Nossos vizinhos sul-americanos são marcados por alguns de seus vinhos varietais, como a Malbec argentina. Mas o Brasil ainda não chegou lá. Será que precisa?
Sílvia Mascella Rosa Publicado em 20/09/2007, às 07h06 - Atualizado em 06/02/2019, às 11h48
Abusando da metáfora montanhista, o Brasil talvez ainda não tenha fôlego para tal escalada e sua necessidade de fazê-la seja mínima. “Em vitiviníferas, somos apenas “fetos”. Há somente 50 anos que estamos lidando com estas variedades aqui no país e há pouco mais de 15 que se está fazendo alguma coisa mais séria”, resume Orgalindo Bettú, enólogo- chefe da inovadora Villa Francioni, de Santa Catarina, e um dos proprietários da mini-vinícola Vinhos Bettú, em Garibaldi. Para enólogos, pesquisadores e até mesmo para agrônomos, querer afirmar categoricamente que uma casta já tem potencial para se sobressair no país é um completo exagero. Eles sabem o tempo que se leva para cultivar uvas sadias em terras tão jovens, por tanto tempo cobertas por uvas não viníferas. A ciência, obviamente, se pauta por dados muito mais racionais do que a publicidade, mas não há como dizer que no mercado uma não dependa da outra. No entanto, o próprio Orgalindo Bettú admite que tem conseguido excelentes resultados (no vinhedo e na taça) com a Cabernet Franc, uma casta de origem francesa, um pouco mais leve do que a Cabernet Sauvignon, com toques mais herbáceos e menor acidez. A Cabernet Franc é bastante comum no Vale dos Vinhedos e amadurece antes da Cabernet Sauvignon, um fator positivo para a região. E também parece se adaptar bem a climas mais frios, como a região de São Joaquim, em Santa Catarina.
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Precipitação não é uma coisa boa em uma indústria que depende dos humores da natureza e da habilidade humana para se distinguir de seus pares. Então, aquilo que a princípio parecia uma grande jogada, pode cobrar um troco muito alto. É o caso do Chile com uma de suas mais emblemáticas uvas da atualidade: a Carmenére. Variedade antiga da região de Bordeaux, ela era considerada extinta até ter sido ‘encontrada’ no Chile, onde encontra-se muito bem adaptada. A história da uva extinta e recuperada também tem um apelo mercadológico inegável, e o vinho com ela produzido, normalmente de corpo médio e intenso aroma de frutos vermelhos, adapta-se bem a muitos paladares. Juntando os dois fatores, conquista-se uma parcela de mercado da qual nenhum produtor é capaz de reclamar. Alguns produtores, entretanto, não criam varietais de Carmenére e investem em uvas mais expressivas e tradicionais no Chile, como a Cabernet Sauvignon, capaz de produzir vinhos mais elegantes. Ainda precisamos ver se a publicidade da Carmenére será efetivamente capaz de aproximar o consumidor dos outros bons vinhos do país.
"O vinho não tem leis absolutas"
Marta Agoas. enóloga
“As empresas tendem a investir naquilo que vai dar mais retorno. É uma questão de prioridade para enfrentar a competição”, conta Márcio Marson, Diretor Comercial da Vinhos Marson. Um bom exemplo é o tinto Famiglia da Marson, que começou com a Merlot como coadjuvante da Cabernet Sauvignon, na proporção de 20% para 80%. Hoje, apenas alguns anos depois, a combinação é de 50% e 50%. O que aconteceu é que as últimas safras de Merlot foram muito expressivas, dando ao vinho outras qualidades que o deixaram superior como um todo. Segundo Márcio Marson, a proporção só não é ainda maior por conta do preço.
Embora a Merlot seja uma espécie de consenso no Vale dos Vinhedos – vide os resultados obtidos com o Miolo Terroir e com o Salton Desejo, considerados premium –, e seus resultados pareçam mais estáveis, os grandes produtores costumam dizer que o Brasil não se diferencia dos demais países da América Latina, e até de alguns europeus, por conta de uma casta específica. O que pode diferenciar o Brasil no mercado mundial é seu espumante. “Do ponto de vista técnico-científico, já temos evidências importantes de que a nossa condição é ótima para os espumantes. O nosso solo tem acidez natural, coisa que na Califórnia e na Austrália, por exemplo, tem que ser corrigida quimicamente”, revela Mauro Zanus, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho e Diretor de Degustação da ABE (Associação Brasileira de Enologia). Segundo ele, a variedade Riesling Itálico seria sua casta de escolha, se tivesse que escolher apenas uma. Ele considera que sua adaptação ao Brasil é emblemática para a base de nossos espumantes desde a década de 40. Além disso, seu sabor quase neutro, ótimo frescor e frutado suave combinam muito bem com a Chardonnay e com a Pinot Noir, que amadurecem com alto grau de acidez e pouco açúcar em nosso país. Condições ideais para os espumantes de qualidade.
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A escolha de uvas emblemáticas para representar o país esbarra ainda em uma perspectiva histórico-geográfica. Toda a Europa e sua admirável coleção de vinhos e de uvas é somente um pedaço do Brasil em território. Cada país produtor europeu tem terroirs com uvas específicas. As informações sobre essas uvas eram tão pouco importantes, que as legislações de alguns países nem permitiam que elas constassem nos rótulos. Só nos últimos anos, por pressão do Novo Mundo e seu duvidoso apreço por vinhos varietais, é que alguns países europeus estão colocando as castas nos rótulos. “Portugal, por exemplo, é muito nacionalista com seus vinhos. As castas são tradicionais e nas cinco regiões produtoras só há duas castas francesas permitidas. A legislação é antiga e limitadora. O fato do país ser pequeno, e as áreas de produção escassas, também não estimula as tentativas”, explica Marta Agoas, enóloga portuguesa da Dão Sul que trabalha para a ViniBrasil, no Vale do São Francisco. No caso de Portugal, existe ainda um outro fator, e desta vez de mercado: o diferencial dos vinhos portugueses reside, principalmente, em suas castas autóctones e nas combinações aperfeiçoadas ao longo dos séculos. É isso que o consumidor procura e reconhece nos vinhos portugueses. No Brasil, a questão já é diferente. Como nossa indústria de vinhos finos é muito recente, as leis ainda não são impeditivas da experimentação, e muitas possibilidades se abrem para nossos produtos. Mais prudente é aguardar os resultados das pesquisas com as novas castas antes de se aventurar a dizer que só uma delas representa toda a nossa diversidade. “Se é que já se pode falar em tradição no Vale do São Francisco, a uva Shiraz é a que apresenta o melhor resultado até agora. Ainda assim, estou surpresa com a qualidade que a Tempranillo vem desenvolvendo nos últimos tempos”, conta Marta Agoas.
Ao se posicionar ao lado de outros países do Novo Mundo, o Brasil tende a querer ter sua Malbec, como tem os argentinos, sua Zinfandel, como tem os americanos, sua Pinotage como os sul-africanos. Mas nesse processo, deixamos de fora uma coisa extremamente importante: “De uma coisa temos certeza, quase todos os grandes e melhores vinhos do mundo são elaborados com mais de uma casta. Às vezes, até seis variedades misturadas. É preciso discernir perfeitamente o que é qualidade e o que é aperfeiçoamento marketeiro”, relembra Orgalindo Bettú. E mesmo aqui no Brasil, alguns de nossos resultados mais marcantes são assemblages, como o nosso tão aclamado espumante.
Não se pode esquecer que, se essa discussão já chegou até nós, significa que nossa estrutura cresceu e já estamos prontos para escalarmos o mundo dos vinhos finos, como os sherpas numa expedição ao Pico da Neblina.