Em Oakville, na Califórnia, uma cidadezinha de 71 habitantes abriga uma das vinícolas mais cults do mundo
Por Arnaldo Grizzo Publicado em 15/07/2016, às 11h00 - Atualizado às 11h19
São apenas 500 caixas de vinho por ano. A safra 2011 foi vendida por US$ 850 a garrafa para os poucos felizardos cujos nomes estão na lista de compradores da vinícola Screaming Eagle, em Oakville, na Califórnia, uma cidadezinha de 71 habitantes (isso mesmo, 71 segundo o censo de 2010), que, apesar de pouco expressiva em termos populacionais, abarca algumas das principais marcas de vinho dos Estados Unidos.
Além de Screaming Eagle, a região vinícola de Oakville, de 5.700 acres (sendo 5 mil plantados) contempla a vinícola Opus One, parceria de Robert Mondavi e a empresa do Barão Phillipe de Rotschild, proprietários do Mouton-Rothschild, além da Heitz Cellar, com os 34 acres de seu aclamado Martha’s Vineyard, entre outros pequenos produtores. Mas só isso já dá uma ideia da qualidade do vinho que “brota” dessas terras.
E, para se ter uma ideia do quanto Screaming Eagle é cultuado, os mais recentes rótulos de Opus One e Heitz Martha’s Vineyard estão sendo vendidos a US$ 325 e US$ 225 respectivamente. Mais do que isso, ele não é comprado no varejo convencional. Para adquirir uma garrafa, é preciso entrar numa lista de compradores que tem fila de espera. Sabe-se que pode-se demorar anos até que a empresa faça contato alertando que seu nome enfim se tornou elegível para a compra, porém, eles não divulgam o tamanho da lista de espera – aumentando, assim, o frisson em torno desse cult. Porém, há boatos de que mais de 5 mil nomes estejam nela.
Apesar de ser um dos vinhos mais famosos do mundo atualmente, a história de Screaming Eagle é recente e tem um forte cunho feminino. Em 1986, Jean Phillips, então corretora imobiliária, comprou uma propriedade perto de Oakville, no Napa Valley, com 57 acres, plantada com diversos tipos de variedades. Até 1992, ela vendia suas uvas para as vinícolas ao redor, menos as Cabernet Sauvignon de cerca de 80 vinhas, com as quais ela fazia um vinho próprio em garrafas plásticas.
Naquele ano, ela decidiu verificar se seu vinho tinha algum potencial e levou amostras para o pessoal da vinícola de Robert Mondavi, perto dali. A equipe de Mondavi lhe encorajou a engarrafar seu Cabernet denso e escuro, mas aconselhou-a a usar outro nome no rótulo em vez do que ela estava propondo. Screaming Eagle, ou seja, a águia gritando, é um símbolo americano, que representa a determinação, a ousadia, e era exatamente isso que Jean queria.
Ela contratou como consultor Richard Peterson, um dos pioneiros do vinho no Napa, mas foi a filha dele, Heidi Peterson Barrett – casada com Bo Barrett, enólogo do Chateau Montelena – que se tornou a primeira enóloga do novo empreendimento de Jean.
Seu primeiro vinho, um Cabernet da safra 1992, foi lançado em 1996 e, para a surpresa de todos, Robert Parker provou e concedeu seus perfeitos 100 pontos logo de cara. Foi o suficiente para que Screaming Eagle se tornasse uma lenda.
Desde então, Jean vende seus vinhos apenas para pessoas em seu mailing list e somente três garrafas por pessoa. No ano 2000, a lista já estava completa.
Para manter o mistério, não se permitem fotos da vinícola e do vinhedo de apenas 57 acres em Oakville
Quando Jean comprou os 57 acres em Oakville, apenas um deles era de Cabernet Sauvignon, cerca de 80 vinhas. O restante era um misto de variedades brancas. Ela diz que, desde o começo, tomou conta dessas videiras pessoalmente. Em 1995, toda a propriedade foi replantada com três variedades: Cabernet Sauvignon, Merlot e Cabernet Franc, além de uma pequena quantidade de Sauvignon Blanc.
Seu vinhedo de face oeste fica ao leste do rio Napa em uma colina suave e pedregosa, com excelente drenagem. A vinícola fica em um ponto do vale em que o clima é quente o suficiente para amadurecer a Cabernet Sauvignon durante o dia ao mesmo tempo que as uvas são resfriadas com a brisas da tarde que sopram do norte, da baía de San Pablo.
Atualmente, Jean Phillips já não é mais dona de Screaming Eagle, tendo vendido a propriedade em 2006 para Charles Banks, um investidor, e Stanley Kroenke, um empreendedor, dono de diversas franquias esportivas como Denver Nuggets, na NBA, Colorado Avalanche, na NHL, e Saint Louis Rams, na NFL, além de ser o principal acionista do time do Arsenal, na Inglaterra, entre outras atividades.
Na época, boa parte da propriedade precisava ser replantada (especialmente depois que um vírus afetou as vinhas vindo de um vinhedo próximo) e Jean disse que era necessário construir uma vinícola de verdade. Estima-se que o negócio girou em torno de US$ 30 milhões. Em abril de 2009, Banks deixou a sociedade.
Tão difícil quanto colocar o nome da lista de compradores é encontrar a vinícola em Oakville. Jean sempre evitou a publicidade a todo custo e turistas não são bem-vindos. Ainda hoje não há visitas e tampouco degustações, não adianta insistir. Não há nada para sinalizar o local e os habitantes da região não estão dispostos a dar indicações mesmo para aqueles enófilos mais insistentes.
Uma das técnicas de Jean para espantar os turistas era manter uma pá para afastar cascavéis na soleira da porta de sua casa. Para aqueles que tentavam fazer piqueniques em sua propriedade, ela “avisava” sobre as cobras. Ainda assim, o portão está sempre fechado. Para evitar que as pessoas consigam reconhecer o vinhedo e a vinícola, os proprietários tampouco deixam que os locais sejam fotografados.
Screaming Eagle é um vinho com ricos aromas que lembram creme de cassis e sabores límpidos de fruta pura e sedutora. Ele é envelhecido em barricas de carvalho francês 65% novas por 18 a 20 meses e engarrafado sem filtrar. Além de 1992, a safra 1997 também alcançou a perfeição segundo Parker, que afirma que, apesar disso, todas as safras desse vinho têm sido esplêndidas. No nariz, além de cassis, toques minerais e defumados aparecem. O corpo é denso e com taninos bem integrados que farão o vinho envelhecer bem por cerca de 20 ou 30 anos depois de engarrafado.
Nos primeiros anos, as garrafas de Screaming Eagle eram vendidas a US$ 50, hoje, é difícil saber quão alto essa águia pode ir.