Descubra a diferença entre esmagar as uvas com o pé ou com máquinas e o porquê de a técnica de pisa ainda ser usada atualmente
Arnaldo Grizzo Publicado em 03/01/2022, às 19h00
Uma das mais antigas tradições da vitivinicultura mundial sobrevive até hoje não apenas como brincadeira dos festivais das colheitas, mas também como método de maceração preferido por alguns produtores. Sim, a pisa a pé, uma das primeiras maneiras que o ser humano encontrou para prensar as uvas para fazer vinho, ainda é tida como uma das formas mais interessantes de realizar a prensa.
É interessante pensar no porquê de ela ter sobrevivido, já que as técnicas e tecnologias para prensar e macerar as uvas evoluíram muito rapidamente. Em pouco tempo, o homem criou maneiras de prensar a uva com o uso de ferramentas e máquinas, fazendo com que o processo fosse muito mais veloz e menos cansativo. Há prensas de vinho quase tão antigas quanto lagares de pisa.
Então, por que a pisa a pé em lagares de pedra continua sendo usada? Seria apenas por tradição? Seria por marketing? Produtores centenários da região do Douro, por exemplo, até hoje não abrem mão da pisa a pé para seus Vinhos do Porto. Segundo eles, nenhum outro método se mostrou tão eficaz para a produção desses vinhos singulares.
A pisa a pé faz sentido na produção dos Portos, pois eles são vinhos de maceração curta (são fortificados, o que interrompe a fermentação, extração de cor etc.) e ainda assim extremamente densos em cor e sabores. Aqui então a pisa seria o método ideal, porque o pé humano, ao prensar a uva contra o chão, libera mais cor das cascas e também outros componentes de aroma e sabor se comparado com outras formas de prensagem por máquinas.
Apesar de ser uma prática mais comum entre os produtores de Porto, ela não é exclusiva deles e tampouco exclusiva de vinhos fortificados. Tanto no Douro quanto em outras partes do mundo, há tintos tranquilos e também outros tipos de vinho sendo produzidos com pisa a pé em lagares.
“Esta técnica está intimamente ligada à fermentação em lagar e tem a sua história, em Portugal, na produção de vinhos tintos do Douro (fortificados e tranquilos). Acredito que o fundamento para a sua utilização seja a rápida, total e suave extração de todos os componentes da uva. Relembro que o tempo de fermentação dos vinhos fortificados são de dois a três dias enquanto que o de um vinho tranquilo é de oito a 10. Se recordarmos que, no passado, não existiam esmagadores, ainda se percebe melhor o porquê da sua utilização”, conta o enólogo Rui Cunha, da Secret Spot Wines.
“A vinificação em lagar permite uma extração mais suave, mais selectiva e, por isso, melhor. Os vinhos são mais sólidos, mais concentrados, com maior estabilidade corante e aromaticamente mais ricos. Talvez com fruta menos evidente, mas com maior complexidade”, garante José Luis Moreira da Silva, da Quinta dos Murças, que vinifica todos os seus vinhos com pisa a pé.
A maioria das prensas mecânicas tende a romper as sementes de uva, potencialmente liberando elementos amargos, muitas vezes indesejáveis. Já o pé humano, não importa o quão forte alguém pise na uva, é incapaz de romper uma semente. A pisa costuma ser um processo que dura horas, enquanto que uma prensa mecanizada tende a realizar todo o trabalho em minutos. Essa questão do tempo faz diferença, pois quanto maior o contato com as cascas, mais cor é extraída, mais aromas, mais sabores.
“Algumas das vantagens da pisa a pé são a rápida e suave extração dos compostos do bago. Para mim talvez o ponto mais importante. Como está associada ao lagar, pressupõe obviamente uma fermentação em contato com o oxigênio, originando vinhos mais ‘abertos’, cheios e estruturados. Além disso, é um processo fermentativo sem recurso a nenhum tipo de bombagem, ou seja, ‘amigo’ do ambiente (zero pegada CO2) e, por fim, pode ser associada depois a um final de fermentação em cuba inox que permite uma maceração pós-fermentativa”, aponta Cunha.
“A extração em lagar é melhor e mais seletiva, dando origem a vinhos mais concentrados, com mais cor e taninos. O maior risco que existe não é a oxidação, como se poderia pensar, mas sim a sobre-extração. É muito fácil extrair (e principalmente no Douro) demais e, com isso, produzir vinhos demasiadamente concentrados, com taninos a mais, e desequilibrados”, diz Silva.
Muitos veem a pisa como um processo pouco higiênico, mas vale lembrar que muitos dos possíveis patógenos humanos que poderiam estar presentes não sobrevivem no vinho. No entanto, um dos fatores para que a pisa tenha sido substituída com o tempo é o seu processo lento e custoso. Não é fácil e muito menos barato manter um grupo de pessoas pisando uvas por várias horas. Não à toa, muitos produtores de Vinho do Porto – que não querem abrir mão da tradição, mas também sabem que não podem ficar arcando com seus custos eternamente – têm buscado mecanizar a pisa a pé, criando robôs que simulam os movimentos e a pressão exercida pelos pés e pernas humanas.
“Sim, há um elevado custo de mão-de-obra de equipamento (o valor do equipamento que faz o mesmo tipo de trabalho é muito elevado). A pisa também impossibilita o recurso à maceração pré e pós-fermentativa (por causa do lagar ser um recipiente aberto), ainda consome bastante aguardente, pois os pisadores precisam de energia…”, brinca Cunha, que garante: “Pela minha experiência e, em função do tipo de vinho a obter, continua a ser uma técnica com valor e vai continuar a ser utilizada na produção de grandes vinhos do Douro”.
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