A epopeia dos Van Zeller (descendentes de holandeses) em Portugal – contada pelo homem que precisou reconstruir a empresa de seus antepassados duas vezes
Por Arnaldo Grizzo Publicado em 08/11/2013, às 00h00 - Atualizado em 03/12/2014, às 08h04
Alguns dizem que Cristiano Van Zeller é um “engenheiro dos vinhos”, devido à sua formação em engenharia. No entanto, quando sua filha ainda era menina, ela deu uma boa definição para a atividade do pai: “Cozinheiro de vinhos”, ao vê-lo misturando e mexendo nos mostos e barricas.
Ao pararmos para observar o corpulento Cristiano fora de seu ambiente de trabalho, dificilmente diríamos que sua ocupação é o mundo do vinho. Seu porte é de um jogador de rúgbi – esporte que pratica desde os 9 anos até hoje. Sua formação (incompleta) é na engenharia, primeiramente a industrial, depois a civil (atividade de seu pai, Cristiano João). A enologia surgiu-lhe incidentalmente, quando a empresa ficou sem ninguém à frente com a morte do pai e do tio no começo dos anos 1980.
Foi então que Cristiano tomou as rédeas do negócio e, anos mais tarde, fez com que a marca Van Zeller, tradicionalíssima no vinho do Porto, ressurgisse quase que literalmente das cinzas. Mais do que isso, seu trabalho, junto com os amigos do Douro Boys, revolucionou os vinhos do Douro, que passam hoje a ser cada vez mais conhecidos pelos tintos tranquilos.
Sendo a 15ª geração da família, Cristiano trabalha para que seus filhos sigam no negócio. Tem três herdeiros. Um é médico na Inglaterra. Outro ainda estuda (marketing), joga futebol semiprofissional e, caso não siga na carreira esportiva, talvez se interesse pelo empreendimento familiar. Sua filha, Francisca, já está bem encaminhada no seguimento, atualmente trabalha em um projeto vinícola no Alentejo, mas já ajuda o pai na Quinta Vale Dona Maria. Quando ela completou 18 anos, o pai lançou o “Vinha da Francisca”, que usa a singular casta Tinta Francisca, plantada por ele juntamente a outras quatro variedades em um terreno de 5 hectares. “Um negócio familiar precisa de família”, brinca.
Homenzarrão, como diriam alguns, o herdeiro dos Van Zeller tem opiniões contundentes sobre os estilos de vinho da região e como eles devem ser promovidos. Nessa entrevista exclusiva, ele conta a história de sua família e como enxerga o futuro dos vinhos do Douro.
Os Van Zeller originalmente vêm da Holanda. Como foram parar em Portugal?
A minha família veio para Portugal, por questões políticas, no final do século XVIII. Éramos holandeses, flamengos, católicos. E meus antepassados se recusaram a jurar fidelidade à república protestante holandesa. Então, não havia outra saída a não ser saírem. Eram dois irmãos, um ficou na França e o outro veio para Portugal. Eu descendi diretamente do que veio para Portugal. Hoje em dia, a família é relativamente pequena, o sobrenome Van Zeller tem aproximadamente 400 pessoas no mundo inteiro. O mais interessante é que a família ainda mantém contato geração após geração, passados mais de 300 anos, e sabemos onde cada um está. Por exemplo, Madame de Lencquesaing, do Château Pichon Contesse de Lalande, era do ramo Van Zeller francês. Muitos acionistas da Moët & Chandon eram Van Zeller franceses.
Como os que vieram para Portugal se interessaram por vinho?
Em Portugal, a minha família começou a se dedicar ao vinho imediatamente. Eles, mal chegaram a Portugal e já casaram com famílias ligadas ao vinho do Porto. Por isso, fui buscar a minha ligação ao vinho do Douro, que ainda nem se chamava vinho do Porto, pelo menos até 1620, através de um senhor português cuja filha casou com um inglês, Thomas Maynard, que foi um dos primeiros ingleses a comercializar o vinho do Porto logo no século XVII. Contando isso, eu sou a 15ª geração ininterrupta no setor do Douro, do Porto. A família manteve uma ligação ininterrupta com o vinho do Porto de várias formas, primeiro, ligada a uma empresa chamada Van Zellers & Co, que foi vendida no século XIX e recomprada no século XX por Luís Vasconcelos Porto. Ela foi revendida quando vendemos a Quinta do Noval e hoje em dia é minha. Foi-me oferecida pelos meus primos, mas já sem ativos, só os nomes e as marcas. Refiz a empresa do zero.
"O DOC Douro não se entende sem o vinho do Porto e vice-versa. Essa simbiose é muito importante para que se compreenda a região"
E como você entrou no mundo do vinho?
A minha família tinha a Van Zellers & Co e Quinta do Roriz. A Van Zellers & Co foi vendida no século XIX aos ingleses. A Quinta do Roriz manteve-se na família. Meu avô, Cristiano Van Zeller, casou-se com Rita Vasconcelos Porto, que era a proprietária da Quinta do Noval. Daí surgiu a ligação da família Van Zeller, em 1930, à Quinta do Noval. Meu avô morreu ainda muito jovem, em 1937, e meu bisavô, em 1941. Então, houve uma separação da Quinta do Noval e do Roriz nessa altura. Meus pais se mantiveram no Noval. E meus tios-avôs ficaram com a Quinta do Roriz. Eu entro na empresa, no Noval, em 1981. Meu pai morreu muito jovem, com 46 anos, em 1979. Eu estudava Engenharia Industrial em Saint Sebastian, na Espanha, e depois vim para Portugal fazer Engenharia Civil. Em 1981, sem acabar o curso, fui para o Noval, quando um dos meus tios morreu e o outro saiu da empresa. Fiquei sozinho à frente da Quinta do Noval no dia 1o de setembro de 1982. Tivemos um grande incêndio em 1981, que me destruiu todos os escritórios, atingiu metade da produção e dos armazéns. E lá estava eu, batalhando numa empresa, sem experiência, com 23 anos. Fiz muita asneira.
Como foi passar da engenharia para a enologia?
Foi ao acaso. Nunca trabalhei como engenheiro e nem acabei o curso. Tive que assumir a empresa. Nos anos 1990, voltei para a faculdade e fiz quase tudo que faltava. Mas, mesmo assim, já não conseguia mais. É impossível fazer um curso de engenharia sem ir às aulas, e me faltava tempo. Fiquei com três, quatro matérias ainda por fazer. Foi ao acaso, porque, na minha vida, nunca pensei em entrar no ramo do vinho. Meu pai trabalhou como engenheiro civil, e foi professor universitário. Foi o engenheiro que fez todas aquelas barragens do Douro, depois trabalhou como gestor em outras empresas, mas teve uma vida muito curta. Era sócio da empresa do Vinho do Porto, da Quinta do Noval, esteve como membro do Conselho Fiscal por alguns anos. Mas a vida dele era outra. As circunstâncias fazem a vida dar voltas quando a gente menos espera. Sempre tive jeito, olfato e aptidão pelo vinho. As circunstâncias me fizeram ir para o mundo do vinho e não estou arrependido. Apesar de ter cometido muitos erros, o saldo é positivo.
Com o tempo, seu plano era reunir as empresas dos Van Zeller?
Era um projeto fazer a junção da Van Zeller, Quinta do Roriz e Quinta do Noval, que foram separadas em 1937, 1938. A família juntou-se toda em 1987 outra vez. Em 1987, 1988, eu consegui refazer a Van Zellers & Co dentro da família juntando à Quinta do Roriz. Seria um grande feito 50 anos depois. Em 1992, porém, a família decide vender a Quinta do Noval e todo esse projeto foi embora.
Qual foi sua trajetória depois?
Fiquei na Quinta do Noval mais uns seis meses. Falei para um amigo, Jorge Roquette, que estava saindo e, assim, minha mulher, Joana, e eu, já fomos dormir na Quinta do Crasto. Nesse dia combinamos as bases para trabalhar em conjunto no projeto da Quinta do Crasto, em 1994. E aí começaria a história dos Douro Boys. Em 1996, a família Ferreira, da Quinta do Vallado pergunta se eu quero trabalhar no desenvolvimento do projeto. Fui para lá. Em 1996, queria meu próprio projeto e surgiu a oportunidade de comprar a Quinta Vale Dona Maria. Mas é importante destacar que, em todos esses projetos, tinha uma forte relação de amizade com o Dirk Niepoort. Houve uma ajuda muito grande dele em vários projetos, no meu fundamentalmente. Os primeiros vinhos que fiz foram na Quinta de Nápoles, de Niepoort. Os segundos foram feitos no Crasto. A Quinta Vale Dona Maria tinha 10 hectares de vinha velha e todos os edifícios em ruínas. A ajuda de todos foi fundamental para o meu aparecimento. Saí do Crasto oficialmente no final do ano 2000. Do Vallado, em 2007. Já era hora, pois os projetos são das famílias e eu contribuía no que era necessário. Na época, já existia um embrião dos Douro Boys. Com o Dirk, já trabalhávamos todos em conjunto.
A Quinta Dona Maria era da família da sua esposa?
Sim, era da família da Joana, mas nós compramos em 1996. A família dela me perguntou se queria tomar conta e disse: “Quero, mas só se for minha!” Então, propus comprar e paguei à família. No começo, era uma quinta pequenina, fazendo muito vinho do Porto e pouco vinho DOC Douro. Vendia Porto à granel, e fazia 6 mil garrafas de Douro. Devagar, fomos aumentando Douro e diminuindo Porto, até que hoje fazemos 85% Douro e 15% Porto de nossas próprias vinhas, que hoje têm 45 hectares.
"A grande revolução do DOC Douro foi feita pelas famílias do vinho do Porto. É interessante a capacidade que essas famílias tradicionais tiveram de perceber essa transformação e liderá-la"
É verdade que seu primo lhe deu a marca Van Zeller de presente de Natal?
Sim. Recriamos a Van Zellers & Co como uma empresa independente em 1987. Meus primos, donos da Quinta do Roriz, tinham uma porcentagem e a Quinta do Noval tinha a maioria. Quando a Quinta do Noval foi vendida, a Van Zellers & Co foi com o pacote. Meus primos, porém, tinham uma opção de compra sobre a porcentagem da Quinta do Noval. Nessa compra, foi decidido que a Van Zellers & Co ficava sem estoque nenhum, só sobrava a marca. Nessa altura, eles foram desenvolver a Quinta de Roriz de forma autônoma e ficaram donos da marca e da empresa, mas sem ativos. Portanto, quando chegou 2007, era um peso morto. Então, meu primo, muito simpaticamente, ligou-me e disse: “Olha, se vire! Tu és que tens condições de fazer qualquer coisa com isso, porque ninguém faz nada. Então, eu dou-te."
"É um grande erro pensar que o DOC Douro pode ser transformado renegando suas histórias e origens, reduzindo dramaticamente o número de castas plantadas e, sobretudo, desenvolvendo o vinho de monocasta"
Quando você retomou a Van Zellers & Co, qual era o plano para ela?
O que sobrou foi a empresa e o nome, nada mais. Foi a segunda vez na minha vida que refiz a empresa toda. E, na época, fiz como aposta no vinho de mesa, mas também muito forte no vinho do Porto, que é uma tradição da empresa. Aliás, não é possível falar do Douro sem o vinho do Porto. O vinho do Douro, sem o Porto, não existe. Hoje em dia, o DOC Douro não se entende sem o vinho do Porto e vice-versa. Essa simbiose é muito importante para que se compreenda a região. Aliás, o vinho do Porto, no início de sua história, era um vinho seco, e assim permaneceu por metade de sua trajetória. O vinho do Porto doce e a forma com que se faz hoje é um processo que se desenvolveu por 60 anos no século XIX apenas. Essa ligação é um regresso ao passado, no bom sentido. E ela dá riqueza à região e a rejuvenesce. O Douro hoje só se consegue entender nessa junção.
O vinho DOC Douro não sobreviveria sem o do Porto. Pode-se dizer que ele é subsidiado pelo vinho do Porto?
Não. De maneira alguma! Não é uma sobrevivência no sentido econômico da palavra. É uma sobrevivência no sentido mais de imagem, da consistência da valorização do produto. Sem a imagem e da capacidade de internacionalização que o vinho do Porto nos dá, o Douro seria mais uma região que produziria um vinho tinto como há tantas no mundo. Antigamente, o vinho do Porto foi uma consequência do DOC Douro. E, hoje, o DOC Douro é uma consequência do vinho do Porto. Esse equilíbrio entre os dois é fundamental para a sobrevivência econômica da região. Para mim, é impensável, como produtor do Douro, não ter vinho do Porto. Isso seria algo como crime de lesa-pátria. A grande revolução do DOC Douro foi feita pelas famílias do vinho do Porto. É interessante a capacidade que essas famílias tradicionais tiveram de perceber essa transformação e liderá-la.
Cristiano Van Zeller, ao centro, com os Douro Boys
"Tenho 41 castas identificadas lá. Ninguém é maluco suficiente para repetir essas 41 uvas, nessa percentagem, em local semelhante. Nem eu mesmo consigo. O vinho que sai de lá é único e inimitável. Se podemos fazer isso, porque faríamos tudo igual?"
O Vinho do Porto sempre esteve ligado ao blend de castas e os vinhos DOC também costumam ter essa essência. Mas obviamente hoje se vê mais gente trabalhando na produção monovarietais. Qual é a tendência?
Tenho uma opinião muito particular sobre isso. Acho que é um grande erro pensar que o DOC Douro pode ser transformado renegando suas histórias e origens, reduzindo dramaticamente o número de castas plantadas e, sobretudo, desenvolvendo o vinho de monocasta. Em primeiro lugar, com poucas exceções, não há nenhuma casta no Douro que seja suficientemente complexa e completa para sobreviver sozinha com alguma constância. Mesmo se fosse a Touriga Nacional – que não acho que seja a melhor casta do Douro –, há 100 quilômetros de Touriga Nacional diferentes lá. Mesmo dentro de uma só propriedade, há altitudes e exposições que criam vinhos diferentes. Somos, por essência, blend. Reduzir essa nossa capacidade de diferenciarmos de todo o mundo, concentrando em monocastas, é um erro técnico e comercial brutal. A partir dos anos 1980, houve um plano em que se resolveu focar em cinco castas, para simplificar. É um erro. Qualquer país do mundo pode fazer monocastas e vai ter preço melhor e qualidade equivalente. O blend, essa diversidade, é única da nossa região. Tenho 41 castas identificadas lá. Ninguém é maluco suficiente para repetir essas 41 uvas, nessa percentagem, em local semelhante. Nem eu mesmo consigo. O vinho que sai de lá é único e inimitável. Se podemos fazer isso, porque faríamos tudo igual?
Como promover os vinhos portugueses com tantas castas? Isso não confunde o consumidor, às vezes?
Reduzir as castas é ir contra a essência e a capacidade de, no longo prazo, diferenciarmo-nos. Dá-se sempre o exemplo do Novo Mundo, mas fazer como no Novo Mundo, na região mais cara do mundo, com a menor produtividade que existe, é um suicídio. Cada um se mata como quiser, mas que não arraste os outros.
Fazer marketing de Portugal como um todo é muito complexo?
Sim, é um erro, porque Portugal é complexo, tem uma diversidade tão grande e o dinheiro que temos disponível é curto. Acho que Portugal deveria focar nas regiões em que há capacidade de marcas dentro que estejam estabelecidas nos mercados. A promoção de Portugal, como um todo, parte do princípio em que a prioridade é o país, depois a região, depois a marca. Quando, porém, só se constrói qualquer coisa ao contrário: marca, depois região, depois país. A marca está à frente de tudo. As marcas constroem a região e não o contrário. Foi assim no Douro, no vinho do Porto e é assim em todo o mundo. Quem construiu Bordeaux? As marcas.
Você tem um projeto em Toro também? Por que decidiu investir lá?
Tenho vinhas em Toro, não enxertadas, uma parte de 140 anos. O projeto, chamado Terra d’Uro, começou em 2007. Jogo rúgbi e a jogar com amigos espanhóis começou essa experiência na Espanha. Defendo minha participação lá de quatro formas. Primeiro, a Tinta de Toro foi trazida para o Douro pelo meu trisavô, no século XIX, e se chama Tinta Roriz, porque foi plantada na Quinta do Roriz. Era a Tinta de Roriz. Depois, trabalho com vinhas não enxertadas, que, no Douro, só existem na Quinta do Noval, plantadas por meu bisavô, que dão origem ao melhor vinho do Porto. A terceira, é devido ao rio Douro, que corta a região. A última razão é porque as vinhas estão na região da “Batalha do Toro”, entre os reis de Portugal, em 1476, que definiu a separação definitiva das coroas de Castela, onde meus antepassados deixaram o sangue. Digo aos espanhóis que estou a recuperar o sangue dos meus antepassados. [risos]
Qual é o seu plano agora?
Gostaria que meus filhos realmente continuassem os negócios e que passem isso para seus filhos. Meu plano é que minhas cinzas sejam espalhadas nos montes do Douro. A minha ambição no Douro é criar uma história sendo uma somatória de pequenas histórias, pois cada parcela de vinhas é diferente. O Douro é um pouco como Borgonha e Bordeaux em termos de terras. Existem propriedades que são bastante homogêneas, como em Bordeaux, e, dentro dessas propriedades, cada canto é um canto, como a Borgonha. No Douro, temos essa vantagem multiplicada por uma diversidade de castas.
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