Ela se impõe sobre a imensidão do pampa gaúcho com elegância e eficiência
Sílvia Mascella Rosa Publicado em 25/07/2016, às 11h25 - Atualizado às 11h36
Uma lenta mudança de eixo começa a ocorrer no mundo do vinho brasileiro. Mais precisamente no extremo do estado do Rio Grande do Sul - o que mais produz uvas e vinhos do país. A tradição imposta pelos imigrantes italianos fez com que o maior número de vinícolas nacionais esteja localizada em cidades quase todas nas vizinhanças de Bento Gonçalves (Garibaldi e Flores da Cunha por exemplo), na Serra Gaúcha. No entanto, grandes áreas de produção existem na Campanha desde a década de 1970.
Em busca de novos terroirs, muitos produtores da serra cultivam vinhedos lá e como essa é uma terra distante, divisa com o Uruguai e a Argentina, para alguns ficou mais fácil construir novas vinícolas do que transportar as uvas até a Serra. Outros, contudo, lá mesmo surgiram, como a recém inaugurada Guatambu Estância do Vinho, em Dom Pedrito, cidade vizinha de Santana do Livramento.
A região da Campanha Gaúcha pertence ao bioma pampa, caracterizado por grandes extensões de terra e suaves colinas (coxilhas), pequenos charcos, extremos de temperatura e um dos solos geologicamente mais antigos de todo o estado.
Guatambu Estância do Vinho está localizada praticamente no meio da rodovia que segue paralela à divisa do Brasil com o Uruguai, a BR 293. Diferentemente das famílias da serra, os proprietários não são de descendência italiana e sim alemã, e são importantes pecuaristas e empreendedores rurais. O vinho como negócio chegou até eles há apenas 10 anos, quando a filha de Valter e Nara Pötter, Gabriela, então recém formada em Agronomia, resolveu "pedir" ao pai um pedaço de terra para plantar uvas viníferas. O que Gabriela conseguiu foi provar que aquele novo negócio poderia valer a pena.
As primeiras vinificações ocorreram na Embrapa Uva e Vinho de Bento Gonçalves, com a consultoria do enólogo Mauro Zanus, e a primeira produção comercial foi em 2008, com um Cabernet Sauvignon que é, até hoje, o carro-chefe da produção, até então terceirizada. No entanto, menos de dois anos depois, com os primeiros espumantes sendo feitos, os proprietários decidiram que era urgente construir uma vinícola, cujo projeto respeitasse as características culturais da região da Campanha, e não se tornasse uma intervenção na paisagem.
O arquiteto escolhido foi o gaúcho Celestino Rossi, que tem em seu curriculum outra bela vinícola, a Almaúnica, no Vale dos Vinhedos, e projetos em andamento nos estados de São Paulo e Santa Catarina. "Quando fui conhecer a estância Leões, a paisagem me inspirou e comecei a pensar que precisava usar a suave inclinação das coxilhas, o charco, o brilho dos espelhos d'água no projeto", relembra Rossi.
O objetivo inicial era instalar a vinícola onde está a maior parte dos vinhedos. No entanto, como a fazenda Leões fica longe da rodovia principal, isso dificultaria o projeto enoturístico. Assim, um terreno à margem da estrada foi adquirido, com as características desejadas por todos (inclusive por Gabriela, que decidiu implantar ali mais uma parte dos vinhedos) e a construção começou em janeiro de 2010. "Desejava manter a imensidão do pampa na paisagem, por isso decidi fazer uma construção o mais horizontal possível, moderna, mas não hightech. Não queria um prédio que parecesse que tinha pousado de paraquedas na paisagem", lembra o arquiteto.
"Queríamos ter um espaço que fosse ao mesmo tempo belo, utilizando a luz natural e a paisagem plana, que fosse o mais sustentável possível e muito funcional para os objetivos que tínhamos em mente: produção, enoturismo e eventos", explica Valter Pötter. A funcionalidade está presente na área produtiva, com todos os processos sendo conduzidos por gravidade, com a área de recebimento e processamento das uvas totalmente fechada e isolada para evitar contaminação, e todos os espaços obedecendo às (muitas) normas legais. Não é uma tarefa fácil, principalmente num local onde a mão-de -obra não está acostumada às grandes construções: "Alguns pedreiros e marceneiros se referiam à construção como um shopping center", conta sorridente Pötter, sabendo que seu empreendimento é um grande marco na região.
Mas o arquiteto Celestino Rossi, acostumado às reformas e construções de vinícolas, atenta para um ponto importante, afirmando que logo após a qualificação do campo e dos vinhedos, a garantia de sobrevivência das vinícolas pequenas e médias está na otimização dos projetos industriais: "Gente muito boa em produto, que não fizer as reformas estruturais necessárias, não vai conseguir chegar longe apenas com a tradição. Serão derrubados pelas novas legislações", afirma Rossi.
Dessa forma, as duas principais características da Guatambu se fundem: a função obedece a rígidos critérios industriais, longamente discutidos com os proprietários e os enólogos, para que os espaços sejam dinâmicos e eficazes, como o pé direito alto da sala de tanques, a profundidade da sala de barricas que preserva a temperatura baixa, e o isolamento da área de recebimento, passando pela sustentabilidade do empreendimento. Painéis solares na lateral do prédio geram toda a energia de que a vinícola necessita, enquanto cisternas coletam a água das chuvas para ser reutilizada, as janelas largas nas áreas comuns permitem a utilização da luz natural e os arcos na fachada oferecem proteção contra o potente vento minuano de inverno e no isolamento térmico do quente verão da Campanha.
Durante a construção um entrave foi encontrado, pois o solo da região absorve muita umidade em algumas partes e expande, o que ofereceu um desafio extra no momento da elaboração da cave subterrânea: "Precisamos utilizar painéis de concreto de 50 cm para a contenção do solo", explica Rossi, que - por uma questão de sustentabilidade - utilizou estruturas pré-moldadas na construção de 3 mil m2, limitando a utilização da madeira e usou ecostone (argila expandida que imita pedra) nas fachadas e, mesmo com esses recursos, o custo da obra ultrapassou os R$ 6 milhões.
A vinícola segue um padrão espanhol de arquitetura, com as principais salas voltadas para pátios e jardins internos, que ficam aos fundos da propriedade e descortinam o pampa. As áreas voltadas para o enoturismo seguem um padrão rústico, mas aconchegante, com a utilização de cores fortes, texturas e elementos decorativos. Um bom exemplo é o salão central, de pé direito alto e enormes portas-balcão que se abrem para o paisagismo, que explora as belezas das plantas nativas e do estilo campeiro. "Precisávamos de um espaço grande para nossos eventos com os pecuaristas, por isso escolhemos ter esta grande sala como centro, mas com o aconchego da fazenda, com a enorme lareira, a parrilla em local de destaque e a visão do campo", conta Valter Pötter.
"Desejava manter a imensidão do pampa na paisagem, por isso decidi fazer uma construção o mais horizontal possível, moderna, mas não hightech"
As áreas voltadas para o enoturismo seguem um padrão rústico, mas aconchegante, com a utilização de cores fortes, texturas e elementos decorativos |
Painéis solares na lateral do prédio geram toda a energia de que a vinícola necessita | |
Guatambu Estância do Vinho, Dom Pedrito, Brasil. Primeiro vinho feito pela empresa - em linha desde 2008 (não foi feito em 2010). Esta versão 2011 está ainda bastante jovem, mas já tem aromas de frutas vermelhas frescas no nariz, que evoluem muito bem com a aeração para notas de especiarias doces. Em boca, é bastante suculento e bem estruturado, com taninos macios e boa complexidade. Passou dois meses em carvalho francês e deve evoluir muito bem com o tempo se levarmos em consideração que a versão 2009 é, até hoje, um dos vinhos mais elegantes da empresa. Tem 13% de álcool. SMR
Guatambu Estância do Vinho, Dom Pedrito. Primeiro espumante rosé da vinícola, tem uma combinação pouco tradicional das uvas Gewürztraminer e Pinot Noir, vinificadas pelo método tradicional. A bela cor rosado claro fala de sua juventude e é um aviso de que esse não é um vinho para envelhecer, e sim para consumo jovem. Os aromas florais são bem marcados e sob eles há um toque agradável de frutas vermelhas maduras e frescas. Em boca parece, a princípio, mais doce do que se revela ao final. Tem boa cremosidade, excelente acidez e um retrogosto com delicado amargor que funciona bem no estilo e faz bela figura com a comida. Tem 12,5% de álcool. SMR