Drinks cinematográficos

No clássico Casabalanca, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman celebram o amor com drinks à base de champagne, e o Dry Martini foi popularizado pelo astro Clark Gable há mais de 70 anos

Marcelo Copello Publicado em 12/03/2007, às 08h06 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

Em Casablanca, os personagens Rick e Ilza degustavam champagne no Café Americain

Em seus primórdios, o vinho raramente era bebido puro. Os antigos gregos consideravam o consumo do fermentado, em seu estado natural, uma prática de bárbaros, avessa ao bom gosto. O néctar de Dionísio era diluído em água (normalmente do mar), adoçado com mel e temperado com as mais diversas especiarias. Preparar o vinho era uma verdadeira arte, destinada aos symposiarcas, os primeiros sommeliers ou bartenders da história. Ao que parece, essas misturas à base de vinho talvez tenham sido os primeiros coquetéis de que se tem notícia. Daí em diante, a criatividade dos bebedores foi amplamente usada a serviço das misturas, e não se limitou a usar apenas vinho como base alcoólica. Alguns drinques tornaram-se clássicos, quase tão importantes quanto a bebida pura que lhes serve de base.

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Mas todo amante de coquetéis sabe: um drinque, para tornar-se famoso, precisa ter berço e história, como uma espécie de certidão de nascimento ou carteira de identidade. Os verdadeiros clássicos costumam ter muitos inventores, reproduzir várias “receitas originais” e estar cercados de lendas. Não raro, é impossível determinar com precisão a verdadeira origem.

O comediante George Burns era fã de Blood Mary

Muitos surgiram de fatos curiosos, como o Sidecar (conhaque, suco de limão e Cointreau). Foi criado em 1931 por Harry MacElhone, do Harry’s Bar de Paris, no dia em que uma moto se chocou contra o estabelecimento e quase o destruiu. Verdade ou imaginação inflamada, não importa. Com freqüência, as melhores histórias sobre coquetéis são pura ficção. Um bom exemplo é a versão da criação da caipirinha, deliciosamente relatada no best-seller “O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares.

No romance policial, Dr. Watson, fiel companheiro de Sherlock Holmes, teria criado o coquetel brasileiro, por excelência, ao acaso. Na realidade, a batida, muito provavelmente, foi inventada quando alguém decidiu espremer limão e misturá-lo à cachaça como um remédio para aflições respiratórias. A tese mais aceita é a de que, a exemplo do que aconteceu com a angostura, o gim e alguns licores, a capirinha surgiu como remédio no final do século XIX ou no início do XX, em São Paulo. A hipótese tem fundamento na expressão caipira, que denomina os nascidos no interior e é típica do Estado de São Paulo.

Momentos de tristeza também motivaram a elaboração de misturas. Foi assim em 1861. Enquanto todos na Inglaterra choravam com a morte do príncipe Albert, um fiel súdito disse que, naquela data, até o Champagne deveria ficar de luto. Em seguida, serviu a bebida acrescida de cerveja preta. Estava criado o Black Velvet, ou veludo negro.

Outras mesclas favoritas à base do nobre borbulhante tiveram criações mais alegres. É o caso do Bellini, uma refrescante junção de suco de pêssego e espumante. O cenário era a Veneza do início dos anos 40, e o autor, Giuseppe Cipriani, do Harry’s Bar, que buscou inspiração no colorido das obras renascentistas de Giovanni Bellini.

Na galeria das misturas à base de espumante, quem reina é o Kir Royal (Champagne e licor de cassis). Criado por Canon Felix Kir, na França, a mistura inicialmente chamava-se apenas Kir e previa a utilização de vinho branco de mesa seco, mas, para ganhar nobreza, na versão “Royal”, substituiu-se o vinho de mesa pelo nobre espumante.

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Combinações com Champagne nunca saem de moda e são tão clássicas como Casablanca. No cultuado film noir, o Café Americain é o palco para Rick (Humphrey Bogart) virar várias taças do vinho espumante junto da amada Ilsa (Ingrid Bergman). Ao fundo, o piano de Sam (Dooley Wilson). Quando não era apreciado puro, o Champagne se transformava no coquetel de Champagne, típico do sul dos Estados Unidos. Além do vinho gasoso, também estão na taça brandy, açúcar branco e gotas de angostura. A associação de clássicos do cinema com drinques tradicionais é o tema de Hollywood Cocktails, de Tobias Steed. Ricamente ilustrado, o livro traz fotos nas quais se pode ver toda a afinidade da fábrica de ilusões com a cocktail hour. Segundo o autor, “nos filmes, a hora do coquetel dava aos cineastas uma pausa na ação e uma possibilidade de desenvolver as narrativas. Era também, é claro, um momento de reflexão e de se refrescar”.

O cinema talvez não tenha criado, mas certamente ajudou a tornar memoráveis muitos drinques. O Dry Martini, por exemplo, deve muito de sua popularidade a Clark Gable. Em After Office Hours (1935), o galã ajudou a criar o hábito do happy hour e do mito do Dry Martini. Como outros coquetéis, esse ícone teria surgido ao acaso. Data do final do século XIX a versão mais aceita para a gênese. Numa espelunca, o barman Jerry Thomas teria improvisado este “rabo-de-galo” para saciar a sede de um viajante que estava a caminho da cidade de Martinez, na Califórnia. O cliente teria gostado tanto da novidade a ponto de desembolsar uma pepita de ouro para pagar a conta.

A receita é aparentemente simples: gim, vermute e uma azeitona para decorar. Basta juntar as bebidas numa coqueteleira, bater com gelo e servir coada. O segredo está na quantidade de vermute – quanto menos, mais “dry”. Muitos colocam apenas algumas gotas, outros, ironicamente, apenas sussurram o nome “vermute” para o copo. O cúmulo é colocar a garrafa de vermute ao lado deste, de modo que um raio de luz transpasse ambos perfazendo uma mistura espectral.

O ator Clark Gable: happy hour com Dry Martini

A fórmula foi tão disseminada que originou variações, como o Manhattan, em que o gim é trocado por bourbon e a azeitona, por uma cereja. Uma dama estaria por trás desta criação. De acordo com Steed em Hollywood Cocktails, a invenção aconteceu no início do século XX no New York’s Manhattan Club, a pedido de lady Randolph Churchill, mãe de Winston Churchill.

Fatos históricos desencadearam a criação de algumas combinações. O Daiquiri (rum, suco de limão e açúcar), por exemplo, era carregado pelos cubanos em cantis de couro atados à cintura. Os nativos se refrescavam com alguns goles entre a degola de um invasor espanhol e outro. Mais tarde, quando os americanos invadiram a ilha, fizeram-no pela praia de Daiquiri, batizando assim o célebre coquetel, que inicialmente consumiam medicinalment, sob o argumento de prevenir a febre amarela. Outra versão aponta ainda o engenheiro americano Jennings Cox, que teria vivido em Cuba no século XIX, como o inventor.

A ilha paradisíaca sempre foi rica fonte de mesclas a partir do rum, o destilado local. O preferido do escritor Ernest Hemingway era o Mojito (rum, suco limão, açúcar, folhas de hortelã e soda), que ele costumava beber fiado nos bares locais. Mais popular entre os moradores do recanto caribenho, porém, é a Cuba Libre, concebido por um soldado americano a serviço na ilha no início do século XX.

Entre histórica e curiosa está a criação da Marguerita, a mais notória miscigenação à base de tequila, acrescida de Cointreau e suco de limão e servida com uma franja de sal. Muitas lendas situam a invenção no velho oeste americano. A versão mais romântica conta que foi criada por um bartender em homenagem à senhorita que emprestou seu nome à mistura. Ela teria se interposto entre ele e uma bala assassina, salvando assim a vida do amado enquanto morria em seus braços.

Escritor Ernest Hemingway: Mojito com rum

É ainda possível que rabos-de-galo sejam frutos de um contexto social. É o caso do Bloody Mary, surgido na Paris dos anos 20, quando os excessos eram a regra, com as noites alegres e manhãs nem tanto. O comediante George Burns, que viveu por 100 anos, feliz com seu charuto, costumava dizer: “Basta um drinque para me deixar mal, mas nunca sei se é o 13º ou o 14º”. Ele certamente só sobreviveu aos anos loucos graças a vários copos de Bloody Mary. Esta espécie de antidrinque da manhã seguinte, que agrega pecado e redenção, combate fogo com fogo. A fórmula é simples: vodca, suco de tomate e infinitas discussões sobre quais seriam os temperos ideais, sendo os mais usados o limão, o molho inglês e vários tipos de pimenta.

É para acordar qualquer papila gustativa que ainda esteja adormecida: o tomate é um notório tônico e a vodca dá ao metabolismo a ilusão de que a festa continua, o que para alguns pode ser verdade. Só uma coisa intriga a respeito deste coquetel: se ele é o antídoto para o day after de qualquer veneno, qual seria a cura se a picada da véspera tivesse sido da própria “Maria sanguinolenta”?

A resposta vem dos céus. É o Virgin Mary, que segue a mesma fórmula da versão Bloody, porém sem seu elemento ativo, a vodca. O suco de tomate, temperadíssimo, deve ser sorvido com uma prece e uma promessa, a de não se envolver mais com nenhuma Maria derramada em álcool.