do degelo, das nascentes (ou fontes) e de poços que ligam os aquíferos (enormes depósitos subterrâneos) até a superfície. “As águas de degelo costumam ser mais leves, principalmente as canadenses e as do norte da Europa, como a Voss norueguesa”, explica o português Pedro Cardoso, bartender e professor da Escola Senac de Turismo e Gastronomia, em São Paulo. Ele explica que águas de diferentes fontes devem ser analisadas de maneiras diferentes, pois cada fonte tem características únicas que deixam nas águas suas marcas minerais (sódio, magnésio, cálcio e potássio). “A composição do solo onde essa água ficou armazenada confere uma gama de sabores diferentes para cada uma”, completa o professor.

Atualmente, algumas das águas minerais mais exóticas encontradas no mundo vêm da maior fonte natural conhecida, o lago Baikal na Sibéria, de alguns mananciais subterrâneos das ilhas Fiji, de formação vulcânica, ou da Nova Zelândia, de um aquífero considerado um dos mais puros do mundo. Águas como essas já podem ser degustadas em bares especializados, como o AquaBar em Beverly Hills (que organiza degustações para clientes e para empresas que queiram montar suas cartas de águas), o restaurante londrino Landmark (cuja carta contêm 21 tipos de água, com óbvia ênfase nas da Inglaterra e da Escócia) e a loja Colette, em Paris, que comercializa mais de 100 marcas.

A grande maioria dessas águas não está à venda no Brasil. Em nosso mercado chegam alguns rótulos importados consagrados, que atravessaram o teste do tempo e dos modismos, carregando características de solos antigos e peculiares. Juntamente com as águas brasileiríssimas, esses rótulos compuseram uma degustação organizada na Ritto Pizza Bar, em São Paulo. Essa degustação reuniu a engenheira química Sônia Corazza, os publicitários Daniela Serafim e Márcio Bezerra, o designer Cristiano Rosa, a proprietária da Casa London, Silvina Rodrigues Salva, e a repórter e sommeliére que assina esta matéria. Utilizou-se uma ficha de degustação que contemplava 11 critérios, entre eles o frescor, a efervescência, a salinidade e a leveza. Cada um deles recebia notas de 0 a 10, mas essas notas referiam-se mais à percepção desses fatores do que ao fato de serem positivos ou negativos. Assim, provar águas não é uma questão de conceder notas e prêmios, mas sim uma questão de gosto, pois precisamos de nossos sentidos e de nossas papilas gustativas para discernir entre o doce, o ácido, o amargo e o salgado, principalmente em concentrações tão sutis.

As 10 águas provadas
Importadas:
1)
Acqua Panna, Fonte Panna Scarpenia – Toscana (Itália): Sem gás, leve e bastante neutra. Diferencia-se pela delicadeza.
2) Pedras Salgadas, Fonte Alto Tâmega – Trás os Montes (Portugal): Com gás, alta salinidade, ainda assim macia. O perlage persistente agrada e ajuda a limpar o paladar.
3) Perrier, Fonte Perrier – Rhône (França): Com gás, sabor nítido e leve, com um bom equilíbrio.
4) S.Pellegrino, Fonte S.Pellegrino – Bergamo (Itália): Com gás, rica em minerais, bastante marcante e agradável.

Nacionais:
Sem Gás
1)
Blue Ouro Fino, Fonte Ouro Fino - Paraná (Brasil);
2) Prata, Fonte Sítio Prata, Águas da Prata – (Brasil);
3) Schincariol, Fonte Nossa Senhora Aparecida, Itu (Brasil).

As águas sem gás nacionais receberam comentários mais harmônicos dos participantes, com maior ênfase na Schincariol e na Prata. Isso se deve à leveza natural de nossas águas e ao seu frescor, resultantes da concentração de minerais nas águas brasileiras, que é menor do que nas européias.

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As àguas degustadas por ADEGA

Com Gás
1)
Prata, Fonte Sítio Prata, Águas da Prata – (Brasil)
2) São Lourenço, Fonte Oriente – São Lourenço (Brasil)
3) Schincariol, Fonte Nossa Senhora Aparecida, Itu (Brasil)

As gaseificadas dividiram opiniões. A Schincariol foi considerada saborosa, quase um refrigerante. Já a Prata foi considerada harmônica e a São Lourenço, a única naturalmente gaseificada, bastante leve.

As variadas opiniões reforçam a teoria de que quando se trata de água, é preciso atender ao próprio paladar, mas sem deixar de provar o que aparecer de novo. No entanto, é interessante perceber que algumas águas têm características que as aproximam de um prato, de uma necessidade física e até mesmo de um vinho. “Águas mais pesadas (como as naturalmente gaseificadas ou mais salinas) são interessantes em jejum, fazem bem para o organismo e limpam o palato. As que são gaseificadas artificialmente têm uma utilização muito agradável quando se procura uma bebida que é quase uma soda”, diz Pedro Cardoso. Água de beber, água de degustar, água de refrescar. Prove e escolha a sua!

Com que água eu vou
A combinação entre águas, vinhos e gastronomia é um caminho muito sutil. O professor do Senac, Pedro Cardoso, conta que uma água delicada, apesar de carbonatada, como a Perrier francesa, não pode ser tomada para acompanhar uma massa com molho de tomates. Ele explica que a acidez do molho e seu aroma “matam” a água. Nesse caso, é melhor pedir uma água sem gás, leve por natureza. Não se esqueça de que uma boa água deixará sua boca ainda mais preparada para um grande vinho. Abaixo, algumas regras gerais para não errar na escolha:

•Não servir a água extremamente gelada. Ela adormecerá suas papilas e impedirá que você perceba os sabores dos vinhos;
•Não colocar gelo no copo, ele altera as propriedades da água;
•Vinhos brancos, em geral, combinam muito bem com águas sem gás, mais leves e suaves;
•Vinhos rosés dependem de sua intensidade e corpo, os mais intensos podem acompanhar água gaseificada, os mais leves, sem gás;
•Vinhos tintos jovens merecem águas pouco mineralizadas, mas não necessariamente sem gás;
•Vinhos tintos encorpados podem ser tomados com águas com gás e mineralizadas, elas potencializam os taninos;
•Vinhos tintos especiais merecem uma água leve, sem gás, nada que atrapalhe sua sutileza e grandeza de sabores;
•Vinhos de sobremesa, em geral, combinam bem com águas com gás, mas uma combinação mais ousada é provar os vinhos do Porto com uma água gaseificada. É uma grata surpresa;
•Espumantes tradicionais vão bem com os dois tipos de água. Já os Champagnes especiais (Vintage, Milesimé) devem ser degustados com águas leves e sem gás.