Desenhando o futuro

As ações para transformar o vinho brasileiro em um produto competitivo começam finalmente a sair das cantinas e chegar às prateleiras, mesmo com alguns entraves persistentes

Sílvia Mascella Rosa Publicado em 08/02/2010, às 14h05 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h46

O ano de 2009 foi, provavelmente, o mais movimentado em negócios para o vinho brasileiro em muito tempo. Mesmo que a comercialização total (240 milhões de litros de vinhos finos e de mesa) ainda esteja abaixo da que ocorreu em 2005, quando foi atingida a marca de 293 milhões de litros vendidos.

É fácil explicar por que se reconhece um ano como sendo bom mesmo que os números totais mostrem o déficit de 18% que ainda persiste em relação a 2005. O setor conseguiu, no ano passado, reverter a curva de queda que se desenhava há algum tempo, com um aumento de consumo de 12% em relação a 2008, conforme levantamento do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin).

O desempenho foi ainda mais expressivo quando se observa somente o consumo de vinhos finos tintos, que cresceu 14,6% com um volume de 13 milhões de litros, maior até do que o de 2005. A outra boa notícia fica por conta dos espumantes, que tiveram um crescimento de consumo de 18,25% em relação a 2008, totalizando 11,2 milhões de litros.

Vale ressaltar que esses números são relativos aos vinhos elaborados no Rio Grande do Sul (o que significa quase 90% d a produção nacional). Os dados das outras regiões não estarão disponíveis enquanto todos os produtores não estiverem inscritos no “Cadastro Vitivinícola”, uma ferramenta de controle e avaliação muito importante, ligada ao Ministério da Agricultura e, por vezes, relegada a segundo plano.

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As ações

O salto de comercialização, principalmente em um ano de crise, é resultado de um conjunto de ações que vêm, paulatinamente, modificando a imagem do vinho brasileiro perante os consumidores nacionais e internacionais. Estes últimos que, na maior parte das vezes, nem mesmo sabiam que o Brasil produzia vinhos finos já estão se transformando em compradores com potencial de influenciar o volume de produção.

Atuação pontual do Ibravin certamente fez grande diferença

Não é possível pensar que simplesmente o fato de fazer vinhos de melhor qualidade seja suficiente para conquistar a clientela. O resultado positivo vem (também) do despertar, de grande parte do setor, para a realidade do mercado globalizado, em que uma enormidade de estratégias precisam ser adotadas para comercializar um produto. A qualidade dele (embora imprescindível) é apenas uma delas.

Seria ingênuo dizer que o Ibravin é a única força motriz dessa tão necessária reviravolta nos negócios do vinho nacional, mas se não é a única, é quem mais atuou pelos mercados consumidores nos últimos tempos. Algumas ações efetivas (embora contestadas por produtores aqui e ali) são a criação e veiculação da campanha “Vinhos do Brasil - Abra e se Abra”, lançada na Expovinis de 2009, que aproximou várias vinícolas brasileiras de seus consumidores; a continuidade da parceria do instituto com a Apex Brasil (a agência de estímulo à exportação) nas ações do programa setorial Wines from Brazil, que colocou nossos produtos pela primeira vez em um estande comum dentro da Vinexpo de Bordeaux, gerando visibilidade e negócios importantes para os vinhateiros; e o projeto “Quality Wine” para os produtores, realizado em três cidades brasileiras produtoras de vinhos, visando o melhor entendimento do mercado consumidor e treinamento específico para mudanças necessárias em direção a vinhos de qualidade cada vez mais sólida.

Setor reverteu curva de queda e apresentou aumento de consumo de 12%. Vinhos finos tintos e espumantes foram os que mais se destacaram no ano

Essas ações, entre tantas outras como a existência de estandes do “Vinhos do Brasil” nos supermercados e até na área de embarque do Aeroporto Internacional de Cumbica em São Paulo, tiveram peso expressivo no setor e devem continuar neste ano de 2010, conforme divulgou o novo presidente do conselho deliberativo do Ibravin, Júlio Fante. Entre as cinco prioridades apresentadas por ele para o novo ano estão a sustentabilidade dos produtores e das vinícolas; o combate à excessiva carga tributária que penaliza o setor; o incremento das atividades de marketing e divulgação do vinho gaúcho e brasileiro; a autofiscalização e o aprimoramento dos programas de qualidade. “Estou aqui para somar, com plena consciência da imensa responsabilidade que assumo”, disse o presidente em sua primeira reunião com a equipe.

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Chuva na lavoura

Infelizmente, nem só de boas notícias vive o mundo do vinho. Os números apresentados acima, embora positivos, englobam a produção e comercialização de vinhos de mesa, de consumo ainda significativo em nossa sociedade. Tocar nesse assunto na presença de alguns produtores de vinho de mesa é certeza de indignação e protestos acirrados agarrados ao garrafão.

Claro, ninguém mexe em time que está ganhando certo? Errado. Vinhos finos agregam valor. Custam mais caro para fazer, mas são vendidos por melhor preço e reforçam a imagem positiva do produtor e do consumidor. Assim, o caminho mais retilíneo para as uvas de mesa é o da produção de suco de uva, que também teve uma comercialização recorde em 2009, com aumento de mais de 40% em relação a 2008. Uma das ações mais importantes desse setor, a propósito, foi conseguir que o suco de uva integral passe a ser parte da merenda escolar no Rio Grande do Sul, o que representa não somente certeza de comercialização, mas também mais saúde na mesa da criançada.

Ainda no campo da controvérsia, está a questão do selo fiscal, que mascara o desejo de impedir a entrada de importados e de colocar contra a parede os pequenos produtores nacionais, sob a alegação de que seria um instrumento de fiscalização e controle. A proposta perde adeptos a olhos vistos, mas ainda tem o apoio de gente de peso dentro da cadeia produtiva. O assunto parece alma penada no momento, pairando em um limbo político ao qual é difícil saber quem tem acesso.

Em dezembro do ano passado, algumas reivindicações sérias do setor conseguiram ser levadas até a mesa do presidente da República, em um encontro com jantar regado a vinhos brasileiros, que aconteceu no Rio de Janeiro, promovido pela Apex. Infelizmente, o pedido mais importante (redução de carga tributária) não contou com a simpatia de Lula, que deu a seguinte explicação: “Esse é o único ponto em que vamos continuar tendo discordância: não imaginem um país com carga tributária fraca. Não tem país no mundo em que o Estado possa fazer alguma coisa, que não tenha uma carga tributária razoável”, afirmou o presidente em discurso reproduzido pela Agência Brasil de Comunicação.

Aumento do consumo per capta ainda esbarra na geografia brasileira, portanto é necessário investir em mercados distantes dos produtores

Resta ao setor lutar pela diminuição da carga tributária no nível estadual e municipal. O Rio Grande do Sul e Santa Catarina já conseguiram alguns avanços assim. O primeiro com uma negociação focada sobre a substituição tributária, que teve a participação positiva da governadora Yeda Crusius, e o segundo com a diminuição do ICMS sobre os vinhos da região, que teve a mão forte de empresários do estado e da ACAVITIS (Associação Catarinense dos Produtores de Vinhos de Altitude). O governo de São Paulo, por sua vez, vem se mostrando na contramão ao criar empecilhos para o setor.

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Vinho brasileiro participou de grandes feiras internacionais


Raízes firmes

Uma das lições poderosas do ano de 2009 para o mundo do vinho nacional é a de que ações concretas, estudadas, bem dirigidas e contínuas podem reverter situações complicadas, mesmo que demande tempo e dinheiro. Só assim são nutridas as plantas bem enraizadas que, com o devido tratamento, darão bons frutos por muitos anos.

O enólogo da Casa Valduga, Daniel Dalla Valle, recém-eleito vice presidente da Associação Brasileira de Enologia, acredita que em 2010 não devem ser deixadas de lado nenhuma das atividades que fizeram de 2009 um bom ano: “Precisamos continuar trabalhando para melhorar nossos produtos e a imagem do vinho brasileiro. Mas não podemos deixar de nos preocuparmos em entender o mercado e o consumidor, pois não há como crescer sem saber como isso funciona e nos influencia.”

O aumento do consumo per capita, que muitos acreditam que não está mais na casa do 1,8 litros/ano, encontra um entrave importante na geografia brasileira – isso sem considerar o preconceito ainda existente entre muitos. Quase 50% do consumo de vinhos está concentrado nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Com o crescimento da população do País (que já bateu o número de 190 milhões de habitantes), não há como fazer crescer o consumo interno sem investir em outros mercados, por vezes distantes dos produtores, arcando assim com o preço de transporte e divulgação local. Mas pode ser que seja uma questão de vencer a barreira para crescer na própria terra.

Há exatamente um ano, neste mesmo espaço, em face à crise que assombrava todos, deixamos a mensagem de que o caractere da escrita chinesa que representa “crise”também podia ser lido como “oportunidade”. Hoje, face aos desafios que ainda restam, cabe a frase de um poema do espanhol Antonio Machado (1875-1939): “Caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar”. Caminhemos, pois.