Vinícolas novas e nomes consagrados podem ser capazes de mudar a imagem de um ícone sulista
Silvia Mascella Rosa Publicado em 30/06/2010, às 11h11 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h46
Onde sopra o gelado vento minuano vindo dos Andes e os pampas se desdobram em coxilhas suaves unindo Brasil, Uruguai e Argentina, vive um personagem típico sulista. Cantado em verso, prosa, lenda e história, o gaúcho que vive em nossas fronteiras é a quintessência do homem do campo.
Vestido com bombacha, botas, poncho, lenço, guaiaca e chapéu, esse personagem tem nas mãos o laço que usa no campo, ou a cuia e a bomba de mate dos momentos de descanso. Mas se o traje tradicional, conhecido como pilcha, em nada deve mudar - ele é regulamentado pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho - o que esse homem carrega nas mãos poderá variar tremendamente com o crescimento da vinicultura pampeira.
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Vinhedos da Almadén, hoje controlada pelo grupo Miolo |
O espaço para as taças de vinho está, nos últimos meses, sendo varado a golpes de facão por várias vinícolas da Serra Gaúcha e também por novos empreendimentos locais. Terra é o que não falta.
As longas extensões dos pampas, que englobam desde o limite leste (que separa a região vinícola da Campanha da região da Serra do Sudeste) começam na cidade de Candiota (onde está instalada a Miolo com a Fortaleza do Seival), passando pela cidade de Bagé e terminando em Dom Pedrito. Essas áreas são conhecidas como Campanha Meridional. Na sequência, na direção da Argentina, a oeste, ficam as cidades de Santana do Livramento (onde estão a Salton e a Almadén), Uruguaiana e Itaqui, que compõem a Campanha Ocidental.
Rótulos poderosos
As uvas que vêm da Campanha há muito são transformadas em vinho na Serra Gaúcha. A Cooperativa Aliança (que nasceu em 1931 em Caxias do Sul) tem até uma cantina por lá há décadas. A Casa Valduga, a Piagentini e a Vinícola Góes & Venturini estão entre as empresas que descem da serra para comprar uvas. A centenária vinícola Salton tem, desde 2001, uma parceria com 35 produtores de Bagé e de Livramento, que entregam as uvas vindas de 300 hectares com exclusividade em Tuiuty todos os anos.
Mas, após o embate de setembro do ano passado, que colocou Salton, Miolo e outras grandes vinícolas na mesa de negociação para a compra da Almadén, a Salton - que não conseguiu cobrir a oferta do grupo Miolo - ainda queria mais. Assim, anunciou neste ano a compra de 700 hectares na região de Santana do Livramento, a fim de aumentar e qualificar a sua produção de uvas. Sem perda de tempo, a empresa já está fazendo um levantamento por satélite para confirmar as características do local e realizar um estudo para o melhor aproveitamento nos parreirais. "Ainda neste ano, planejamos plantar 30 hectares de uvas brancas Chardonnay para a elaboração de espumantes", antecipa Daniel Salton, diretor-presidente da vinícola. Mas os primeiros vinhos vindos da nova propriedade só devem chegar ao mercado em 2015.
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Na enorme propriedade de 1.200 hectares da Almadén (575 dos quais cultivados), os investimentos de R$ 2 milhões feitos em melhorias no processo de vinificação já aparecem no mercado. "Os 10 novos vinhos lançados agora permitirão aos consumidores degustar uma nova fase da Almadén. São produtos mais frutados e sem adição de açúcar, acompanhando as tendências dos vinhos do Novo Mundo, ideais para o dia-a-dia", afirma Adriano Miolo, diretor-técnico da empresa. Isso sem contar que todos os vinhos da linha Reserva e Seleção que a Miolo fazia na Serra Gaúcha passarão a ser feitos na propriedade de Candiota, com seus 150 hectares de parreirais em produção.
O potencial da região foi descoberto pela Almadén ainda na década de 1970, quando o grupo americano se instalou no Brasil, e foi sendo estudado aos poucos pela Universidade de Davis, na Califórnia, por técnicos da universidade de Pelotas e pela Embrapa, em parceria com produtores da região. A enóloga Rosana Wagner conhece a região de Livramento há 25 anos, desde os tempos em que foi trabalhar na Almadén e explica que vários dos vinhedos da Campanha, que fornecem uvas para a Serra Gaúcha, são de funcionários ou ex-funcionários da própria Almadén. "Estamos muito distantes da Serra, então a maioria dos produtores não queria se estabelecer por aqui, queriam somente comprar as uvas", explica Rosana, feliz com a mudança de rumos da vinicultura local.
O potencial da região da Campanha foi descoberto pela Almadén na década de 1970, e foi sendo estudado aos poucos
Ela e o marido, o também enólogo Gladistão Omizzolo compraram terras ao lado do Cerro de Palomas em 1999 e implantaram 24 hectares de vinhedos depois de um estudo longo das características da região. "Estamos no paralelo 31, o mesmo de regiões produtoras como Chile, Argentina, África do Sul e Austrália, que têm vinhos de excelente qualidade. Uma vantagem daqui é a continentalidade que, aliada a uma atmosfera límpida, resulta em diferenças maiores entre as temperaturas mínima e máxima. Somado a uma maior insolação, produzimos uvas com maior teor de açúcar", afirma Rosana. Sua vinícola, a Cordilheira de Sant'Ana, colocou no mercado os primeiros vinhos em 2005 e obteve grande sucesso com varietais intensos e longevos das uvas Gewürztraminer e Tannat, além das tradicionais Cabernet Sauvigon, Merlot e Chardonnay.
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As temperaturas médias durante o dia são mais altas na região Ocidental da Campanha e vão baixando discretamente em direção ao centro e a Meridional. As altitudes são menores do que na região do Vale do São Francisco, no Nordeste
Aproximando as léguas
Uma extensão de terras tão grande como a da Campanha (somente a fronteira sul com o Uruguai tem mais de 1.000 quilômetros), recebe subdivisões geográficas ainda mais diferenciadas do que Meridonal e Ocidental. Geograficamente falando, existe também uma região intermediária conhecida como Campanha Central. Para o mundo dos vinhos, o que mais interessa é saber que as temperaturas médias durante o dia são mais altas na região Ocidental e vão baixando discretamente em direção ao centro e a Meridional; e que as altitudes são ainda menores do que na região do Vale do São Francisco, no Nordeste.
Aproximar tanta terra e lutar por objetivos comuns será a função da recém criada Associação de Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, anunciada formalmente no final de abril. O vice-presidente da entidade é Valter José Pötter, dono da Estância Guatambu, uma enorme e tradicional propriedade agropecuária (localizada no município de Dom Pedrito). Ele, em 2003, iniciou-se na vitivinicultura ao lado da filha Gabriela, uma agrônoma com especialização em enologia. "Começamos a associação com 15 vinícolas e unindo nove municípios. Oito dessas vinícolas já possuem cantinas e ao menos outras quatro estão em construção. Todas elas têm seus próprios vinhedos", revela Pötter.
A nova associação vai, desde o começo, se preparar para buscar a Indicação Geográfica para a região, o que pode ser facilitado pelo bom conhecimento que os pesquisadores da Embrapa Uva e Vinho têm de algumas propriedades e também pelo trabalho que já realizam para outras regiões do estado do Rio Grande do Sul em busca de suas Indicações Geográficas e da Denominação de Origem do Vale dos Vinhedos.
O enólogo e pesquisador Mauro Zanus é o coordenador do acompanhamento técnico que foi dado para a Estância Guatambu quando o projeto começou, sendo que todas as primeiras microvinificações foram feitas na sede da Embrapa em Bento Gonçalves. Ele explicou que a região de Dom Pedrito tem a paisagem típica do bioma dos pampas, caracterizado pelas grandes extensões de plantas gramíneas, em planícies onduladas. "Hoje podemos dizer que as análises físico-químicas e sensoriais dos vinhos denotam uma excelente aptidão enológica da região de Dom Pedrito, devido ao solo de boa drenagem e clima particular. Isso permite a colheita de uvas sadias e com elevado grau de maturação, originando vinhos de boa coloração, de aroma complexo e paladar equilibrado", afirmou Zanus.
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Vinhedos em Candiota (foto da página 44) e em Campos de Cima (fotos do centro e da direita) |
Outra vinícola que se utilizou dos serviços da Embrapa em seus primeiros passos foi a Campos de Cima, localizada no município de Itaqui, perto da fronteira com a Argentina. A propriedade familiar e centenária do casal Hortência e José Ayub já tem 15 hectares de uvas viníferas, com mudas selecionadas e importadas da Itália e da França que começaram a ser plantadas em 2002 e 2003. A comercialização começou somente no ano passado e o mercado recebeu bem os varietais de Ruby Cabernet (uma combinação das uvas Cabernet Sauvignon e Carignan), Viognier e um espumante brut, entre outros rótulos. O pesquisador da Embrapa, Celito Guerra, que participou do projeto da Campos de Cima, conta que essa região fronteiriça é muito particular e bela: "É uma região ímpar, de solos profundos, noites frias e os verões mais quentes da Campanha, realmente um lugar privilegiado".
Hortência Ayub já mandou alguns de seus vinhos para uma feira no exterior, a ProWein 2010 na Alemanha, e ficou impressionada com a recepção dos produtos: "Temos como meta os mercados do Rio Grande do Sul e de São Paulo, mas não podemos deixar de pensar no mercado externo que está bastante receptivo", explica.
Produtores - grandes e pequenos - estão se associando para desenvolver uma rota enoturística na Campanha Gaúcha
Venha ver os pampas
Vinícolas pequenas como a Campos de Cima em Itaqui, Cordilheira de Sant'Ana em Livramento, Guatambu em Dom Pedrito e Peruzzo em Bagé (que tem a supervisão do enólogo Adolfo Lona), alinham-se às grandes vinícolas da Campanha na nova associação de produtores também com o objetivo de desenvolver uma rota enoturística. "Em Livramento, temos um turismo forte por conta da cidade de Rivera e das compras de importados. No lado oposto - perto de Bagé - temos os turistas que chegam nos navios na cidade de Rio Grande e cada dia mais avançam continente adentro. Tenho certeza de que com investimentos corretos poderemos ter uma rota enoturística forte e diferenciada", afirma Valter Pötter. A sua vinícola já está fazendo uma parte, com pesquisas e preservação da biodiversidade em suas propriedades e o projeto quase pronto da Vinícola da Estância, com loja e restaurante para receber os viajantes. No começo de 2011, com todos os vinhos já sendo feitos em Dom Pedrito, o elegante casal Valter José e Nara, junto da filha Gabriela, prometem receber os viajantes com uma taça do novo espumante Nuance do Pampa. Ele estará vestido com sua impecável bombacha.
Vindos dos confins do Brasil, onde as tradições persistem com galhardia, espera-se que os novos vinhos sejam recebidos nas rodas de chimarrão com a felicidade de paisanos a meia-guampa.*
*expressão gauchesca que significa : alegre como amigos/camaradas meio bêbados.