Entenda a história da bebida e sua relação com a resistência francesa
Arnaldo Grizzo Publicado em 06/11/2018, às 17h00
O fim da guerra estava realmente próximo. As tropas do general Leclerc estavam aquarteladas no sopé do Ninho da Águia, a Berghof, a morada de Adolf Hitler no topo da montanha Obersalzburg (com mais de 2.400 metros de altitude), em Berchtesgaden, nos Alpes bávaros da Alemanha. Era 4 de maio de 1945.
Naquele dia, um jovem sargento teve um interessante papel na tomada de um dos mais famosos redutos nazistas, apelidado de Valhala (a morada dos deuses). Aos 23 anos, Bernard de Nonancourt foi convocado por seu oficial comandante para escalar a montanha e chegar à adega do “Ninho”. Havia notícias de que lá estavam estocadas milhares das melhores garrafas de vinho francês que os nazistas pilharam durante a época em que dominaram a França. Poucos haviam entrado no covil de Hitler (que havia se suicidado dias antes), este garoto da Champagne seria um deles.
Ao mesmo tempo que estava excitado com a tarefa, também havia muita apreensão. Apesar de a região ter sido bombardeada impiedosamente durante os últimos dias, a encosta da montanha ainda podia encobrir minas terrestres.
Bernard, então, resolveu escrever à sua mãe, que já havia perdido seu filho mais velho, Maurice, morto em um campo de concentração. “Não se passa um dia sem que pense em meu irmão e no que essa luta nos custou a todos nós, mas agora posso dizer com certeza que lutar nesta guerra era, para mim, a coisa certa a fazer”, afirmou na carta.
Além de invadir e checar o que havia na morada de Hitler, o general Leclerc também queria fincar a bandeira francesa no alto da montanha antes que os comandantes das tropas norte-americanas – a quem precisava responder – alcançassem a cidade. Bernard escalou a montanha com sua equipe, explodiu a porta de aço e se esgueirou pela fresta para entrar. Foi diretamente para a cave.
Lá avistou cerca de meio milhão de garrafas de alguns dos melhores vinhos franceses já produzidos. “Havia todos os grandes vinhos de que eu ouvira falar, cada safra legendária, os Bordeaux eram simplesmente extraordinários”, revelou mais tarde. Mouton, Lafite, Romanée-Conti, Yquem, Krug, Bollinger, Moët, Salon etc. O garoto ficou estupefato. Cinco anos antes, quando a guerra ainda não o havia impelido ao campo de batalha, ele ajudara a produzir algumas daquelas garrafas, especialmente Salon, propriedade de seu tio na época. Bernard então organizou a retirada das garrafas. Foram necessários 200 soldados e vários dias para que os espólios de guerra estivessem nas mãos dos exércitos aquartelados na região. Logo, os cantis passaram a ser enchidos com Latour 1929, Mouton 1934, Lafite 1937 etc. Bernard, por sua vez, preferiu se refestelar com Salon 1928, a maravilhosa e pequeníssima produção que vira ser levada pelos homens de Göring cinco anos antes. Três dias depois, o que restava do governo alemão se rendeu e a guerra na Europa estava terminada.
MOLDADO PELA GUERRA
Bernard de Nonancourt retornou da guerra, mas sua mãe, Marie-Louise Lanson de Nonancourt, quis que ele continuasse com seu aprendizado antes de assumir o controle da casa de Champagne que havia adquirido em 1938, a Laurent-Perrier. Na época, a mãe sentenciou: “Você nunca será um bom chefe se nunca for um bom trabalhador”. Com isso, enviou-o para aprender na Lanson e na Delamotte, onde ele passou por todas as áreas: desde o trabalho na vinha, passando pela elaboração dos vinhos na cantina e também diversas funções administrativas menores.
A tarefa de assumir a propriedade certamente ficaria a cargo de seu irmão mais velho, Maurice. No entanto, quando a França foi invadida e finalmente ocupada pelos alemães, ambos juntaram-se ao movimento da resistência. Bernard aderiu ao Maquis, o movimento de guerrilha que se escondia em regiões montanhosas e arborizadas para atacar tropas alemãs de surpresa. Nessa época, o jovem conheceu Abbé Pierre, uma das figuras mais proeminentes da Resistência Francesa, que mais tarde fundaria o movimento Emmaus, para ajudar pobres e desemparados na França. Em seguida, Bernard se alistou na 2a Divisão Blindada Francesa, sob ordens do general Philippe Leclerc.
Bernard de Nonancourt só viria a assumir plenas funções administrativas na Laurent-Perrier em outubro de 1948. Curiosamente, o primeiro chef- -de-cave da Laurent-Perrier após o período da II Guerra também tinha sobrenome Leclerc (apesar de não ser parente direto do famoso general). Edouard Leclerc assumiu o posto em 1955, permanecendo até 1975, quando foi sucedido por Alain Terrier. Em 2004, Michel Fauconnet, que esteve na empresa desde 1974 e era assistente de Terrier assumiu seu lugar em 2004. Apesar de os chef-de-cave terem tido grande papel no desenvolvimento do Champagne Laurent-Perrier, foi Bernard quem promoveu as grandes transformações.
VISÃO E CONHECIMENTO
Por ter trabalhado literalmente em todas as áreas da produção de Champagne, Bernard tinha pleno conhecimento do que fazia. Ainda na década de 1950, ele decidiu criar a principal cuvée da casa, a Grand Siècle, feita com o que os vinhedos de Laurent-Perrier tinham de melhor a oferecer. As melhores uvas Pinot Noir e Chardonnay escolhidas de apenas 11 crus de três anos vintage. Como bom patriota, Bernard fez Grand Siècle como um tributo ao rei Luís XIV, o Rei Sol, que teria servido os primeiros Champagnes em sua corte, em Versalhes, com uma garrafa cujo gargalo lembrava o pescoço de um cisne – daí o comprimento do pescoço e formato da garrafa.
Antes disso, porém, Bernard já tinha expressado sua preferência pelo Chardonnay e dado ênfase nessa variedade em relação às outras duas usadas em Champagne: Pinot Noir e Pinot Meunier. Além disso, ele também investiu em vinificações em tanques de aço com temperatura controlada. Mas, uma de suas principais intervenções foi a criação de um Champagne rosé não safrado.
A Laurent-Perrier era uma casa pequena, pouco conhecida, mas que tinha certa fama por produzir vinhos tintos tranquilos, ditos Vins Nature de la Champagne, na época. Então, na década de 1960, quando os produtores da região raramente criavam espumantes rosés não safrados, ele lançou sua Cuvée Rosé, em 1968. Assim, como a Grand Siècle, ela também possui uma garrafa com formato próprio, no estilo das usadas na época de Henrique IV – o primeiro da casa de Bourbon a governar a França. Mais do que isso, o grande diferencial desse rosé é o seu método de produção, em que a cor é obtida pela maceração da Pinot Noir com suas cascas – algo raro em Champagne, onde até hoje os produtores preferem criar rosés misturando um pouco de vinho tinto ao espumante.
As inovações de Bernard não pararam por aí. Em 1981, ele lançou a cuvée Ultra Brut. Ao se debruçar sobre a história da casa Laurent-Perrier, ele viu que a viúva Mathilde-Emilie Perrier havia lançado um Grand Vin sans Sucre (Grande Vinho sem Açúcar) em 1889, e resolveu reeditá-lo numa MathildeEmilie Perrier criou um dos primeiros Champagne “zerodosage” época em que a Nouvelle Cuisine estava em voga, com seus pratos delicados.
MAIS UMA VIÚVA
Neste ponto, porém, Bernard não foi mais inovador que a ex-proprietária da Laurent-Perrier, Mathilde-Emilie Perrier, que, assim como ele, precisou enfrentar muitos contratempos para conseguir levar o negócio adiante. Ela foi casada com Eugène Laurent, ex-chef-de-cave da Le Roy Fils & Pierlot, uma casa de Champagne fundada em 1812 por André-Michel Pierlot, um ex-tanoeiro e engarrafador de Chigny- -les-Roses, na região do Marne, perto de Reims, que resolveu se assentar em Tours-sur-Marne, mais próximo de Épernay, como negociante de vinhos. Seu filho, Alphonse Pier, herdou o negócio, mas, sem herdeiros, deixou tudo para seu chef-de-cave.
Eugène Laurent, por sua vez, decidiu adquirir outras propriedades e vinhedos para construir sua própria vinícola. Em 1887, porém, ele morreu prematuramente deixando tudo nas mãos da esposa Mathilde-Emilie, que prontamente juntou seu nome de solteira ao do marido para criar a Veuve Laurent- -Perrier. Vale lembrar que, na época, outras viúvas já geriam famosas casas de Champagne como a Veuve Clicquot e Pommery, por exemplo.
Mathilde-Emilie investiu muito no mercado britânico e foi assim que resolveu criar um Champagne sem açúcar, um precursor dos vinhos “zero-dosage” de hoje. A I Guerra Mundial e a recessão do período pós-guerra, contudo, foram catastróficos para as finanças e Eugénie Hortense Laurent, filha de Mathilde-Emilie, acabou vendendo a propriedade, que estava à beira da falência, para Marie-Louise Lanson de Nonancourt.
RUMO AO TOPO
Na época, Laurent-Perrier estava longe de ser uma das principais casas de Champagne. Em 2005, porém, ano em que Bernard de Nonancourt se aposentou, ela era a terceira maior em vendas, atrás somente de Veuve Clicquot e Moët. Ele morreu cinco anos depois, em 2010, aos 90 anos de idade, e suas filhas Alexandra Pereyre e Stéphanie Meneux hoje estão na direção da empresa. Uma das principais cuvées da casa, a Alexandra, foi criada por Bernard em homenagem à filha mais velha para celebrar seu casamento. É um Champagne rosé safrado com mínimo de sete anos de maturação.
Muito da fama da Laurent-Perrier deve-se aos seus rosés (como dito anteriormente, eles não são resultado de blends, mas de maceração – algo raro em Champagne), mas também da precisão de seus vinhos. Muito disso é graças à expertise do ex-chef-de- -cave Alain Terrier que passou a vinificar os vinhedos separadamente para só então criar os blends. O formato pouco convencional das garrafas das principais cuvées também é um diferencial.
Laurent-Perrier possui vinhedos em Bouzy, Tours-sur-Marne e Ambonnay, além de 800 metros de caves escavadas. Em 1983, Bernard de Nonancourt criou o grupo Laurent-Perrier, que além do Champagne de mesmo nome possui, entre outras, as marcas De Castellane, Salon e Delamotte. A casa Laurent-Perrier, sozinha, produz mais de 7 milhões de garrafas por ano.
Em 2012, para comemorar o bicentenário da casa, lançou-se a Les Réserves Grand Siècle N°571J, com vinhos de três safras excelentes (1990, 1993 e 1995) e permaneceu por 15 longos anos maturando em garrafas magnum e Jeroboão. Uma homenagem a Bernard e sua resistência.