André Tchelistcheff: por que ele é conhecido como o enólogo dos enólogos

A história de André Tchelistcheff, o aristocrata russo que revolucionou a vitivinicultura dos Estados Unidos

Arnaldo Grizzo Publicado em 23/01/2019, às 20h00 - Atualizado em 24/01/2019, às 19h27

Crimeia, Rússia, 1920. A Guerra Civil ainda está a todo vapor. Três anos antes, a Revolução Russa tinha derrubado o Czar Nicolau II e agora o país está sob o comando dos bolcheviques, que lideram o Exército Vermelho. Ainda lutando para retomar a ordem monárquica, remanescentes da aristocracia criam o Exército Branco.

Em uma das áreas de maior disputa, a Crimeia, uma península no Mar Negro, ao sul da Ucrânia, está um jovem de 19 anos e apenas 1,50 m, mas bravo, tentando empunhar uma arma. Filho de uma família de aristocratas de Moscou, até pouco tempo atrás André Tchelistcheff vivia uma vida bastante pacata, todavia, quando seu pai, oficial de justiça da Suprema Corte russa, entrou na lista de pessoas a serem exterminadas por Lenin, precisou fugir da capital russa às pressas e deixar de lado o mundo da nobreza czarista. Dias depois, os impiedosos bolcheviques arrasaram a propriedade da família, mataram os cães e os penduraram nas árvores diante da casa.

Apesar de diminuto em tamanho, André mostrou-se determinado, pediu licença ao pai – que havia se tornado Ministro da Justiça do Governo do Exército Branco do Sul – para entrar na escola de cadetes de Ekaterinodar e alistar-se às tropas comandadas pelo Barão Pyotr Nikolayevich Wrangel na Crimeia. Mas o inverno de 1920 seria determinante para as intenções dos “Brancos” no sul da Rússia, assim como para o futuro daquele jovem.

A estepe está congelada pela neve. As batalhas são cada vez mais cruéis e sangrentas. Diante da investida “vermelha”, as tropas de Wrangel precisam recuar. Em um dos últimos confrontos, em meio à confusão de rifles, granadas e canhões, André cai ferido. As perdas são muitas, o que resta de seu pelotão bate em retirada deixando para trás centenas de cadáveres amontoados na neve, incluindo Tchelistcheff.

Dias depois, sua família recebe uma carta informando a morte do rapaz e prepara um serviço funerário em sua homenagem. No entanto, o jovem não estava morto. Contra todas as probabilidades, ao acaso, um cossaco encontra o pequenino André agonizante em meio aos gélidos corpos dilacerados da batalha. Esse soldado anônimo coloca-o sobre seu cavalo e o leva, inconsciente, para receber ajuda.

Pouco tempo depois, o Exército Branco foi expulso da Crimeia e o restante das tropas, incluindo André, já recuperado, recebe a autorização de seguir para Constantinopla, na Turquia, onde se reúne com sua família. De lá, eles rumam para a região que mais tarde seria chamada de Iugoslávia. Em seguida, o rapaz é enviado para a Bulgária, trabalhar como minerador. Por ser militar, consegue uma vaga na Universidade de Brno, na Tchecoslováquia, onde começa a estudar agricultura e enologia.

Da granja na França para a América

Formado, André decide se mudar para a França em 1930. Um de seus primeiros empreendimentos lá é uma granja, na qual ele, juntamente com um grande amigo, coloca todas as suas economias. Pouco tempo depois, uma violentíssima chuva de granizo mata todas aves. Depois disso, decide se inscrever no Instituto de Agronomia do renomado Instituto Pasteur, em Paris, para investigar os mistérios da fermentação e da microbiologia.

Durante a revolução Russa, a família Tchelistcheff entrou na lista de pessoas a serem exterminadas por Lenin

O interesse do jovem russo faz com que um dos proeminentes cientistas do instituto, o professor Paul Marsais, olhe para ele com carinho. Talvez por influência das preferências dos aristocratas russos, um dos primeiros trabalhos de Tchelistcheff é na poderosa Moët & Chandon. Sua primeira “bebedeira”, por sinal, tinha sido com Champagne Mumm, aos 11 anos, quando ele e sua irmã entornaram os restos das taças dos adultos durante uma festa de réveillon.

André serviu com as tropas do Barão Pyotr Nikolayevich Wrangel (à direita) na Crimeia, onde foi ferido

Nos anos 1930, quase ninguém na França sabia algo sobre vinhos norte-americanos. Pudera, durante mais de 10 anos, a parca indústria vitivinícola dos Estados Unidos sofreu um enorme baque com a Lei Seca, revogada somente em 1933. Entre os poucos produtores que conseguiram prosperar a Beaulieu Vineyard, de Georges de Latour.

Herdeiro de uma rica família de viticultores franceses, ele imigrou para a América nos anos 1880 depois que sua propriedade foi devastada pela filoxera. Católico fervoroso, Latour produzia vinho canônico e, com apoio dos líderes religiosos, passou a vendê-lo por todo o país. Assim conseguiu superar a Lei Seca.

Estátua em bronze está em frente à Beaulieu Vineyard

Apesar de estar nos Estados Unidos, Latour fazia questão de manter as tradições francesas em sua propriedade. Quando seu enólogo resolveu se aposentar, o empresário decidiu ir até Paris para encontrar alguém que pudesse assumir o cargo. Coincidentemente, ele também conhecia o professor Marsais.

Latour insistia em ter um profissional francês, porém seu amigo no Instituto Pasteur afirmou que tinha vários nomes para indicar, mas que duvidava que algum deles poderia se adaptar ao ambiente da Califórnia. Assim sendo, indicou um estudante russo em cujo trabalho colocava muita fé.

Tchelistcheff influenciou uma geração inteira de enólogos norteamericanos, que o chamavam de “Maestro”

Mesmo contrariado, Latour aceitou entrevistar o rapaz. De cara, impressionou-se com o quão baixo ele era, mas logo percebeu que aquele “pequeno frasco” continha as qualidades de que precisava nos Estados Unidos. Para Latour, uma das vantagens de André era ser bioquímico – pois assim ele poderia ajudar a solucionar os problemas dos vinhedos de Beaulieu, que estavam definhando. Dessa forma, em setembro de 1938, Tchelistcheff desembarcou nos Estados Unidos. Nos anos que seguiram, ele ajudaria a transformar por completo a vitivinicultura do país e, indiretamente, transformá-lo numa das grandes potências da indústria mundial.

A terra prometida?

Tchelistcheff ajudou a definir o estilo do Cabernet Sauvignon norte-americano

Naquela época, a Beaulieu era uma das melhores vinícolas norte-americanas. No entanto, o espanto de André foi grande. As prensas e todo o restante dos equipamentos eram completamente ultrapassados. Para piorar, os vinhedos estavam em condições precárias. Em uma breve visita às instalações onde iria trabalhar por 35 anos, encontrou um rato boiando em um tanque de Sauvignon Blanc. Ele ainda provou os vinhos, a maioria de sobremesa, apenas para constatar o quão baixa era a qualidade, especialmente dos secos. Ele viu que vinhos e vinhedos recebiam enxofre em excesso e uma combinação de diversos químicos era colocada no mosto a esmo – como se fosse um tempero.

Era preciso uma reforma tanto nos equipamentos quanto na filosofia da empresa. Apesar de Latour ter concordado com as posições do russo, suas mudanças, contudo, demoraram para ser concretizadas, porque a vinícola precisava dar o lucro que a família esperava para manter o estilo de vida de que desfrutavam. Depois que Latour morreu, em 1940, ficou ainda mais difícil conseguir dinheiro para todas as inovações, pois a viúva, Madame De Pins, controlava com rédeas curtas todos os investimentos.

Uma de suas primeiras providências foi substituir tubulações, válvulas, bombas e peças da prensa que estavam completamente enferrujadas e causavam uma concentração enorme de metais no vinho. Da mesma forma, ele começou a investigar as uvas que melhor se adaptavam à região, eliminando muitas das variedades rústicas que até então eram misturadas nas vinhas e nos vinhos, apostando no potencial da Cabernet Sauvignon. Tanto que, um ano após a morte de Latour, André engarrafou a safra 1936 de seu Cabernet Sauvignon como Georges de Latour Private Reserve – que se tornaria um dos rótulos mais célebres da Califórnia nos anos seguintes.

Pioneirismos

A veia de pesquisador de Tchelistcheff não arrefeceu com sua vinda para a América e tampouco com o baixo orçamento com o qual tinha que lidar na Beaulieu. Juntamente com um professor da UC Davis, o russo ajudou a desenhar um tanque de aço inoxidável (novidade na época) para controlar a temperatura de fermentação, algo que antes era feito, no desespero do calor da colheita, jogando gelo sobre a pensa. André também estava de olho nos Pinot Noir da vinícola Hanzell que, em 1959, teria criado um dos primeiros vinhos da história com fermentação malolática controlada – em vez de espontânea. Da mesma forma que ele observou as primeiras fermentações a frio de brancos e rosés na vinícola Charles Krug. Em ambas, o russo já prestava consultoria.

Entre as inovações de Tchelistcheff nos Estados Unidos estão a fermentação malolática controlada e sistemas de proteção contra geadas

Assim, em 1962, a Beaulieu se tornou a primeira vinícola de larga escala a trabalhar com fermentação malolática em todos os seus tintos. Juntamente com Mike Grgich, outro pioneiro da vitivinicultura norte-americana, André desenvolveu sistemas de proteção contra geadas com uso de aquecedores, que queimavam diesel, aliados a máquinas de vento que sopravam ar mais aquecido perto da superfície do solo. Grgich era um imigrante croata que trabalhou com Tchelistcheff na Beaulieu entre 1959 e 1968 e, mais tarde, ficaria famoso por ser o enólogo por trás do Chardonnay da vinícola Montelena, vencedor do Julgamento de Paris em 1976.

Ainda em 1962, André resolveu testar um sistema de filtragem depois de perder 10 mil garrafas de rosés contaminadas com bactérias e leveduras. Durante diversas semanas, ele, Grgich e uma empresa de filtros trabalharam para desenvolver um sistema de dupla filtragem – que primeiro colocava o vinho em um filtro tradicional e depois em um microscópico. Tempos depois, diversas vinícolas adotaram o procedimento.

Ele também foi o primeiro a envelhecer os tintos em pequenas barricas de carvalho francês. Foi dessa forma que o russo ajudou a definir o estilo do Cabernet Sauvignon californiano – potente e opulento – que, anos depois, seria consagrado com a vitória sobre os vinhos bordaleses no Julgamento de Paris.

Influências

Ainda durante seu trabalho na Beaulieu, Tchelistcheff abriu um laboratório de pesquisa no centro de Santa Helena, onde prestou consultoria, ensinou e serviu como mentor para diversos jovens e brilhantes enólogos que, assim como ele, mudariam para sempre a história do vinho norte-americano. Entre seus discípulos houve nomes como Louis Martini, Robert Mondavi, Joe Heitz, August Sebastiani, John Daniel, Mike Grgich, Richard Peterson, MaryAnn Graf, Warren Winiarski, Rob Davis, Michael Silacci, Mike McGrath, Jan Shrem, Rick Sayre, Marco Cappelli, Heidi Peterson Barrett, Jill Davis etc – grande parte da nata da enologia dos Estados Unidos.

Além disso, André foi um dos primeiros a plantar Pinot Noir e Chardonnay na região de Carneros, assim como Pinot Gris no Oregon e Cabernet Sauvignon em Washington State, sendo um dos grandes incentivadores da vitivinicultura nessas áreas do país. Apesar disso, ele nunca conseguiu ter uma vinícola própria. O mais perto que chegou disso foi quando se associou a Frank Bartholomew para renovar a histórica propriedade da vinícola Buena Vista, mas, devido à forte recessão, precisou vender seus 50% da sociedade para Bartholomew, depois de ter investido muito dinheiro nela. “Sou um filho da revolução. Sei o que é perder tudo do dia para a noite”, disse certa vez.

Em 1968, o russo ainda foi surpreendido com a venda da Beaulieu para uma empresa de licores, Heublein. Apesar de ter sido o último a saber, ele ainda permaneceu na propriedade até 1973. A partir daí, passou a trabalhar como consultor independente para inúmeras vinícolas norte-americanas. No últimos anos de sua vida, ele voltou para Beaulieu como consultor e morreu aos 92 anos, em abril de 1994.

Sua reputação entre seus pares e sua influência na indústria do vinho norte-americana são tamanhas que ganhou diversas alcunhas durante os anos em que esteve na ativa, como “maestro”, “o decano do vinho americano”, “o enólogo dos enólogos”, entre tantos outros nomes que comprovam a sua lenda.

Vinho americano André Tchelistcheff Bealileu