No ínicio da década de 2010, o espaço de vinhedos plantados chegou a 26 mil hectares
Eduardo Milan Publicado em 09/11/2018, às 18h00 - Atualizado em 25/02/2021, às 14h48
É fato consumado que a Argentina produz vinhos de qualidade, mas até pouco tempo atrás muitos relutavam em armar sua capacidade em produzir mais do que isso e elaborar vinhos com senso de origem, associados a um lugar, enfim, comparáveis aos melhores rótulos produzidos no mundo. Considerando as recentes pontuações de vinhos argentinos – muitas beirando os 100 pontos – pela crítica internacional, essa relutância faz parte do passado.
Sendo a província de Mendoza a principal região produtora do país, já era esperado que um eventual movimento para um novo patamar da indústria do vinho argentino se desse justamente por aquelas redondezas. De fato, uma das zonas de maior destaque atualmente – onde novos investimentos têm sido aplicados, novos projetos vêm sendo desenvolvidos e um novo perfil de vinho argentino vem surgindo e que comprova a evolução e mostra uma nova dimensão qualitativa – é o Vale de Uco.
O sucesso do vale é tamanho que, no início da década de 2010, a área de vinhedos plantados chegava a quase 26.000 hectares, praticamente o dobro do que havia no local no início dos anos 2000. O desenvolvimento da região é inconteste, assim como a sua crescente reputação dentro da vitivinicultura argentina, haja vista que um grande número de vinícolas estabelecidas em outras áreas de Mendoza buscam adquirir vinhedos no vale e também construir novas plantas na região.
Aproximadamente 75% dos vinhedos são de uvas tintas, especialmente Malbec, Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir, com destaque para a vedete nacional nos últimos anos, a Cabernet Franc. Dentre as brancas, brilham a Chardonnay, a Sémillon e a Sauvignon Blanc, mas também há vinhos com Viognier e Torrontés.
Voltando um pouco na história, o Vale do Uco foi “descoberto” pela indústria vitivinícola nos anos 1990. Localizado no sudoeste da cidade de Mendoza, bem aos pés dos Andes, seus vinhedos estão plantados em uma zona de clima temperado, com invernos rigorosos e verões quentes com noites frescas. Pode-se dizer que Uco é uma área realmente fria da região de Mendoza – e também de grande amplitude térmica (pode chegar a até 16o C), em parcelas que variam entre 850 e 1.700 metros de altitude. Os solos são predominantemente pedregosos, com seixos rolados misturados à areia grossa, de boa permeabilidade, boa drenagem e pouco férteis. Em algumas zonas, observa-se argila ou calcário e até áreas com depósitos de cálcio, estas últimas mais raras e valorizadas, e também de onde vêm saindo alguns dos melhores vinhos lá produzidos atualmente. O índice pluviométrico é baixo e a irrigação dos vinhedos é normalmente feita por gotejamento com água de degelo das montanhas.
O Vale estende-se por três departamentos (segundo nível de divisão administrativa nas províncias argentinas): Tupungato, Tunuyán e San Carlos.
A altitude e a grande amplitude térmica constante que os três departamentos compartilham exercem influência na qualidade das uvas produzidas, uma vez que torna a fase de amadurecimento da fruta mais longa, permitindo que o caráter varietal de cada cepa cultivada desenvolva-se por completo, ao mesmo tempo em que um teor agradável de acidez seja preservado.
Além disso, o baixo índice pluviométrico permite que os enólogos controlem bem de perto a quantidade de água recebida por cada planta. Isso é bastante importante, pois, ao lado do tipo de solo, acaba fazendo com que a produção de cada vinha seja pequena e que, consequentemente, cada cacho de uva apresente muita concentração de fruta, dando condições para elaboração de vinhos ricos, complexos, bem estruturados, com ótima cor e grande equilíbrio entre acidez e açúcar, permitindo a vinificação de brancos e tintos, em teoria, capazes envelhecer por longo período.
Não se pode esquecer de citar o trabalho de estudo de solo minucioso que é feito por diversas vinícolas nas mais diversas partes do vale, mapeando e identificando as melhores variedades para cada parcela. Esse é um trabalho muito recente, mas que já vem mostrando resultados, porém, seguramente, é uma longa e árdua tarefa, que trará ainda mais frutos para as gerações vindouras.
Vinícola da Rutini plantou seus primeiros vinhedos na região de Tupungato em 1925
Tupungato, mais ao norte, fica aos pés do vulcão inativo de mesmo nome, localizado na fronteira entre Chile e Argentina, e aproximadamente 65 quilômetros ao sul da cidade de Mendoza. A maior parte dos vinhedos está plantada em altitude média de 1.300 metros acima do nível do mar. Prova da qualidade da região é a linda e moderna vinícola da Rutini – que plantou os primeiros vinhedos na região em 1925 –, o projeto da Masi – gigante dos Amarones –, além da Atamisque, da Tupun e do megaprojeto imobiliário, o condomínio vitivinícola Tupungato Winelands, por exemplo. Em Tupungato estão também El Peral e Gualtallary, esta última, nos anos recentes vem se posicionando entre algumas das localidades mais famosas e reconhecidas de toda Argentina quando o assunto é vinho.
Gualtallary está na área mais alta de Tupungato, fator que afeta diretamente o clima local, certamente o mais frio de toda Mendoza. Outro ponto a ser observado de perto é o solo, ali extremamente pobre em nutrientes, rochoso e arenoso, mas rico em calcário. Esse conjunto todo pode ser a chave para a produção de Malbecs mais frescos, diferentes dos tintos suculentos, maduros, de taninos macios, usuais em outras partes de Mendoza. Sem dúvida, os Malbecs de Gualtallary mostram-se mais austeros, verticais e, geralmente, com maior acidez e maior sensação de frescor, ressaltando-se a textura lembrando giz de seus taninos, além de um caráter salino encontrado muitas vezes no final de boca. Outra uva que vem mostrando enorme potencial em Gualtallary é a Cabernet Franc que, apesar de já reconhecida, ainda tem muito por mostrar.
Não é à toa que inúmeros projetos de destaque acontecem por lá, entre eles, os levados pelas mãos dos agora reconhecidos internacionalmente irmãos Michelini, que estão à frente de projetos como Zorzal, Passionate Wine, Gen Y Alma, Super Uco e, além disso, responsáveis pela elaboração de alguns dos melhores vinhos produzidos em Gualtallary. Também é desse distrito que surgem dois dos vinhos mais famosos da Argentina, produzidos pela gigante Catena – Adrianna Malbec – e pela Bodega Aleanna – Gran Enemigo Single Vineyard Cabernet Franc Gualtallary – ambos sob o comando de Alejandro Vigil, um dos maiores expoentes, senão o maior, da atual geração de enólogos argentinos. Ainda de Gualtallary, saem vinhos excepcionais da Zuccardi, Alto Las Hormigas, Trapiche, Sophenia e Doña Paula, entre outras.
Mais ao centro do Vale, já a aproximadamente 82 quilômetros da cidade de Mendoza, está Tunuyán. Também região de altitude, algumas áreas chegam a estar a 1.500 metros acima do nível do mar. O município de Tunuyán, localizado às margens do rio de mesmo nome, pode ser considerado o centro estratégico de Uco, o coração do vale. Destacam-se as localidades de Paraje Altamira e Vista Flores.
Paraje Altamira, aliás, passou a ser referida como uma indicação em 2013, após amplos estudos que permitiram definir claramente o perímetro de produção de vinhos de qualidade superior na região. O rio Tunuyán foi trabalhado em forma de canais artificiais que alimentam a maioria dos vinhedos locais, tanto os antigos, quanto as vinhas plantadas nos últimos anos. As altitudes em Paraje Altamira giram entre 1.000 e 1.100 metros acima do nível do mar e a paisagem é praticamente desértica, com solos arenosos e pedregosos, com bastante pedra calcária. Os tintos mostram um caráter ‑oral associado a violeta mais pronunciada, conseguindo aliar força e nesse de um modo ímpar, além de taninos cheios de textura, porém de grãos mais nos se comparados, em geral, aos de Gualtallary.
Um exemplo clássico de Malbec daí é o Achaval Ferrer Finca Altamira, que mostra bem essas características. Dos vinhos produzidos com uvas de Altamira merecem destaque: Rutini Apartado Gran Malbec, Tinto Negro Finca La Escuela La Pedra Malbec, Zuccardi Finca Pedra Innita, Chakana Ayni, Terrazas de Los Andes Single Parcel Los Castaños Malbec, Susana Balbo Nosotros Nómade Single Vineyard Malbec, Bodega Teho Zaha Toko Vineyard Malbec, entre outros. Aliás, um exemplo dessa ebulição no Uco, é que mesmo em meio à recente crise do país, a vinícola Zuccardi escolheu Paraje Altamira para a construção da sua nova vinícola, chamada Pedra Innita, toda em concreto – não tem nenhum recipiente em aço inox, somente de concreto sem epóxi, sejam tanques, ovos ou ânforas –, com vista para Cordilheira e totalmente integrada ao ambiente.
Vista Flores, cujas vinhas mais altas estão cultivadas a 1.200 metros de altitude, ficou mundialmente conhecida no início dos anos 2000 pelo projeto Clos de Los Siete, encabeçado pelo super famoso enólogo francês Michel Rolland. Daí vêm alguns dos vinhos de estilo mais concentrado e opulento da Argentina, com uma legião de fãs pelo mundo e que tem como principal expoente o enólogo Marcelo Pelleriti, que também é responsável por elaborar os vinhos do Château La Violette, Château Montviel, La Graviere e Le Gay, na França. Todavia, produtores como Ruca Malen, Bressia, Susana Balbo Wines e Antucura, por exemplo, vêm oferecendo uma nova interpretação do que vem a ser Vista Flores. Inclusive, recentemente, surge uma tendência de maior especificidade, com algumas vinícolas passando a citar Los Chacayes, distrito de Tunuyán, em seus rótulos – na verdade, para buscar uma maior diferenciação da vizinha Vista Flores.
Uma infinidade de vinícolas possuem ou administram vinhedos em Tunuyán/Vista Flores, também produzindo muitos vinhos aclamados pela crítica. Entre as vinícolas, vale citar: Monteviejo, Lurton (Bodega Piedra Negra), Salentein, Flechas De Los Andes, Clos De Los Siete, Cuvelier Los Andes, Antucura e DiamAndes.
Bodega O. Fournier, em São Carlos, é uma visita imperdível
Já ao sul, a 104 quilômetros de Mendoza, está o departamento de San Carlos, o mais antigo de Mendoza, fundado em 1772 e batizado por conta de um forte espanhol que data do século XVIII. Também em San Carlos, as vinhas são cultivadas em altitudes elevadas. Destacam-se as localidades de La Consulta e Eugenio Bustos. Produtores com vinhos de destaque são: O. Fournier, La Celia, Bodega Teho, Bodega Tamari, Cuarto Dominio, Zuccardi, Trapiche, Atamisque e Chamán.
Visitar o Vale de Uco permite ver muito mais do que apenas vinhedos e vinícolas. As paisagens são ricas e há inúmeras opções do que ver e fazer. Em Tupungato, vale visitar o Parque Provincial de Tupungato e a Reserva Natural do Condor Andino, além do complexo Tupungato Winelands, onde é possível praticar golfe e polo, além de conhecer seus vinhedos e restaurante. Tunuyán, além da Reserva Natural Manzano Histórico, do Chorro de la Vieja, do Portillo Argentino e da Festa Nacional da Toada, que se realiza em fevereiro de cada ano, tem diversas opções para os que gostam de esportes, inclusive os radicais, como rafting e parapente. Em Tunuyán estão alguns dos hotéis mais exclusivos da Argentina, como o Casa de Uco, o Casa Antucura, a pousada da Bodega Salentein, hotel Finca Blousson e o hotel do The Vines of Mendoza. Em San Carlos, não se pode deixar de observar as construções históricas, vale ver as Rotas do Exército Libertador, o Museu Histórico Forte San Carlos e o de Ciências Naturais, fazer trekking no El Cajón de Gateado, percorrer os caminhos de Altamira e a velha Rota 40, além de visitas à Reserva Natural Lagoa do Diamante e seu espelho d’água, que reflete o vulcão Maipu. Várias vinícolas são abertas para turistas, embora algumas delas exijam agendamento prévio, seja para conhecer as caves, seja para comer (no caso das que têm restaurante). Por isso, é imprescindível se planejar. Como exemplo de lugares a serem conhecidos, podemos citar: Andeluna Cellars, Antucura, Atamisque, Clos de los 7, DiamAndes, Finca La Celia, O. Fournier, Salentein, Sophenia, The Vines of Mendoza, Tupungato Winelands. Não deixe de conhecer o restaurante Urban, dentro da O. Fournier, é imperdível.
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